sábado, 22 de outubro de 2016

Dez Reais para Zé Bigode - Danny Marks


       Quando se mora em uma cidade turística litorânea, acostuma-se com a sazonalidade populacional que acomete determinadas épocas como chuvas de verão. Costumam vir ruidosas, rápidas, transbordantes, atrapalhando todos os planos e, depois, quando se vão, deixam muito lixo e bagunça expostos.
          Claro que para determinados tipos de pessoas, como políticos – que lucram com os impostos e popularidade, comerciantes – que lucram com a venda de produtos para pessoas que não estão preocupados com o dinheiro, e escritores – que desconhecem a palavra lucro, mas acabam conhecendo novos personagens –, sempre há algo de bom nesse fluxo humano.
          Foi assim que conheci um personagem urbano inusitado, não há palavra que o descreva melhor, chamado popularmente de Zé Bigode. Não que seja esse o nome real, se é que ainda lembra de ter algum, seja pela embriaguez, seja pela demência leve que demonstra, seja porque é difícil para uma pessoa em “situação de rua” – sempre me intrigou esse eufemismo moderno para a arcaica palavra mendigo – manter uma identidade. Situação de rua na minha opinião deveria ser algo como assalto, manifestação, essas coisas, mas enfim, não vamos fugir ao tema.
          Um mendigo de bigode não é algo inusitado, a menos que os mantenha enrijecidos e curvados à Salvador Dali, quase sem barba – me pergunto onde consegue laminas para a fazer. Mas essa particularidade que lhe dá nome só é vista por último, depois que se repara nos trajes: um paletó de terno a cobrir nada além da pele curtida pelo tempo em seu duplo sentido e pelos brancos no peito, a servir de leito para a gravata, uma calça que já viu tempos melhores – com um corte lateral – e um pé de sapato – o outro leva uma garrafa pet amarrada com trapos que podem ter sido a camisa ausente.
          Zé Bigode é aquela espécie de turista que não agrada políticos ou comerciantes, que tentam a todo custo mantê-lo longe, mas que de alguma forma acaba se tornando mais uma exótica parte do espetáculo público, depois que se vence o impacto inicial. Sempre limpo, apesar de sua situação restritiva, caminhando pelo calçadão com ar majestoso como a verificar se os jardins e os equipamentos de seu lar de verão estão em bom estado, escolhe ao acaso alguém e lhe pede, sem qualquer apresentação prévia:
          — Dez reais!
          Não pede nada diferente disso, seja valor ou outras coisas. Sempre “dez reais”. Também não aceita que alguém que não tenha sido solicitado lhe ofereça donativos, apenas a pessoa – que pode até se tornar intermediário na transação – pode contempla-lo com qualquer valor, até mesmo os dez reais solicitados.
          Quando alguém o faz solta, em um tom de voz que não admite questionamentos, alguma de suas frases emblemáticas que, junto com as vestes e o bigode, o tornam tão popular. Feito o seu espetáculo retira-se como se nada houvesse interrompido o seu passeio, deixando apenas o som do mar e o silêncio abismado das pessoas.
          Claro que para um escritor ser escolhido por uma figura assim, inusitada, é como encontrar um dos personagens refugiados da ficção na curva de uma esquina que se vira de forma automática. Mas como não adianta nada tentar impor à Zé Bigode a sua presença, que será ignorada completamente, resta apenas aguardar que a sua loucura seja identificada e atraia a atenção. Por isso sempre que Zé Bigode está na cidade ando com dez reais no bolso, feito moedas para o barqueiro.
          E quando menos se espera, coisas acontecem. Projetando um raio de luz sobre as divagações em um banco de jardim público, chega a voz imperativa que o coloca no centro de um palco improvisado, no momento em que todos os roteiros possíveis estão descansando em algum lugar distante.
          — Dez reais!
          Rapidamente se forma um pequeno público a observar o estranho, talvez um turista que não conhece o costume. Diversos se preparam para fornecer suprimentos para o estranho, apenas para poder participar como coadjuvantes desse espetáculo popular sem hora marcada.
          Saco da bolsa, onde carrego a leitura do momento, a oferenda exigida pelo arauto dos novos tempos e tiro dos fones a trilha sonora que sempre me acompanha, para dar vazão a ansiedade na audição do vaticínio do oráculo moderno. Ele recolhe rápido, sem olhar, o valor ofertado que é displicentemente jogado no bolso esquerdo e proclama:
          — Fantasmas pertencem ao passado, só espíritos habitam o futuro.
          Comungo, provavelmente com o pequeno público que poderia até aplaudir se não estivessem tão ou mais aturdidos que eu, com as palavras. Vai-se o momento, vai-se Zé Bigode, vão os dez reais, vão os expectadores; cada qual pegando seu destino em direções opostas preenchidos por sentidos, fico sozinho com palavras e percepções.
          Reflito se as pessoas terão entendido o que disse aquele arauto do submundo, se cheguei a alcança-las em sua profundidade. Caronte deve estar a sorrir sob o capuz que lhe é peculiar. Olho para o horizonte e lá está a conversar animado com flores do canteiro, ouvintes cativas que nada lhe devem, antes de descer a rampa que conduz para o mar. Não o vi desde então, ainda calam em mim as palavras que se justificaram pelo valor dado, e mais.
          Teria Zaratrusta abandonado sua caverna e, rindo-se do escritor que tenta ver o mundo com olhos críticos de esperança, atira-lhe ao rosto realidades tantas vezes vivenciadas e não percebidas? Ao passado pertencem os fantasmas, só aos espíritos permite-se almejar o futuro. Poderia facilmente escrever uma tese, artigos, textos e peças teatrais a partir desse mote, mas logo sou invadido por percepção amarga que rouba o ímpeto.
          Jamais voltarei a ver Zé Bigode, ouvir sua louca sabedoria. Terá se tornado fantasma que permanecerá no passado, zombando do futuro e seus espíritos imaturos. Não podendo dividir direitos autorais com um fantasma, resta-me apenas o registro que, talvez, avise os espíritos de que há caminhos tortos no rosto da realidade – que nos assombra com sua síntese, e que se vai sem ligar para o que fazemos com o que nos deixa.
Só valemos dez reais de sua atenção, e nada mais.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Resenha “Eu, Fernando Pessoa – em quadrinhos” – Danny Marks



Eu, Fernando Pessoa – em quadrinhos
Susana Ventura e Eloar Guazzelli
Editora Peirópolis – 2013
Formato 20,5 X 27 cm
Páginas 72
Idioma Português
Disponível em Editora Peirópolis

           
Sempre se está a discutir o que é Literatura, quais os limites, quais os veículos mais adequados, e esse debate é importante. Porém, considero ainda mais importante a transposição possível entre os modelos de forma que permita o acesso aos grandes gênios da literatura àqueles que não conseguiriam alcança-los de imediato, sem uma apresentação prévia que indicasse caminhos possíveis.
          Uma obra de arte é capaz de transpor os limites da genialidade tornando-a acessível ao leigo, ao distraído, a outro gênio que possa encontrar-se enclausurado em sua própria visão. É assim que vejo este excelente trabalho da minha professora e amiga Susana Ventura e do ilustrador Eloar Guazzelli, uma obra de arte genial que faz a transposição da obra genial do Poeta Fernando Pessoa em uma linguagem acessível a todos.
          Dirão os interessados em capitalizar o conhecimento que não se pode considerar séria uma transposição da poesia complexa para uma HQ, como dizem que não é possivel considerar literatura a música. Pois que digam, a Literatura não se importa com esses debates de egos e interesses, segue leve como uma brisa a ser inspirada pelos que a compreendem e a transformam em suspiros.
          Eu, Fernando Pessoa, tem o lirismo poético, a sensibilidade, a força e a tragédia que impregnam a obra desse fantástico poeta que, de tão grande, não cabia apenas em si mesmo, tendo se dividido em heterônimos que nos alcançam, cada qual, com sua identidade e sensibilidade próprias. Susana Ventura consegue alinhavar trechos desta vasta obra em uma narrativa consistente e pungente, que nos serve de aperitivo para o banquete que se oferece, ou não, porque há liberdade em apenas apreciar o momento e degusta-lo intensamente.
          Nos traços de Eloar Guazzelli, reconstrói-se a narrativa enriquecida por sutilezas que proporcionam experiências sensoriais e cognitivas para além do que se imagina ser possível, a marca de uma obra de arte. Mais do que ilustrar a narrativa, as imagens oferecem possibilidades narrativas que ultrapassam as palavras e invadem o espaço onírico, lírico, habitado por heterônimos que nos transformamos por osmose, absorvendo e reinventando a identidade que nos faz Pessoa.
          As setenta e duas páginas deste livro são o portal e o passaporte que permitem alcançar um lugar insuspeito dentro de nós, onde habita a poesia e a Literatura não conhece limites ou formas que a contenham, apenas que a traduzam e possa nos dar a mão e nos conduzir de volta para casa, de onde saímos para ganhar o mundo e tentar compreender melhor o lugar que é nosso, enquanto o merecermos.
          Convido a todos a fazer parte desta aventura na sensibilidade narrativa que vai ultrapassar as fronteiras do tempo e das formas e nos colocar em contato direto com um espirito poético que tem encantado gerações, Fernando Pessoa, o poeta que conseguiu nos traduzir em versos e nos fez eternos, através dele.

         
          Sobre os autores:

Susana Ventura é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Professora e pesquisadora das literaturas de língua portuguesa, tem trabalhado em diferentes universidades do Brasil, Portugal e França, ministrando cursos e palestras. Autora de diversos livros, entre eles Convite à Navegação: uma conversa sobre literatura portuguesa.


Eloar Guazzelli é ilustrador e quadrinista, diretor de arte para animação e wap designer. Mestre em comunicação pela ECA-USP tem trabalhos publicados no Brasil, Argentina e Espanha. Entre os seus trabalhos está Túnel de Letras e O Rei de Pedra. Vencedor do prêmio HQ Mix na categoria Desenhista Revelação.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Escultor de Ossos - Danny Marks


Existe um mundo bizarro onde ossos humanos podem se tornar jóias raras. Existe um serial killer na cidade de São Paulo. Existem pessoas que desconhecem muitas fatos, escondidos nas sombras da cidade feita de concreto e aço, onde corações podem ser esculpidos em pedra e almas roubadas de sua singular beleza por terem esbarrado com a pessoa errada.
Escultor de Ossos - Danny Marks, é o segundo livro da coleção Criminal da editora Dragonfly que traz os grandes mestres do suspense criminal em suas melhores atuações.
Venha fazer parte dessa aventura e descubra que a verdade pode estar lá fora, mas o crime está em todos os lugares.


Detalhes do produto

  • Formato: eBook Kindle
  • Tamanho do arquivo: 661 KB
  • Número de páginas: 33 páginas
  • Quantidade de dispositivos em que é possível ler este eBook ao mesmo tempo: Ilimitado
  • Editora: DRAGONFLY EDITORIAL LTDA; Edição: 1 (18 de abril de 2016)
  • Vendido por: Amazon Servicos de Varejo do Brasil Ltda
  • Idioma: Português
  • ASIN: B01DR2QEW0
  • Dicas de vocabulário: Não habilitado
  • Configuração de fonte: Habilitado 
  • Avaliação média: 4.0 de 5 estrelas 
Preço R$ 5,99 

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sábado, 15 de outubro de 2016

Qual é a sua Narrativa? – Danny Marks

  
          Você já deve ter ouvido essa história em algum outro momento, mas não exatamente desta forma. Calma, não perdeu o início do texto, é assim mesmo, a questão está em que as narrativas raramente são totalmente originais, isso porque desde tempo pré-históricos elas são utilizadas – fazem parte de nossa trajetória civilizatória – e fica difícil, depois de tanto tempo, criar coisas novas.
            Um outro fato interessante é que usamos narrativas para praticamente tudo, desde ensinar valores morais que sejam úteis a sociedade, até comandar exércitos e seguidores contra um determinado inimigo. As possibilidades de uso das Narrativas são infinitas e a cada dia descobre-se mais modelos e usos que antes não haviam sido investigados, embora as mais famosas sejam no meio artístico, como expressão de sentimentos e concepções, retratando justamente as sociedades que ajudaram a criar e a desenvolver.
            Mas o que é uma Narrativa afinal? Fugindo de todos os tecnicismos possíveis poderia definir a narrativa como a exposição sequencial de fatos – reais ou imaginários – sob um viés interpretativo que possui intencionalidades, expressas ou não, nos conteúdos apresentados de forma a criar uma perspectiva parcial orientada. Ainda muito complicado? Ok, vamos fugir um pouco mais das questões técnicas. Uma Narrativa é uma forma de alinhavar fatos reais ou imaginários sob uma perspectiva particular com a intenção de orientar a percepção do outro. É, não melhorou muito, então vamos a um exemplo:
            — Diz-me com quem andas, que te direi quem és.
            Essa expressão extremamente popular está enraizada na base da nossa formação psicológica e pode ser traduzida em infinitas possibilidades e usos. Basta que pense em uma linguagem não formal, aquela que não usa palavras. Pense em, por exemplo, cantores de Rap. Eles vão ter uma determinada “atitude”, um determinado tipo de vestimenta, um determinado vocabulário, um determinado estilo musical, tudo isso define os adeptos desse grupo. O mesmo vale para surfistas, para empresários, para advogados, para políticos, para donas-de-casa, para qualquer classe social, geográfica, racial, etc.
            Nosso cérebro evoluiu para identificar e usar padrões classificatórios, era uma vantagem quando a velocidade que se identificava um predador ou um aliado significava viver ou morrer. Portanto sempre buscamos nos mesclar com os grupos que nos dão a sensação de segurança e absorvemos automaticamente padrões de comportamento desse grupo em oposição a todos os outros. Ou seja, as pessoas com quem me identifico, dizem muito sobre quem sou e onde quero chegar, ou “diz-me com quem andas que te direi quem és”.
            Mas o que isso tem a ver com a Narrativa? Basicamente tudo. Da mesma forma que identificamos padrões para sobreviver, criamos narrativas dentro desses padrões interpretativos para auxiliar nessa identificação de aliados e predadores. Essa tendência de seleção de fatos interpretados que permita a assimilação mais fácil dos padrões é que criam as narrativas. Associamos determinadas atitudes a determinados grupos e pressupomos que todos os integrantes assumam as mesmas possibilidades de ação em situações semelhantes, em outras palavras, criamos uma narrativa para cada conjunto de ações que determinam previamente uma tendência quase que irrevogável.
            Contra fatos não há argumentos, certo? Errado. A narrativa é feita de fatos escolhidos e alinhados dentro de um argumento que vai ser utilizado de forma a obter um resultado objetivado. A forma como escolho os fatos que vou ressaltar ou omitir, a sequência e velocidade que vou apresenta-los, são determinantes para construir o meu argumento de forma que crie uma tendência de assimilação dos mesmos como sendo a expressão da verdade que quero demonstrar. Portanto, fatos interpretados são na verdade argumentos disfarçados em verdades incontestáveis e totalmente convincentes de acordo com a habilidade utilizada na construção da narrativa.
            A forma mais utilizada para impedir que uma narrativa nos conduza onde quiser e nos faça agir sem refletir profundamente sobre os padrões é contrapor com uma narrativa igualmente consistente – com fatos interpretados sob um viés contraditório de forma a anular a assimilação automática da narrativa e obrigar uma reflexão sobre os fatos sem interpretação que são a base da verdade.
            Claro que em tempos em que a internet aumenta a facilidade com que os fatos são apresentados e versões sobre eles são divulgados aos borbotões isso não ocorre. Estamos vacinados das narrativas por quantidades homéricas de fatos apresentados por infinitas fontes e não vamos cair jamais em armadilhas argumentativas das narrativas criadas exclusivamente para direcionar pensamentos e ações, certo? Errado de novo. A internet tornou ainda mais fácil a construção de narrativas justamente pela inundação de dados interpretados que criam um caos interpretativo e a única solução para não enlouquecer com tantas versões da mesma sequência narrativa é justamente apoiar-se em padrões aglutinadores, a versão do grupo ao qual pertencemos.
            Quando observamos uma narrativa sendo elaborada, identificamos em primeiro lugar qual a fonte, em que grupo ela foi criada – e, na atualidade, as narrativas mais relevantes são criadas e desenvolvidas no meio de grupos amplamente estruturados e, na maioria das vezes, opositores – antes de nos posicionarmos contra ou a favor dela – sem precisar refletir muito sobre a narrativa, porque é preciso estar livre para a infinidade de outras narrativas que estão sendo produzidas a todo momento.
            Assim, a internet tem desenvolvido tipos de comportamento grupal que extrapolam os limites geográficos e as tendências comportamentais locais. Aprendemos constantemente a nos redefinir pelos grupos que possuem maior quantidade de características semelhantes às nossas. Ainda buscamos pertencer a grupos, mas atualmente os filtramos não pelo que podemos verificar em tempo real, mas pelas narrativas que esses grupos produzem, pelo comportamento geral e específico de seus indivíduos, que pressupomos serem livres em suas expressões, como nós mesmos.
            Cada vez mais nos identificamos com o que as pessoas dizem ser – mesmo que não sejam – do que com atitudes reais e concretas. Nos identificamos com as narrativas chamadas de “discursivas”, ou apenas Discursos, que permeiam cada grupo como uma regra consensada e não escrita ao qual nos filiamos ou nos posicionamos contrários. A generalização e superficialidade necessárias desses discursos é contida apenas pelas contribuições individuais daqueles que acabamos por definir como representantes do grupo todo, e quanto maior o nível de influência externa, maior o poder desse indivíduo na construção do Discurso do grupo ao qual nos filiamos ou contra o qual combatemos.
            Antes havia sempre um único macho alfa e uma fêmea alfa no grupo – os chamados líderes que poderiam ser contestados de tempos em tempos dentro das premissas do próprio grupo – que seriam seguidos incontestes em casos onde a sobrevivência grupal estivesse em jogo. Pertencer a um grupo quase que automaticamente o excluía de todos os outros por uma questão puramente física – a impossibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Atualmente as coisas são mais complexas e podemos fazer parte de diversos grupos que não sejam completamente antagônicos e seguir ou ser o macho/fêmea Alfa do momento, já que os papeis grupais são mais líquidos e se moldam com a situação e o envolvimento.
            O fato de que é possível construir a própria narrativa virtual com base apenas em um Discurso apresentado sem necessidade de provas concretas, torna ainda mais evidente que podemos ser uma coisa e nos apresentar de outra forma, ou seja, podemos pertencer a dois grupos antagônicos com discursos completamente opostos e ainda ser aceitos por ambos como sendo verdadeiros, até que se prove o contrário. A internet possibilitou a construção de narrativas que neguem os fatos reais com fatos imaginários bastando para isso manter o Discurso certo nos momentos em que é necessário.
            Por isso a confiabilidade individual e grupal se tornou mais essencial do que o próprio discurso propagado pela narrativa. Vou seguir um Discurso enquanto ele for fiel nos atos a si mesmo, e se em algum momento trair uma parte de si com atos ou palavras ao que anteriormente – e existem registros disso, facilmente acessíveis – ditos ou feitos, vou invalidar completamente o Discurso e o Grupo, desconsiderando inclusive todo o histórico anterior que comungava com minhas identificações, ainda que muitas dessas se mantenham. A integração ou desintegração do Grupo não está ainda mais vinculada ao Discurso, mas ao seu principal e atual fomentador.
            Portanto, na atualidade, não é preciso atacar diretamente todo o grupo, apenas o seu líder mais influente na questão mais sensível do Discurso, a credibilidade de sua narrativa. Com a mesma facilidade que se pode criar uma narrativa e aliciar diversos grupos dentro de um Discurso que os englobe, também pode-se destruir completamente o Discurso criando uma narrativa que ataque diretamente a credibilidade de seu principal produtor, o “rosto” do Discurso.
            Apesar de ser simples na apresentação dada, a complexidade e a periculosidade desse tipo de sociedade fundada em narrativas, vai além do que é normalmente divulgado, até porque isso poderia criar um caos maior ainda se não houver algo que o substitua de forma eficiente e rápida, e até o momento isso ainda não foi desenvolvido. Para o bem ou para o mal a guerra de Narrativas está cada vez mais forte no mundo atual e se desenvolvendo assustadoramente em complexidade. Não é por acaso que se possa observar uma radicalização em vários segmentos sociais, é apenas um efeito subliminar desse retorno a estratégia de “diga-me com quem andas que te direi quem és”.
            Quanto mais avançamos nas construções narrativas dos Discursos veiculados ao longe, mais nos afundamos no “regionalismo concreto” que nos define, porque podemos ao menos vivenciar os fatos – por mais aberrantes que nos pareçam, são reais o suficiente para que possamos comprovar sua existência concreta em contraposição a virtualidade confusa de infinidade de “versões” – e nos posicionar diante deles.
A crise de confiança que permeia os Discursos - cada vez mais elaborados e esquematizados para produzir efeitos significativos dentro de esquemas psicológicos pré-definidos – nos empurra na desconstrução da identidade grupal em direção ao individualismo concreto e a construção de uma máscara social que serve como escudo e que tem sua confiabilidade construída não por bases reais, mas de acordo com as necessidades de sobrevivência grupal.
Assim nos dividimos entre o concreto e “real” que vivenciamos e o “virtual” onde testamos a nossa narrativa pessoal antes de a apresentar no mundo real, ou apesar de não o fazer. No virtual podemos até ser outra persona que na verdade não somos, mas gostaríamos de ser e que se contrapõe ao que de fato somos enquanto agentes da realidade em que vivemos. Essa ruptura de identidades pode gerar sérias crises existenciais e até a perda de uma auto definição que leva a consequências imprevisíveis.
            Obviamente é possível combater essa guerra de Narrativas Discursivas de forma eficiente, mas para isso seria necessário a construção de um novo tipo de conhecimento que a cada dia – de forma intencional ou não – vem sendo minado em suas bases e desconsiderado em sua importância. Esse conhecimento tem suas raizes justamente na mesma área que cria as Narrativas, é a Análise Discursiva. Não é interessante que na mesma velocidade e intensidade que se criam Narrativas Globais que determinam os rumos de toda uma sociedade, cada vez mais se busca diminuir a importância da interpretação de textos, do estudo das construções narrativas, da análise discursiva nas obras clássicas?
            Isso ocorre porque quanto mais as pessoas conseguirem observar e separar os fatos das suas interpretações, mais complexas terão que ser as narrativas para conduzir os pensamentos e interpretações e mais sólidos e reais terão que ser os Discursos para que permaneçam com a credibilidade que lhes dá força. Em um tempo em que qualquer um pode escrever um livro e publicar conteúdo sem o mínimo conhecimento técnico necessário, banalizando algo essencial a construção da sociedade, cria-se o envenenamento da única ferramenta que pode construir uma sociedade forte e saudável onde os seus indivíduos podem se sentir seguros e se identificar no contexto.
            Não sou contrário que haja um aumento de publicações e uma diversidade de narrativas ficcionais, pelo contrário, isso permite uma ampliação de leitores de novos modelos narrativos, o que é fundamental é que haja a capacitação desses novos autores para que possam, eles mesmos, serem críticos em seu olhar acerca dos fatos e não passem apenas a reproduzir narrativas infundadas validando-as até que sejam desmontadas e desapareçam completamente. Reveja, se necessário, a parte em que comento sobre o risco de se destruir uma narrativa complexa apenas destruindo a credibilidade do “rosto” do discurso, que pode ser apenas um autor inexperiente que o reproduziu sem aprofundamento necessário. Não apenas a carreira desse novo autor, mas todo o discurso que apoiava em suas narrativas, passa a ser invalidado, apesar de poder conter coisas importantes e verdadeiras, junto com outras inverossímeis que serão apontadas e generalizadas na sua destruição.
            Antes queimava-se ou proibia-se livros para que não houvesse “contaminação” da Narrativa Oficial, atualmente com a internet isso seria impensável e impraticável, então faz-se o caminho oposto. Cria-se tantas narrativas superficiais ou complexas que possam ser desmontadas dentro de um plano estratégico que invalide todo um conjunto ao qual tenham se vinculado mantendo apenas a Narrativa Oficial que passa a ser a única confiável dentro da interpretação que se quer dar. Não é mais necessário – ou possível – destruir uma obra literária relevante, mas tornou-se fácil criar uma enxurrada de obras irrelevantes e banais de forma que aquela significativa se afogue no mar de possibilidades e apenas a que se mantem artificialmente pela força da divulgação constante é que sobrevive, e – como todos sabemos – quem detém a capacidade de divulgação, detém o poder de determinar a narrativa.
            Pelo que foi apresentado, pode-se afirmar que o mundo do futuro depende não de novos líderes que orientem seus grupos, já que estes podem ser desenvolvidos artificialmente, mas da capacidade individual de interpretar textos para identificar os verdadeiros líderes e as intencionalidades escondidas em seus discursos para poder se posicionar a favor ou contra. É na busca pelos fatos reais e na capacidade de interpreta-los por si mesmo que se consegue a sobrevivência na era dos discursos enganosos.
            E, então, qual é a sua Narrativa?

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Azeitona com Caroço - Danny Marks


          Tem aqueles momentos em que algo arranca você das suas mais profundas e relaxantes reflexões e o lança em um caos. Aconteceu comigo quando me deparei com o imenso aviso amarelo, com letras pretas em caixa alta: NOSSA EMPADA DE PALMITO CONTEM AZEITONA COM CAROÇO.
          Não há como ficar isento depois de um quase nocaute intelectual desses, e nem estou falando da ausência do acento agudo que deveria estar contido também. A mente se recusa a aceitar o que está sendo visto, isso é um verdadeiro absurdo. Como assim?
          Os óculos redondos, com ar intelectual, que estava logo abaixo do aviso, desafia para o duelo. Apresente suas armas. Tudo bem, vamos começar com um tiro de aviso. Empadas de palmito tem que conter palmitos, não azeitonas ou seriam empadas de azeitonas, não de palmito.
          Fraco — Ri os óculos, o que me deixa apenas mais indignado. Então vai ser assim, nenhuma suavidade no trato, nenhuma delicadeza a mais. Pois bem, que seja. O negócio é o seguinte, destaca-se apenas conteúdos perigosos quando oferecem perigo para determinadas pessoas. Então deveria avisar “contém glúten”, ou ovos, ou leite, ou qualquer outro componente que possa causar risco à saúde dos que não estão devidamente avisados.
          Então – responde os óculos com ar superior, o sorriso esboçado no canto da armação – caroços de azeitona fazem mal aos dentes, daí o aviso.
          Não tem jeito, a guerra está declarada. Às favas com a delicadeza. Ao contrário dos ovos, leite, glúten que não podem ser simplesmente retirados do conteúdo sem alterar significativamente a composição, o mesmo não ocorre com caroços que só existem na natureza como uma tentativa de perpetuação da espécie, sendo o invólucro apetecível justamente como estratégia dessa propagação.
          Exatamente. Caroço e azeitona fazem parte naturalmente de uma estratégia da natureza. Nascem juntos, crescem e cumprem seu objetivo até que sejam separados na degustação que lhes foi prevista de forma natural. O que deus uniu, o homem não separe.
          Agora ultrapassou o limite da aberração, juntar argumentos que fogem completamente à lógica é um sinal de falhas graves no entendimento da situação, ou então é um deboche declarado, que exige uma resposta à altura.
          O homem, criatura de deus, inventou a tecnologia que o separa do resto dos animais e lhe permite criar coisas como industrialização de azeitonas sem caroço e empadas de palmito, sem que se tenha que levar a arvore junto. Já sinto um embaçamento das lentes. Cogito ergo sum, e engula esse caroço agora.
          Não engole. Arqueia uma das hastes em um claro gesto de ameaça. Industrialização que aumenta os custos dos produtos comercializados e que acabam sendo repassados para a cadeia produtiva até chegar ao consumidor final. Reduzir os custos é uma forma de minimizar para o consumidor o impacto de ter que digerir o preço que, de outra forma, acabaria ficando salgado.
          Não me atinge, estava preparado para o ataque. Descaroçador manual, custa quase nada e, pela mesma lógica de agregar valor ao palmito com o acréscimo da azeitona, agrega valor pela retirada do caroço da mesma. Xeque-mate, triunfante declaro. Não há como reverter a situação. Apenas desvia a luz e se cala.
          Aproximo-me e declaro: Uma empada de frango, por favor. Detesto palmito, prefiro algo com mais proteína, a vida alimentando a vida. Toda batalha acaba dando fome, que afinal é justamente o motivo para que hajam batalhas. Dou uma dentada cuidadosa para evitar o maldito caroço, vencido, mas arrogantemente escondido em sua insignificância. Não encontro nada.

          Como assim não tem azeitonas na empada de frango? NEM COM CAROÇO!?

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O Leva e Traz do seu Néscio - Danny Marks


          Se tem uma coisa que seu Néscio sabe, é levar e trazer. Desde que se aposentou (e nem queira descobrir o que ele fazia antes a menos que tenha todo o tempo do mundo a sua disposição), e virou taxista em São Paulo. A vida se resume em levar e trazer as pessoas. Quando não fica.
          Tem vezes que fica no ponto de taxi, só esperando a clientela ligar para marcar alguma jornada, e de vez em quando pegar alguns bicos, porque a prioridade é dos clientes. E cliente do Néscio ninguém leva, só ele. Até parece que se fica com algum sinal oculto, os taxis se aproximam, mas quando percebem que é cliente do Néscio, vão embora vazios e o jeito é ligar para ele, quando já não ligaram antes.
          O Néscio não tem agenda, o negócio dele é celular. Tem tudo no celular e na cabeça, desde o seu número de telefone até fotos que ele busca nas suas redes sociais para poder socializar melhor. Saber como está a sua mãe, o cachorro, o papagaio, a planta que levou para casa a semana passada.
          E aquela moça que se machucou outro dia? Trabalha para o senhor, não é? Já está recuperada? Quer que vá buscar no hospital quando tiver alta médica? Se precisar de fisioterapia pode ligar a qualquer hora do dia ou da noite que se tiver alguém no carro dou um jeito de despachar logo.
          O carro do Néscio não é um Uber, mas tem sempre um jornal para poder ler qualquer coisa, a opção é conversar com o Néscio sobre algum dos milhares de assuntos que ele domina, ou ouvi-lo falar sobre alguém que conhece. Tem também uma água, se precisar molhar a garganta, e um dropes de menta no bolso da calça para uma emergência.
          Um dia desses tendo esquecido de comprar o jornal, seu Néscio me empurrou a história de um outro cliente que levou ao meu oftalmologista. Era isso ou dropes de menta. Fiquei com a história.
          Tinha pego o tal cliente em casa e percebeu que estava com a vista ruim, claro que foi logo avisando do problema, e a pessoa disse que estava indo no oftalmologista, se ele sabia onde era. Assim que viu o endereço foi logo dizendo que já que tinha me levado lá, descreveu todo o consultório e o estacionamento que era pequeno, mas ele poderia ficar dando umas voltas para fazer hora e depois era só ligar que vinha buscar a pessoa para levar para casa.
          O Néscio é assim, leva e traz, não tem essa de fazer as coisas pela metade, mas como já sabia que o médico demorava para atender, era daqueles antigos que ficavam conversando com o paciente e fazendo exames e tudo, achou melhor ir no banheiro antes de iniciar a espera. Tudo bem deixar o taxi no estacionamento para clientes enquanto ia no banheiro, né?
          A recepcionista deixou, o que fazer, mandar se virar no carro? Há casos em que a civilização conspira para o seu próprio fim, mas tudo bem, indicou o local do alívio e continuou o seu trabalho que não incluía recepcionar taxistas.
          Para alegria do seu Néscio o consultório é daqueles que parecem Uber, tem café, cappuccino, chá, chocolate, agua e bolachas. Uma variedade bem grande de bolachas, todas ótimas, pode acreditar, experimentou pelo menos duas de cada para ter certeza. Se tivesse um pãozinho era melhor, quem sabe até alguns daqueles tabletinhos com manteiga ou geleia. Sempre tem nos hotéis de luxo, mas consultório, já viu, né?
          Nisso, entre uma bolacha e outro café, aparece o médico e é claro que seu Néscio não perde a oportunidade de fazer o social, afinal quem lida com o público a tantos anos como ele, tem que saber fazer um social, né?
          O senhor lembra de mim? Trouxe aquele cliente outro dia aqui. Isso o da pasta marrom. Administrador, exatamente, ótima pessoa, cliente antigo. Hoje não, trouxe aquele ali. Por falar nisso, vai demorar mais ou menos quanto tempo? É que se for logo nem fico dando volta, a menos que possa deixar o taxi no estacionamento.
          Tive que descer, aqueles dias que São Camilo, o protetor dos usuários de taxi faz com que o transito esteja bom e se chega rápido ao destino. Nem deu tempo de perguntar o nome do outro cliente, mas anotei na minha agenda para mudar de oftalmologista ou ir com carro próprio, no próximo ano, quando for obrigado a voltar lá.
          Creio que o outro cliente é o mesmo senhor que anda fazendo uma forte campanha para que legalizem o Uber em São Paulo ou, pelo menos, que coloquem aquelas barreiras entre os bancos dos taxis, a prova de balas e só com uma pequena abertura para passar o dinheiro. Tudo para que o seu Néscio continue levando e trazendo as pessoas em paz.

          Achei um pouco exagerado, a princípio, mas depois fiquei pensando a respeito e até estou tentado a confirmar o nome do cliente, só para ter certeza que é o mesmo ou se já criaram uma associação de clientes do seu Néscio. Acredito que vale a pena andar algumas quadras de taxi para poder assinar a lista da petição para o governador. Mas não conte para o Néscio, deixe que seja uma surpresa, ele merece.

domingo, 2 de outubro de 2016

Revista Conexão Literatura 16 - Ademir Pascale



JÁ ESTÁ DISPONÍVEL A 16ª EDIÇÃO DA REVISTA LITERÁRIA CONEXÃO LITERATURA

Nesta 16ª edição da revista Conexão Literatura, destacamos Gustavo Drago, editor da Drago Editorial, que já publicou 99 autores e que vem conquistando cada vez mais espaço no mercado editorial. Com muitas páginas (62), publicamos vários autores, tanto em entrevistas, como contos ou crônicas. As edições de Conexão Literatura estão sendo cada vez mais procuradas por autores, editoras e profissionais que trabalham na área, além de estarmos conquistando cada vez mais leitores. E é por isso que estamos trabalhando cada vez mais com afinco e dedicação.

Para baixar e ler a edição de nº 16 (outubro), basta clicar no link:

Página do post no site da Revista Conexão Literatura:


Forte abraço,

Ademir Pascale - Editor
Twitter: @ademirpascale

Formador de Opinião - Danny Marks


          Tem aqueles dias que você precisa de uma opinião, mas não encontra. Aconteceu comigo dia desses, o jeito foi tentar ir lá na esquina para ver se encontrava alguma que se ajustasse ao que precisava.
          Na esquina sempre tem alguém com opinião, é uma lei quase que universal isso. Antigamente era nos cantos que ficavam as opiniões, lembra? Aquela professora centenária que já olhava por cima dos óculos com ar de toda a sabedoria dos campos de batalha e declarava: Pegue a sua opinião e vá lá para o canto pensar no que está fazendo. E acrescentava implacável: E de costas para os outros que ninguém está interessado na sua opinião.
          Tempo bom, aquele. Hoje não se faz mais isso, dizem que traumatiza, que bobagem. A verdade é que agora as opiniões vêm de longe. Da China ou da Índia, onde se fabricam opiniões aos montes para distribuir para o resto do mundo por um preço bem abaixo do que as que são produzidas “in Loco”.
          Opinião viajada, para todos os tipos e gostos. Dizem que por lá não fica quase nenhuma, mandam todas para fora, para manter o controle, de qualidade. Enfim, o importante é que sempre que se precisa de opinião, pode-se recorrer à esquina que lá tem. Eu precisava muito de uma.
          Cheguei lá o cara já foi logo tentando me empurrar uma opinião pronta, como se eu fosse algum otário que aceita as coisas assim facilmente. Comigo não! Vou logo apontando o problema. “Essa roupa vermelha? Que é isso? Está tirando uma com a minha cara? ”.  Logo fica todo condescendente, percebe que sou dos que tem cacife para coisa mais alta. “Desculpe, Senhor. Prefere azul? Não? Já sei, o senhor tem jeito de quem gosta de um verde com alguns detalhes em amarelo. Acertei? Pois é, está muito na moda agora. O senhor tem bom gosto. Ora se tem. ”.
          Tira a roupa vermelha e pega outra verde e amarela no saco em que tinha todo tipo de cores. Quem seria a coisa que pegaria aquele rosa choque com purpurina? Algum artista? Droga, quase deixo escapar o detalhe. “Essa esquerda está com defeito. Não vou querer levar isso não”. “Nossa, não é mesmo? O senhor tem bom olho, percebeu logo de cara. Espera que vou trocar. Prefere duas direitas? Não? É, acho melhor não, acabam brigando entre si. Espere que vou dar um jeito. Já sei o que o senhor precisa, um minutinho. ”. Reforma daqui e reforma dali até que a opinião ganha ares mais equilibrados. Fica melhor assim. Qualquer coisa a roupa disfarça alguma imperfeição que possa ter escapado por baixo dos panos.
          Olho o relógio preocupado, o tempo passa e nada da opinião estar pronta. Daqui a pouco nem adianta mais. Dou uma olhada no trabalho que ele está fazendo e vejo que já tem alguma articulação. Isso é bom, todos gostam de uma opinião bem articulada. Dá para você levar ela para um lado ou para o outro, de acordo com o momento, fazer parecer diferente só mexendo um pouquinho.
          Ele dá uma escovada bem forte para tirar uma poeira imaginária, passa um produto nas superfícies expostas para dar uma lustrada e o conjunto todo fica maravilhoso, aspecto novo. Estou impressionado com a habilidade, vou recomendar para os amigos quando precisarem de opiniões. Guardo um anuncio na manga sem que ele perceba. É importante ter sempre um cartão na manga quando se lida com fabricantes de opinião.
          Já ia embalar para me dar, mas peço que espere. Vou conferir melhor. Há coisas que só se veem quando estão na nossa mão. Dito e feito, logo percebi o engodo. “O que é isso meu amigo? Está vendo aqui? Made in China! Está de brincadeira comigo? Estou pagando caro pela opinião e o senhor me vem com um produto de segunda? ”.
          Peguei-o de jeito. Comigo é assim, não dou mole com as opiniões. Se é para ter uma, que seja o melhor que se pode ter. Percebe que não vou aceitar ser enganado, nem tenta. Emputecido pega a opinião e arranca o selo deixando de lado, vai acabar passando para algum outro trouxa, tenho certeza. De baixo do balcão pega uma caixa fechada à chave. Abre e tira de lá outro selo, sem deixar ver o que mais tinha, uma arma creio eu, não me intimido. Me mostra antes de aplicar para que veja: Made in USA. Agora sim. Aplica o selo de qualidade na opinião e finalmente embrulha.
          Coloca na sacola uns confetes, de brinde pelo constrangimento. Pega o dinheiro que desaparece rapidinho. Quando vê que estou satisfeito com a minha opinião elogia: “O senhor é um grande formador de opinião! ”. Dou risada e confirmo, já está fazendo efeito. Não há nada melhor do que ser reconhecido pelo que se tem.

Opinião é tudo, hoje em dia!

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