quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Desanimalidades – Danny Marks

                Esgueirou-se por entre as grades com facilidade. O cheiro delicioso o atraia com um magnetismo impossível de resistir.
Estava a dois passos do inacreditável manjar quando viu o olhar azul e verde do tufo de pelos cinza, encimados por um laço rosa.
— Madame, não me coma que sou só ossos indigestos...
— Cale a boca, animal estúpido. Acredita que iria estragar o meu paladar assim? Faça-me um favor, livre-me dessa carne de cordeiro. Não aguento mais cordeiro. Eles sabem que deveriam me dar salmon.
— Ah, a senhora me toma por um tolo. Sei que quando me voltar saltará sobre mim...
— ah, ah, ah, bem que ela gostaria de poder fazer isso. Saltar? Só se estivesse com metade do peso, ou menos. Quanto está pesando agora querida?
— Ora, não me venha com sua histeria novamente, Chichi. Não tomou seus remédios hoje? Tem sorte de sua genética o fazer franzino assim, o que o torna mais patético com todos esses tremores. Me dá nojo só de ver esse seu olhar esbugalhado.  Quando vão trocar a sua fralda? Ao menos minha manicure já foi feita, criança ridícula.
— Não ligue para esses dois, pequenino.  Ficam estressados todas as vezes que os donos vão viajar e tem que ficar aqui. Não tem a sorte de ser como eu, nascido para ser exibido em grandes competições. Sabe quantos troféus já ganhei?
— Ei, Frutinha. Ainda se vangloriando dos concursos de miss? Eu preferiria que me castrassem do que ter que ficar desfilando com esse ridículo penteado. Alguma fêmea já o viu como macho de verdade?
— Olha só quem está falando. Até parece que é mais nobre que nós. Só a sua língua é azul, meu querido, não o sangue. Devia era fazer uma cirurgia plástica para ver se melhorava a aparência.
— Ora sua gata vadia...
— Por favor, alguém traga com urgência um ferro de engomar....
— Cale a boca, seu...cachinhos dourados!
— São escamas, entendeu, escamas!! Cão burro...
A confusão estava armada, uns apontando os defeitos dos outros, tentando valorizar alguma diferença que aos olhos do intruso apenas os tornavam tão iguais.
Para onde olhava só via obesidade, deformações exóticas, manias e empáfia. Era uma câmara de horrores onde as características que os distinguiam dos humanos eram deformadas até que se parecessem apenas extensões doentias de seus mestres, na ilusão de que isso os tornava companheiros irreais da carência alheia.
Abandonou o pedaço de ração que lhe pareceu totalmente envenenado de tantas coisas artificiais e enfiou-se novamente pelo buraco que lhe restituiria a liberdade, o ar saudável dos esgotos. Encontraria outro modo de matar a fome, mas jamais voltaria àquela loucura.
Afinal, era um rato ou um homem?

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Pobre Diabo – Danny Marks


               Tem aquela hora especial pouco antes do dia amanhecer, enquanto a noite deliciosamente cochila, que sinto vontade de andar por ai.
                Já me disseram que não é uma boa hora de vagar pela insônia, hora de ladrão, roubada do sono da realidade como tantas coisas. 
Como se fosse perigoso algo além de estar vivo.
                Nesse universo inventado, entre uma nota que ainda não se fez e outra que está deixando de existir, há muita vida que escorre preguiçosa: O jornaleiro arrumando as revistas com as manchetes que farão o dia, o pão assando o seu perfume no ar, a circulação dos veículos carregando glóbulos vermelhos, a primeira limpeza...
                São poucos os que percebem o encanto luscofusco de fresta entreaberta.
                Sou interrompido violentamente pelo cano da arma, o metal cinzento gritando para que passe os pertences que pertencerão a outro, em breve.
                O homem me olha com medo por traz da fúria que pretende improvisar como um músico ruim de jazz. Seu instrumento desafinado se estendendo em círculos concêntricos.
                Os seus lábios se movimentam em sons que quase não entendo, ordenando as sequências aleatórias, estragando o meu momento com sua estúpida existência.
                — Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
                O pobre diabo caminhava em nossa direção com os cascos ferindo o calçamento em staccato, a pele avermelhada e febril, os chifres apontando para algum lugar que gostaria de estar, mas que abandonou por algum motivo há tempos.
                O maço salta da minha mão para a dele em movimento magnético, enquanto o ladino habitante dos esgotos se encolhe como uma mola que se estendera para além do limite.
                — Leve... leve tudo... nada disso me pertence.... leve... leve tudo, mas não me leve...
                Eletrificado em convulsivos movimentos o sujeito deixa cair a arma, o relógio arrancado ao pulso novamente, as carteiras coletadas em becos, o casaco se seguindo a todas as outras roupas. Nem mesmo os sapatos permaneceram em seus devidos lugares. Como se despindo os pecados carregados pudesse santificar a sua nudez adiposa e cinzenta, viciada diversidade.
                Observo nádegas sujas se afastando rapidamente pela avenida, já ganhando traços avermelhados para suas sombras. Todos fugimos de alguma coisa que, quando muito, imaginamos ser nossa. Recolho o maço ao bolso com um a menos, sem me importar em acender na boca do outro. Ele tem o seu próprio fogo.
                Pego a arma no amontoado de vidas furtadas e disparo cinco peças de chumbo por entre a fumaça, a morte é azul metálica.
                Alguns dentes penetram-lhe na boca enquanto estranhamente o cigarro permanece intocado nos lábios.  Um sorriso a menos, talvez. Ou algo que esperava não conseguir, obtido de forma inusitada.
                Amanhã tabloides vão estar cheios de histórias com justificativas para a tragédia inventada.  Mentiras sempre vendem mais que qualquer realidade alternativa. Estamos sempre dispostos a consumir aos bocados histórias alheias para justificar insignificâncias próprias.
                Abandono o cano fumegante no bolso e guardo memória do pobre diabo.

Nem consumiu o cigarro desejado na inferência que fizera em alma alheia. Descanse em paz... Por enquanto basta. 
               Volto a dormir. Antes que o dia se faça. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Inventando Thaís - Danny Marks




— Você não me conhece tão bem assim!
                Foi o que ela me disse aos gritos, logo depois que lhe soprei vida, descrevendo-a como já existia na minha imaginação. Somente depois que me decidi falar sobre como ela seria é que fui preenchendo as lacunas que a imaginação necessariamente cria.
                A imaginação é imperfeita para contextualizar uma ideia não realizada, normalmente fica apenas na superfície, nos contornos gerais que darão o “tom” do que será criado. Ainda mais quando a ideia em si é extremamente complexa.
                Thaís já nasceu complexa, como um paradoxo existencial.
                Imagine uma pessoa Nerd. Dessas que tem uma inteligência rápida acima da média, que parecem ter todas as respostas do mundo, ou que são capazes de criar todas as respostas necessárias como se precisassem apenas expirar o conhecimento que já haviam inspirado em um momento qualquer.
Essa é a parte fácil.
                Fica complicado quando se dá a essa pessoa o sexo feminino. Sim, uma mulher nerd!
                Já deu para perceber como a coisa fica complexa, quando se pensa em nerds, pensa-se logicamente em um homem com pouca habilidade social, tímido ou introvertido, mas por isso mesmo ou como subproduto da estrutura neuronal, com uma habilidade de aprender acima do normal.
Quem imaginaria uma mulher tendo essas características?
                Se conseguir imagina-la, provavelmente será uma baixinha, de óculos, cara sisuda, sem nenhum atributo físico ou recurso cosmético que lhe permita produzir um encanto adicional. Normalmente associamos a inteligência como uma compensação da natureza para aqueles que não nasceram belos. Quem é bonito por natureza não precisa ser inteligente e, muitas vezes, torna-se cruel, indiferente aos danos que sua beleza causa.
                Mas Thais não é assim, ela tem seus encantos femininos preservados apesar da inteligência acima da média. Mais ainda, tem sua sensibilidade aguçada em relação ao outro, preocupa-se com a alegria ou a dor do próximo, tem um senso de justiça que comunga perfeitamente com sua capacidade de ser incisiva, com as palavras, tanto no juízo que faz dos outros, quanto na hora em que decide defender aqueles que lhe parecem carecer de ajuda.
                Alguém mais imaginativo até poderia conseguir criar essa imagem mental de Thaís, apesar dos paradoxos que parecem flutuar a sua volta, como satélites.
                Um desses paradoxos fica evidente quando nos aprofundamos mais, mergulhamos por trás da máscara social de uma pessoa forte e destemida, com soluções práticas (embora isso pudesse contradizer a sua feminilidade. Mulheres não nascem para serem práticas ou nascem?), mas acima de tudo determinada em fazer o que acredita.
                Ao ultrapassar essa camada superior (e não digo isso como um defeito, mas como uma característica) encontramos uma frágil e dócil menininha, com seus bichinhos de pelúcia, sua esperança feliz, seu carinho tranquilo.  Encontramos também a solidão que a envolve em tons mais escuros e percebemos imediatamente que foi a luz que, ao abrirmos um buraco durante a nossa passagem, conseguiu penetrar até aquele lugar habitado pela melancolia e dar algumas, não muitas, cores.
                E a deusa que até então estávamos imaginando, torna-se algo superior ao se tornar humana, reconstruindo todo o entendimento que havia em nossas mentes ao restringi-la simplesmente a algum arquétipo arrancado do nosso inconsciente.
                Só nesse momento é que nos afeiçoamos verdadeiramente a Thaís. Ao lhe percebermos os defeitos para além das qualidades que se esforça em nos mostrar, mas ao contrário do que esperava isso nos encanta muito mais do que a fria aceitação objetiva que poderia haver ao desconsiderarmos sua fragilidade.
                — Você não me conhece tão bem assim.
                Repete ela, desta vez em um tom mais melancólico, um traço de medo escapando por entre um olhar e outro, cabisbaixo, na expectativa do que poderemos fazer ao descobrir-lhe. Sente-se nua, mesmo vestida com tantos traços, e ao perceber que não há qualquer movimento agressivo de nossa parte (na verdade nenhum movimento de qualquer espécie), busca forças na sua própria construção e deixa que a vejamos por inteiro.
                Ergue o olhar em desafio, aceitando que, se conseguimos romper qualquer obstáculo até ali não seriam suas delicadas mãos que encobririam o pudor. Igualmente nos desafia com a sua nudez e aguarda a nossa retórica.
                Ao fazer isso nos desarma de todo preconceito, todas as possibilidades de conjeturas e entendimentos que arrastamos até aqui... e nos vence.
                — Você não me conhece tão bem assim...
                E desta vez há uma certeza delicada em suas palavras. Ela sabe!
                Percebeu que mesmo tendo sido inventada por mim a partir de alguém ou de muitos outros; mesmo tendo sido o que a desvelou de forma dramática (talvez) para você, ainda assim ela preserva algo incognoscível, algo misteriosamente feminino que nos acolhe, mas também nos faz ir embora, buscar o que nem sabíamos que não possuíamos.
                Com um abraço indefinido, nos coloca para fora de si, garantindo que na passagem que produzimos continue haver a janela pela qual olhamos, para que se possa voltar a vê-la quando ela quiser se revelar a nós. Novamente no controle de quem é e de quem deseja ser.
                É desse personagem que inventamos; que nasceu durante o nosso olhar e refletir sobre ele, nossas descobertas; é desse ser que descobrimos o quanto podemos dizer para nós mesmos:
                — Você não me conhece tão bem assim!

                Agora é Thaís que nos inventa... enquanto a ouvimos falar de nós.

Produção - Jocélia Lemos Lacerda Pupo


Hoje tivemos uma aula linda,
mas não foi de teoria.
foi pura maestria
do professor e escritor
que há tempos não via

Professor Danny é seu nome
já é um escritor de renome
vai levando a sua vida
fazendo o que mais gosta
vai tirando do texto a resposta

Proposta aos nossos corações
de toda a sua interação.
Com as palavras ele expõe
aos alunos o texto ele propõe
Estudem com alegria e emoção.

(Jocélia Lemos Lacerda Pupo. 6 Letras UNIBR/SV)
Texto produzido em oficina literária de Danny Marks

Uma grande homenagem a um singelo trabalho. Obrigado Jocélia.

Sangue Na Tela - Marli Freitas


Para aqueles que curtiram a Lariel Frota na antologia Dias Contados I (Andross), que viajaram junto com o Baú de Cassandra (Multifoco) e com os presentes que ela nos deu aqui mesmo no Retratos da Mente, eis mais uma aventura de Marli Freitas, agora assinando com nome próprio, que pseudo é para os fracos.
Um excelente trabalho, recomendo.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Encontro - Danny Marks

                Como todas coisas sem nexo que surgiam naqueles tempos, foi culpa do Marcão.
                Justamente quando parecia que poderíamos superar tudo, e sempre se chega uma época da vida que nos julgamos invencíveis, não invisíveis; quando aquela cola que gruda parece que jamais vai desgastar, envelhecer ou quebrar; ele veio com a ideia.
                Logo naquele momento em que parece que o pior da vida já passou, que temos todo o resto pela frente para ultrapassar limites, resolver diferenças, estabelecer limites, criar uma identidade em que todos pudéssemos nos reconhecer, assim no coletivo mesmo.
                Tinha que ser culpa do Marcão achar que juntando as nossas inexperiências poderia se fazer a sabedoria necessária para mudar o mundo.
                Ele tinha medo e não fazia segredo disso.
                Depois de algumas despedidas que parecem ser o início de outra coisa que nunca se realiza; de juras que são quase como esperança e fé no inconcebível; de ser engolido pela realidade onde tudo se quebra; quem poderia acreditar?
                Não o Marcão.
                Marcão se recusava a fingir por necessidade, tentando fazer funcionar só desta vez.
Não vai funcionar!
O Marcão sabia que iríamos cair na armadilha de um jeito ou de outro... a menos que evitássemos com um artifício, por que não?
Sem juras no final? Como assim?
Fazer do futuro um projeto que já se iniciou?
Antes que o fim nos alcançasse como que de surpresa, entre um copo e outro, uma risada e um choro, um abraço e um adeus.
Foi difícil entender, convencer. A coisa parecia tão louca quanto podia ser as coisas que o Marcão inventava assim do nada. Da nuvem tempestuosa que vazava pelos olhos e ouvidos dele.
 Como assim nos encontrar daqui a dez anos? E amanhã, não vai vir? Vai sumir?
Claro! Amanhã e daqui a dez anos, encontro marcado desde já. Anota ai no calendário, na mão, na calça. Anota ai, porra!
Tem ideia que é como gripe, vai pegando aos poucos e nem se sabe até que já passou, mas fica lá, de algum jeito, mudando a gente.
Cada um ao seu tempo foi aderindo, claro que fui o primeiro. Se era muito louco, estava dentro, que a vida foi feita para ser desafio.
Quero ver a cara de vocês quando eu chegar arrasando daqui a dez anos. Venham de óculos escuros para não se ofuscarem com o meu sucesso!
Guerra de papel em bolotas, risadas, trisca o copo e derrama a cerveja que o pacto está selado. Tá anotando?
Tem sempre aquele momento em que sentimos donos do nosso destino, o olhar sem medo de virar passado.
Mas o Marcão sabia que nem todos viriam neste encontro, só não disse nada... até hoje.
Martinha fizera do casamento profissão, já estava na segunda, morada no exterior que sucesso é sempre lá fora. Paris, Canadá, Finlândia... algum dia.
Jonas já dormia há alguns anos na instituição que ninguém sabia o nome. A obsessão seguira a teimosia e o arrastara por labirintos negros habitados por fantasmas. Sonhara em ser farmacêutico, agora era consumidor.
Mas o Lucas veio com o Rogério, unidos finalmente. O Silva continuava sem rumo; a Laura, loira; Vivi de preto, a Creusa com a Cida nos braços e mais ninguém.
Cada um com uma história diferente, diferentes. Menos o Marcão.
O Marcão não casou, não ficou mais louco, não fez sucesso, não cometeu fracassos, não se aventurou em nada, não plantou nenhuma arvore, nem escreveu livros.
O Marcão continuou sendo Marcão, para não deixar de ser o amigo de sempre.
E foi ele que garantiu a minha presença.
Ali, na foto, no minuto de silêncio e nos abraços úmidos, nas histórias contadas e recontadas. Tinha que ser o Marcão para ser assim...Marcão.
Capaz de fazer a amizade vencer e se fazer eterno... como nós.

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