Até hoje eu não sei
bem o que aconteceu. Tenho pensado nisso todos os dias da minha vida, desde
então. Todas as noites em que acordo suando, temendo ainda me ver naquela cama,
sentindo o odor nauseabundo dos medicamentos.
S.O.B não era mau, algo em mim diz que não. Apenas
queria fazer as coisas direito, da maneira dele. Mas, penso, quantas pessoas
que acreditam que estão fazendo o melhor quando destroem tudo? Somos tão
diferentes assim?
A
única certeza que eu tenho é que as coisas poderiam ter sido diferentes, em
qualquer ponto, de alguma forma.
Se
o meu avô não tivesse deixado os Estados Unidos, depois de uma aposentadoria
compulsória em situação estranha, e se mudado para o Brasil onde a minha mãe e o
meu pai moravam desde que se casaram, talvez para fugir do clima frio.
Eu
quase não conheci o meu avô. Ninguém em casa falava dele, só alguns boatos que
eu escutava aqui e ali, que era um espião aposentado.
Morava
em Campos do Jordão, acho que pelo clima frio, em uma casinha afastada, mal
cuidada, que lembrava as da sua terra natal.
Raramente
íamos visitá-lo. Nunca ele vinha até a minha casa. Enclausurado na dele, com
seus projetos eletrônicos, suas manias...
Não
pude ir ao funeral, nem meus pais foram. Eu estava internado para exames que
provaram que um câncer havia crescido em meu cérebro e que não havia muito
tempo para fazer qualquer coisa.
Não
é fácil você descobrir que o resto da sua vida não vai ultrapassar muito os
quinze anos que se passaram correndo, sem nenhum sintoma anormal, até que...
Um
médico amigo da família disse que havia uma clínica especializada em Campos,
faziam pesquisas e tratamentos caros, poderia ser uma chance de prolongar os
dias. Meus pais enfrentaram o frio e nos mudamos para a casa vazia do meu avô.
A poltrona onde havia sido encontrado morto com o seu livro de cabeceira no
colo, ainda estava lá. Mas havia muito mais.
Fiquei
no quarto mais alto, o que tinha uma vista melhor. A cama colocada próximo a
janela para poder olhar os pinheiros e a neve quando caísse. O quarto do meu
avô.
Não
havia muito ânimo para mudar as coisas, estávamos ali por pouco tempo. Eu menos
que os outros, com certeza. Entre um tratamento e outro, paliativos que
massacravam o meu corpo e me deixavam debilitado por dias. Quase não saia do
quarto e isso me permitiu estudar cada pequeno milímetro dentro daquelas
paredes.
Foi
assim que eu descobri o alçapão. Uma pequena escada muito bem disfarçada que
descia do teto e levava a um cubículo sem nenhuma ventilação, com o que parecia
ser um rádio amador velho e um computador de ultimo tipo instalados lado a lado
em uma mesa velha com uma cadeira empoeirada. Apenas isso.
Não
sei por que nunca contei essa descoberta para os meus pais, para mais ninguém.
Só agora eu me atrevo a falar a respeito...
De
alguma forma eu consegui ligar aquele equipamento. O rádio parecia quebrado,
não emitia nada embora a sua estranha antena estivesse instalada. Descobri um
cabo ligado ao computador, logo acima das letras escritas em vermelho: S.o.B.
Entrei
na internet para ver o que poderia significar aquelas letras e em uma
infinidade de resultados dois me chamaram a atenção: “Secret Official Bureau” e
“Son of Bitch”.
Meus
pais nunca me deixavam sozinho em casa, mas eu passava muitas horas dormindo de
dia e tinha a noite para explorar tudo o que quisesse, ainda que, normalmente,
eu ficasse apenas com a tv ligada para fazer barulho.
Mas
aquela coisa no sótão me intrigava, e quando me senti melhor fui vasculhar os
livros velhos do meu avô em busca do seu significado.
No meio do livro de cabeceira dele
uma frase escrita em uma página com a mesma tinta vermelha. “Preciso destruir
essa coisa antes que cause problemas”.
Não estabeleci nenhum vinculo entre a “coisa” do livro e a que estava no
sótão. Até que os sonhos começaram.
Era
estranho, a princípio. Quando eu conseguia dormir era como se estivesse em
outro lugar, em outro momento, vendo coisas que não poderia ver. Pelos olhos de
outra pessoa que não era eu. A única coisa que sempre percebia, não no início,
mas depois, quando passei a prestar atenção a todos os detalhes, era o zumbido
da máquina que continuava ligada no sótão. Nem eu mesmo sabia por quê. Nunca
pensei em desligá-la.
O
zumbido era onipresente em todos os sonhos, ainda que ao acordar eu não ouvisse
nada. Mas isso era só o começo.
Comecei
a identificar as pessoas dos sonhos como sendo pessoas que eu via no hospital,
na rua, em algum lugar. Eu sabia o que estava acontecendo com elas. De alguma
forma eu entrava na vida delas e vivia com elas por alguns anos. Como se fosse
uma delas. As esperanças e realizações, coisas que ainda iriam acontecer eram
passadas para mim através do tempo infinito e estranho dos sonhos.
Só
isso já era algo que deveria ter me advertido para o que estava acontecendo,
mas quando eu vi a enfermeira Maria com o anel de noivado, o mesmo que eu havia
visto em sonhos, junto com o seu casamento e os filhos crescidos. A vida dela
presente e futura. E quando eu havia estado no hospital da ultima vez nem sabia
que ela tinha namorado.
Então
percebi que os sonhos não eram apenas sonhos, eram projeções, partiam do
presente das pessoas e se lançavam em longas divagações. Vidas inteiras vividas
em algumas horas, pelos olhos de outros, dentro de seus corpos e suas mentes,
suas emoções.
Eu
tive a minha primeira experiência sexual através de um sonho. E depois eu fui
mulher e homem. Estava simplesmente viciado em tudo aquilo, não conseguia mais
viver sem esse estado onírico para além do que era eu.
Eu
tento não me culpar pela invasão de privacidade, quem poderia resistir a algo
assim? Eu nem sabia o que estava fazendo. Podia entender cada uma das pessoas
que conhecia, que me chamavam a atenção, que povoavam os meus sonhos com seus
sonhos, seus sentimentos.
Então
eu decidi que devia olhar para o que eu era, ou seria. De alguma forma eu tinha
que saber o que eu poderia ser se conseguisse sobreviver. Mesmo sabendo que não
havia essa possibilidade.
Um
imenso e negro nada que absorvia tudo. Um infinito nada. Vazio de todas as
coisas. Vazio de mim.
Acordei
suando, com o cheiro nauseabundo de remédio no ar. Subi ao sótão e fiz o que
qualquer garoto na minha idade faria com algo assim. Fui gritar com a máquina
que não me satisfazia o único desejo que era totalmente meu. Eu queria o meu
sonho.
E
a máquina apenas zumbia indiferente.
Xinguei,
gritei, implorei, chorei. Filha da puta. Desgraçada. Por que eu?
Comecei
a passar mal. Me arrastei para a cama e só tive tempo de fechar o alçapão antes
de vomitar até o que não havia no meu estômago antes de desmaiar.
Acordei
dois meses depois, em um quarto de hospital. Meus pais choravam muito, mas eu
já estava acostumado. Eu devia ter piorado para além das expectativas e provavelmente
tinha apenas alguns últimos momentos.
Quando
viram que eu acordei foram chamar o médico que veio apressado. Me fez um monte
de perguntas e não respondeu nenhuma minha.
De
alguma forma inacreditável eu estava curado. O tumor havia sumido completamente,
nem sinal de que um dia havia estado lá.
Recebi
alta dois dias depois, com uma infinidade de exames que não explicavam o que
havia acontecido. Só um milagre. Eu havia desmaiado e quando acordara novamente
estava curado. Só um milagre. Mas eu sabia que não era isso. Algo dentro de mim
sabia.
Voltamos
para a casa do meu avô, mas a máquina não funcionava mais. Nunca mais funcionou
se algum dia realmente o fez. Talvez, de alguma forma, o tumor tenha criado a
ilusão de tudo o que eu me lembrava. Um ano depois nos mudamos de novo.
Passaram-se
trinta anos e eu ainda não consigo voltar naquela casa. Ainda a tenho, herança
dos meus pais. Pago uma mulher para limpar ela de vez em quando, menos o ultimo
quarto que permanece intocável.
Não
sonho mais, nunca mais. Mas as vezes eu ainda sinto que o vazio completo está
lá dentro em algum lugar e escuto apenas o zumbido, sempre presente...
Um comentário:
Danny, meu amor
Sempre se superando.
O conto é ascendente, rico em detalhes e na linguagem que usa. Prende e supreende do início ao fim.
Adorei o final. O conto para mim é uma metafóra do passado, do inconsciente que nos habita e determina. Rico em grandezas.
"Não sonho mais, nunca mais. Mas as vezes eu ainda sinto que o vazio completo está lá dentro em algum lugar e escuto apenas o zumbido, sempre presente..."
Parabéns pelo Prêmio Escriba 2011 do PP É Proibido Proibir, fechou com chave de ouro.
Beijo e afagos,
Anna
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