terça-feira, 29 de outubro de 2013

Gato Branco de Olhos Negros - Danny Marks

 

                Acordou naquele dia tão cansado ou mais do que nos que antecederam. O ar que empurrava para dentro dos pulmões não parecia o mesmo que aquele inalado pelo gato empoleirado na sua poltrona favorita. Alimentado, confortável, com a indolência de um rei satisfeito com seu reinado.
                Viver era a coisa mais maravilhosa de todas, para gatos, não para quem tinha que acordar cedo e conquistar o sustento do dia a dia com muito suor, frio as vezes, no ar condicionado gelado demais, no atropelo das horas que não avançavam para a happy hour.
                Gato ganhava a vida, todos os outros apenas a alugam por um tempo indeterminado. Quando se dá conta ela já se desgastou e ainda tem que se ficar pagando e pagando.
                Quando escovou os dentes viu no espelho o bigode fino e comprido, o nariz havia encolhido de forma estranha. Só então reparou nas pupilas que se fechavam em um traço vertical projetadas para a vida noturna, boemia, se ressentindo com a luminosidade do dia.
                Talvez se ajeitasse a boca, assim mais alongada, os pelos teriam que ser mais longos substituindo as roupas que seriam desnecessárias. Nunca mais ter que buscar marcas, estaria sempre alinhado, pronto para a ocasião. Os dedos foram se retraindo, os músculos se flexibilizando, as orelhas ouvindo o que jamais pensara existir.
                Não durou muito tempo para se transformar no que sempre desejara, a liberdade era algo a ser construído, conquistado. Vinha de dentro e nos transformava em pessoas melhores, nossos ideais que deveríamos alcançar com o esforço das escolhas.
                Não fora isso que sempre ouvira por toda a vida? Não fora essa a sua proposta que parecia jamais ser possível de ser realizada? Mas há magia no ar e tudo o que é verdadeiramente desejado, em verdade se torna de alguma forma.
                Quando saltou pela janela aberta o sol já estava alto, mas o vigor que sentia o impulsionava por cima dos telhados, correndo em sua nova vida um sangue renovado.
                Nunca se sentira tão feliz quanto naquele momento em que assumira a sua vida de gato. Quem o criara humano estava totalmente errado na suposição de que ele queria ser outra coisa que não um gato. Branco e lindo, talvez um pouco sujo depois de esbarrar aqui e ali, mas quem se importava? As pulgas apareceram sem serem convidadas, mas o aroma delicioso do almoço o fazia esquecer que... sentia nojo de ratos, tinha alergia aos pássaros, peixe é coisa de fresco.
                Em pouco tempo estava entediado de gatear pelos becos sem um lugar para ir. Tentou voltar para casa, mas já não sabia mais onde estava. Teve que fugir desesperado de uns cachorros mal encarados que, por sua natureza animal, resolveram que ele não era um bom elemento.
                Quando a noite chegou havia comido alguma coisa que nem percebera, engolida na pressa do furto descoberto. Vida de gato não é fácil, ter que estar atento a tantos perigos, tantas coisas que podem hipnoticamente ser atrativas e se revelarem armadilhas. Mas tinha que gatear como todos os gatos, não tinha escolha.
Quem nasce gato não pode começar a latir, não pode voar, não pode se alimentar de sol e chuva, não pode nem mesmo escolher onde vai se abrigar do sol e da chuva. Gato só pode gatear, não tem escolha.
                O sono veio e enrolado sobre si mesmo sonhou como seria maravilhoso nascer humano, cheio de escolhas. 



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Etica, cultura e avaliação - Prof Clóvis de Barros Filho

Palestra simplesmente necessária se alguém quiser aprender a ser "especialista de si mesmo". Conteúdos interessantes, muito bom humor, diversos temas para reflexão e um desafio: Assista alguns minutos apenas, se puder rsrs.
(Danny Marks)



sábado, 5 de outubro de 2013

Coisas que Soum Homem diria sobre Sabedoria - Danny Marks



Bem vindos amigos do Coluna D2! O único lugar onde a boca é livre. Voltamos com mais um show de entrevista e desta vez temos o prazer de falar com o emérito e controvertido Dr Soum Homem, Antropófago Social e Sexanalógico.
— Dr Soum Homem, obrigado por sua entrevista à Coluna D2.
— Mas eu ainda não falei nada.  Me agradeça depois.
— Nossos ouvintes gostariam de saber o que o senhor tem a dizer sobre a questão da Sabedoria. Alguém como o senhor que tem estudado os aspectos mais controversos da humanidade poderia nos brindar com algumas de suas experiências?
— Em primeiro lugar eu quero afirmar que isso não passa de uma grande bobagem.
— Como assim, doutor?
— Essa coisa de “Sabedoria”, isso não passa de uma tremenda bobagem. A sabedoria é apenas o resultado de se ter sobrevivido a todos os erros que pode cometer. O que tem de bom nisso? Poderia chamar de “sorte”, “esperteza”, ou qualquer outra porcaria, mas daria no mesmo.
— Mas então o senhor não acha que há uma lição em ter sobrevivido aos erros?
— Há, claro que sim. E pode ter certeza que aquele que consegue jamais vai esquecer. A mãe natureza, e por consequência a sociedade que ela desenvolveu, garante isso.
— O senhor poderia ser mais claro?
— Veja os sucessos, por exemplo. Quanto tempo dura na lembrança de alguém, qualquer um? Você, lembra do seu ultimo sucesso?
— Sim, claro, foi...
— Não importa. Provavelmente foi há muito tempo e ainda deve criar algum efeito concreto na sua vida. Mas pense no seu ultimo erro. Vai ver que se lembra do mais recente tão bem quanto de todos os outros, e mais, posso afirmar que vai lembrar dos erros homéricos por toda a sua vida com todos os detalhes, enquanto qualquer sucesso que tenha será apenas uma memória distorcida, cheia de mentiras para engrandecer ainda mais a sua participação.
— Bem, é que...
— O mesmo acontece na sociedade. Se alguém faz sucesso, isso perdura enquanto tiver efeitos práticos, depois desaparece, vira lenda. Mas os erros, ah, esses são eternos, viram história. Viram exemplos para serem contados e recontados aos que ainda nem nasceram.
— Mas o senhor não acha que isso é bom? Que as futuras gerações podem aprender com os nossos erros?
— Isso é ridículo. Quem aprende com erros é um idiota. Quando você sobrevive aos erros é que se torna lição. A vida não se aprende por observação, senão ainda seriamos macacos copiando os erros uns dos outros na busca pela sabedoria. Alguém corajoso ou imbecil o suficiente, o que dá no mesmo, faz alguma coisa inédita e se dá mal, mas sobrevive a isso. É o que ele faz para sobreviver que os outros copiam, não sei de ninguém que comete os mesmos erros para alcançar as mesmas soluções. E quando alguém erra feio...
— Os outros podem se prevenir e criar soluções sem ter errado.
— Que nada, vão ser massacrados pela multidão que vai garantir que seja objeto de ridículo até achar outro otário maior. Se ele conseguir se levantar depois disso, aí sim volta a merecer algum respeito.
— Então o senhor não acredita na generosidade, na solidariedade humana?
— Claro que acredito! Sempre que alguém se ferra vai ter um monte de gente rindo e outros dando apoio, para poderem rir por mais tempo. Se a piada acaba, não tem graça. Se o imbecil desaparece quem vai criar novas piadas? Você tem que manter vivo o motivo da piada.
— Então, na sua opinião, não existe sabedoria?
— Claro que existe, mas não há mérito algum na sabedoria além do fato implícito na sobrevivência. Quanto mais velho alguém é, mais pode se dizer sábio. Pelo simples fato de que sobreviveu, isso exclui qualquer sabedoria dos jovens. Neles o nome passa a ser esperteza.
— De qualquer forma o senhor reconhece que a sabedoria é um patrimônio da humanidade.
— Absolutamente. Todos já nascem com todo aparato para se tornarem sábios e os que sobrevivem por inteligência, pilantragem ou por qualquer outro motivo, podem almejar o título. De qualquer forma vão contribuir para que o coletivo siga sobrevivendo. O importante é que os erros não se tornem uma catástrofe global.
— Por quê?
— Para continuar como sobrevivente, ora bolas. Errar qualquer um pode, e normalmente o fazem, mesmo que não saiam divulgando isso por ai. Mas quando um erro é encarado como uma catástrofe normalmente se pretende que a culpa e a responsabilidade seja dividida com muitos. É nesses casos que a pirâmide desmorona.
— O senhor conhece algum meio para evitar os erros?
— Claro, há duas maneiras. A primeira é não fazer absolutamente nada. Como isso é impossível, já evita o erro maior de não ter feito absolutamente nada, mas o tanto que evitou fazer alguma coisa, já impediu de cometer erros.
— E a segunda?
— Seja mais inteligente do que você já foi até então.
— Mas como isso é possível?
— Ora, se eu soubesse estaria rico. Ainda estou trabalhando nisso. A questão é que se não tentar não erra, mas também não acerta. As chances são iguais para ambos lados e se olhar direito vai ver que há vantagens nisso, basta sobreviver.
                — E com este sábio conselho nós terminamos a nossa entrevista de hoje, agradecendo ao Dr. Soum Homem que nos brindou com sua presença. Obrigado e até amanhã com mais um Coluna D2.

                — Ora, contanto que continuem me pagando para vir aqui falar sobre qualquer bobagem que vocês ou os seus ouvintes achem importante, pode contar comigo. Ah?! Como assim ainda está no ar...?

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