sábado, 24 de dezembro de 2011

Poema do Menino Jesus - Alberto Caeiro




Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

                          Alberto Caeiro 

Pétalas caiam ao relento
No lago da despedida...
Percebi num último alento,
Seus olhos se voltarem para trás,
Pareciam lembrar nossos dias felizes...
No jardim sobraram algumas flores,
E rabiscos de amor eterno,
Tatuados nas árvores...

baumann(noiTe)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Palavras Presentes - Danny Marks

Mensagem de Boas Festas aos Amigos de Letras
Amor, paz, compreensão, são palavras muito usadas nesta época do ano. Substituem outras mais comuns em outros momentos, como ódio, guerra, preconceito. Talvez devesse usar outros tipos de palavras. Esperança, apoio, sustentabilidade, educação, coragem. 
                Mas não importa quais palavras que eu use, nada disso faz sentido ou muda alguma coisa se não estiver acompanhada de algo complexo e difícil de ser definido, embora ocupe apenas oito fonemas, alinhados em três sílabas: Respeito.
E mesmo isso não basta, se não for temperado com outro sintagma: atitude.
Sete fonemas, alinhados em quatro sílabas.
Esta não é mais uma lição de fonética, de semântica, nem mesmo de moral. Apenas uma constatação de que precisa tão pouco para se conseguir tantas coisas que desejamos em tantas outras palavras neste período em que as pessoas abrem os bolso, soltam o verbo, mas mantém o coração fechado, culpado, ressentido de tantos golpes que deu e levou ao longo de todo um período, seja do ano, seja da vida.
Gostaria de poder presentear a cada um que encontro apressado na rua, com quem me comunico a distância; aqueles que de uma forma ou outra entram em contato com as minha palavras, minhas atitudes, meus conceitos.
Gostaria de poder levar esperança; de oferecer renovação; de ajudar na superação de todas as coisas boas ou ruins que possam ter acontecido, pois tudo deve ser superado.
A felicidade é uma construção diária, permanente, que se fragiliza com tanta facilidade que necessitamos sempre do outro para nos auxiliar a ser feliz.

O mesmo outro que podemos fazer feliz com um pequeno gesto, por alguns instantes que sejam. Um abraço sincero, emocionado, por ver que estamos vivos apesar de tudo, e só isso já basta para que possamos ter esperança de dias melhores.
Mas abraçar alguém é difícil.
Como é difícil levar um sorriso no rosto, apesar do cansaço na busca de presentes; das filas intermináveis; dos donativos que não podemos dar, mas nos pedem suplicantes como se fossemos responsáveis por todas as misérias do mundo, culpados de termos conquistado algo que a outros foi negado.
É difícil perdoar o outro quando não conseguimos nos perdoar pelo sucesso ou pelo fracasso; por estarmos vivos quando outros não estão mais presentes.
Quando damos presentes sem estarmos junto com eles, substitutos da nossa ausência, tentativas de resgatar a paz que perdemos em meio a... o quê?
A luta pela sobrevivência? A busca pelo algo mais que nos traga justamente a paz?
Este ano eu decidi que não vou dar presentes, mas a minha presença, de alguma forma.
Seja em um sorriso simpático para um estranho que, talvez, se contagie com a minha alegria.
Seja em um abraço apertado de agradecimento pela presença em algum momento da minha história.
Seja pelas palavras que distribuo recheadas de sentimentos na tentativa de abrir os corações por alguns instantes que sejam.
Pois só um pequeno momento já basta para que a esperança renasça, que o amor se instale, que a paz seja alcançada.
Então receba a minha presença e que ela lhe traga a certeza de que conquistará tudo aquilo que faz por merecer, algum dia.
Um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de Paz, pois até da saúde podemos correr atrás e nos fazermos merecedores de um amanhecer melhor, em cada dia que virá. 

Do seu Amigo de Letras
Danny Marks

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Difícil Arte de Namorar um Homem que Escreve – Danny Marks


                Nenhum relacionamento é fácil, ou não haveriam tantos tratados de paz e estudos de psicologia ao longo da história da humanidade. Mas, alguns são fadados a serem mais complicados que outros.
À bem da verdade, um homem que lê, ou pior, um cara que escreve, é complicado. Possui inúmeras camadas prontas, e mais outras mais abaixo, sendo construídas constantemente.
Namorar um cara assim é querer uma aventura sem fim, um descobrir constante com certezas que mudam a cada nova descoberta, mais profunda, que modifica todo o entendimento anterior. É fazer do desconhecido algo fascinante que vicia com seu jeito cativante, mas assusta com suas incertezas.
Cada dia um capítulo novo, cada ano o término de uma temporada e a incerteza de qual o rumo que será seguido na próxima. Se houver uma renovação do contrato com a produtora.
Para um homem que escreve, a vida não é feita de finais, ainda que felizes; são mais fechamentos de enredos que se alternam, se sucedem, que vão se sedimentando aos poucos em algo maior chamado simplesmente de obra. E essa coisa dura uma vida inteira, cheia de vidas e de altos e baixos.
Namorar um homem que escreve é ter que descobrir quando as lágrimas são de tristeza ou de alegria; quando o brilho no olhar é de sorriso ou dor; quando os gestos teatrais são para uma platéia ou apenas para pedir que o notem; quando os silêncios são de expectativa ou apenas de reflexão.
É muito difícil manter um relacionamento com um homem  que escreve porque ele é muitos em um só, e é sempre o mesmo por traz de todos que aparenta ser.
Você pode conquistar um homem que escreve, mas ele jamais será seu.
Ele morre se você o prender, e vive mais intensamente se o deixar livre para escolher ficar. E nunca se sabe qual será a escolha que ele fará.
Ele é um universo inteiro, na fragilidade de uma pessoa. Sempre terá uma ideia nova, uma grande sacada, mas nem sempre elas vão chegar no momento que espera, da forma que gostaria.
Um homem que escreve é um companheiro para todos os momentos, mas você tem que saber ficar sozinha ao lado dele, pois às vezes ele estará muito distante em busca de você.
Namorar um homem que escreve é tão complicado quanto olhar-se no espelho e ver a sua alma refletida e ter que aceitar o que se vê sem julgar, da mesma forma que ele o fará.
Um homem que escreve jamais pedirá a você algo a mais do que ele mesmo possa lhe oferecer ou conquistar por si, mas receberá cada presente da sua alma como se fosse o que ele mais necessitava para se manter vivo, ainda que materialmente não se importe com valores.
Ele sempre será fiel às suas ideias, e a mais nada além disso, ainda que elas mudem com o tempo. Nada mais o fará respeitar a tudo o que encontrar com a mesma imparcialidade, com o mesmo empenho, que uma ideia que o convença, o conquiste.
O homem que escreve vive de ideias, não de ideais, embora muitas vezes pareça um mito, em outras, demagogo; mas ele jamais ira trair o que acredita, enquanto acreditar.
Um homem que escreve é o melhor amigo que se pode ter por perto, e o pior adversário que se pode desejar, pois com a mesma facilidade que constroi histórias de amor, produz tragédias.
Mas, se ainda assim quiser namorar um homem que escreve, então perceberá que a coisa mais importante para ele é que você seja feliz e que a única dúvida constante na cabeça dele, é se escolheu o homem certo para namorar.
E isso, só quando a obra estiver completa, ele saberá.
  

Namore um cara que lê – Macy


baseado no "Namore uma garota que lê", texto escrito pela Rosemary Urquico e
traduzido e adaptado para o português pela Gabriela Ventura


Namore um cara que se orgulha da biblioteca que tem, ao invés do carro, das roupas ou do penteado. Ele também tem essas coisas, mas sabe que não é isso que vai torná-lo interessante aos seus olhos.

 
Namore um cara que tenha uma pilha de três ou quatro livros na cabeceira e que lembre do nome da professora que o ensinou as primeiras letras.
Encontre um cara que lê. Não é difícil descobrir: ele é aquele que tem a fala mansa e os olhos inquietos. Ele é aquele que pede, toda vez que vocês saem para passear, para entrar rapidinho na livraria, só para olhar um pouco. Sabe aquele que às vezes fica calado porque sabe que as palavras são importantes demais para serem desperdiçadas? Esse é o que lê.
Ele é o cara que não tem medo de se sentar sozinho num café, num bar, num restaurante. Mas, se você olhar bem, ele não está sozinho: tem sempre um livro por perto, nem que seja só no pensamento. O rosto pode ser sério, mas ele não morde, não. Sente-se na mesa ao lado, estique o olho para enxergar a capa, sorria de leve. É bem fácil saber sobre o quê conversar.
Diga algo sobre o Nobel do Vargas Llosa. Fale sobre sobre as novas traduções que andam saindo por aí. Cuidado: certos best-sellers são assunto proibido. Peça uma dica. Pergunte o que ele está lendo –e tenha paciência para escutar, a resposta nunca é assim tão fácil.
Namore um cara que lê, ele vai entender um pouco melhor seu universo, porque já leu Simone, Clarice e –talvez não admita– sabe de memória uns trechos de Jane Austen. Seja você mesma, você mesmíssima, porque ele sabe que são as complicações, os poréns que fazem uma grande heroína. Um cara que lê enxerga em você todas as personagens de todos os romances.
Um cara que lê não tem pressa, sabe que as pessoas aprendem com os anos, que qualquer um dos grandes tem parágrafos ruins, que o Saramago começou já velho, que o Calvino melhorou a cada romance, que o Borges pode soar sem sentido e que os russos precisam de paciência.
Um namorado que lê gosta de muita coisa, mas, na dúvida, é fácil presenteá-lo: livro no aniversário, livro no Natal, livro na Páscoa. E livro no Dia das Crianças, por que não? Um cara que lê nunca abandonará uma pontinha de vontade de ser Mogli, o menino lobo.
E você também ganhará um ou outro livro de presente. No seu aniversário ou no Dia dos Namorados ou numa terça-feira qualquer. E já fique sabendo que o mais importante não é bem o livro, mas o que ele quis dizer quando escolheu justo esse. Um cara que lê não dá um livro por acaso. E escreve dedicatórias, sempre.
Entenda que ele precisa de um tempo sozinho, mas não é porque quer fugir de você. Invariavelmente, ele vai voltar –com o coração aquecido– para o seu lado.
Demonstre seu amor em palavras, palavras escritas, falas pausadas, discursos inflamados. Ou em silêncios cheios de significados; nem todo silêncio é vazio.
Ele vai se dedicar a transformar sua vida numa história. Deixará post-its com trechos de Tagore no espelho, mandará parágrafos de Saint-Exupéry por SMS. Você poderá, se chegar de mansinho, ouví-lo lendo Neruda baixinho no quarto ao lado. Quem sabe ele recite alguma coisa, meio envergonhado, nos dias especiais. Um cara que lê vai contar aos seus filhos a História Sem Fim e esconder a mão na manga do pijama para imitar o Capitão Gancho.
Namore um cara que lê porque você merece. Merece um cara que coloque na sua vida aquela beleza singela dos grandes poemas. Se quiser uma companhia superficial, uma coisinha só para quebrar o galho por enquanto, então talvez ele não seja o melhor. Mas se quiser aquela parte do "e eles viveram felizes para sempre", namore um cara que lê.
Ou, melhor ainda, namore um cara que escreve.

Homenagem de Macy aos queridos escritores da comunidade orkutiana “É Proibido Proibir” ( http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=21140341 )

DEZEMBRO DÓI - Lariel Frota



 

Dezembro dói,ai como dezembro dói:
Dói na saudade da infância,
Na certeza de que o tempo não volta.
Na agonia da esperança,
Na silenciosa revolta!








 

Dezembro dói,ai como dezembro dói:
Na criança de rua faminta,
No velho mijado na cama,
Na mão estendida ao relento,
Que por um pouco de amor clama!



 



Dezembro dói, ai como dezembro dói:
Nas sobras  de comida jogadas
Numa caçamba fedida,
Nos pacotes repletos de nadas,
Na incoerência de vida.
Dói nos falsos risos trocados,
Nos abraços traiçoeiros,
Nas enxurradas de fel carregando
Vidas  dentro dos bueiros!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sob a pele que eu habito - Danny Marks


Eu nasci novamente no dia 14 de dezembro de 1975, as duas da madrugada. Não sei bem o motivo, mas isso não importa agora.
Quando percebi meus duzentos e quarenta e três anos habitavam um corpo de doze anos, mas, por um longo tempo, apenas eu estava ciente disso.
Fiquei olhando as coisas por trás daqueles olhos, tentando entender os mecanismos que agiam sobre mim, sobre aquele corpo. Eu não tinha pressa.  O que poderia acontecer de pior que já não houvesse acontecido?
Habitava o sótão sombrio de uma criança que mal sabia as coisas mais simples, que cometia erros tão tolos que me enervavam e eu me consumia em fúria impotente.
Então ele morreu pela primeira vez e nos deparamos.  Eu poderia ter feito tantas coisas naquele momento, ter resolvido o problema de uma vez, ou então simplesmente ficado quieto e deixado o destino seguir seu curso. Se eu soubesse qual seria o destino...
 Mas, não, eu acabei interferindo. Salvei aquela criatura frágil e sua vida tola, na esperança de adquirir mais tempo para pensar e planejar o que teria que fazer. Tantas coisas a serem feitas. Só não contava que ele se lembraria. Que buscaria entrar em contato comigo de alguma forma.
A princípio foi como um passatempo, algo para ocupar os vazios deste lugar, inserindo pouco a pouco coisas que precisava; que estariam disponíveis para mim quando eu tivesse que fazer o que era preciso.
Fiquei tão ocupado com o meu novo propósito que não notei a repercussão disso, até que vi refletidas em palavras coisas que eu havia construído aqui. Ele envelhecia rapidamente a cada novo acréscimo que eu implementava, mas o seu corpo continuava frágil para nós dois.
Quando ele morreu pela segunda vez não houve o espanto da primeira, ficamos juntos por um tempo que seria impossível em outro lugar. De certa forma foi bem interessante ensinar novamente algumas coisas banais, enquanto o salvava e o mandava de volta.
Como eu poderia imaginar que isso o tornaria diferente? Não dava para voltar atrás. Precisava continuar e fazer o trabalho completo até o momento que eu esperava ansiosamente.
Nosso contato foi ficando cada vez mais frequente, mais profundo. Eu distraidamente me ocupava de coisas importantes sem notar no que ele estava se transformando. No que estava fazendo com as migalhas que eu lhe dava. Alimentando-o para o abate que seria inevitável.
E quando o momento chegou, percebi que havia cometido um erro.
Ele estava mais forte que eu jamais haveria de imaginar. Estava ciente do que eu era e disposto a acabar comigo. Não com a ira que eu teria no lugar dele, mas com uma convicção absurda de que era o melhor a ser feito, ainda que isso acabasse com nós dois.
Lutamos desesperadamente.
A vida é algo precioso para alguém que sabe o quanto de possibilidades existe nela, o quanto se pode perder em alguns segundos.
Eu só queria matá-lo rapidamente, com a fúria implacável que se destrói um inseto incomodo, enquanto apenas se defendia e aprendia. Voltava cada golpe que eu lhe desferia contra mim e cada avanço meu me empurrava para a beira de um precipício.
Eu contava que ele queria sobreviver, como eu. Todos querem viver, não importa como, não importa o que seja preciso fazer para continuar seguindo. A culpa pode ser mitigada com os atos futuros, esquecida em algum canto da memória. Esse foi o meu erro.
Ele me via como o monstro que habitava os recantos sombrios da sua alma. O Mr Hide mefistofélico que impregnava os seus atos com a sombra das chamas infernais.
A sua calma plácida me enfurecia para além da razão e me lancei sobre ele com toda a fome devoradora que apenas alguém que havia vivido tanto quanto eu poderia possuir.
Caímos ambos no precipício infinito e escuro daquele lugar sem tempo ou espaço. Seria o nosso fim. A menos que...
Deixei que ele drenasse as minhas forças, que criasse asas e pudesse voar. Deixei-o livre para viver enquanto eu mergulhava cada vez mais fundo, inerte.
Ele voltou vitorioso para seu mundinho estranho. Mas não era mais ele.
O amalgama de nós dois sobrevivera a ambos, crescia de forma estranha, enquanto eu jazia esquecido nas sombras.
É preciso luz projetada sobre alguma coisa para que haja sombras. Quanto maior a fonte de luz, maior a sombra projetada. E eu pude crescer de novo, nas sombras que se avolumavam e me mantinham vivo.
Agora eu posso olhar pelos olhos dele e ver tudo o que fez com o que lhe dei, posso sentir cada partícula do que ele sente.
Mas ele não percebe que estou aqui, e que ainda vamos nos ver novamente e desta vez eu vencerei, pois eu sou o demônio que habita sob a sua pele.
                Eu sou a sua Sombra.

LIXO NO NATAL - Lariel Frota



- Mãe, porque não separa as latas. É  lixo reciclável.
-Não  tenho  espaço pra guardar tudo separado.
- Vejam só, meu meninão defendendo o meio ambiente. De onde vem a  conscientização?
-Da escola,  e  está me deixando louca.
-Calma, temos um futuro cidadão do bem.
-É pai, sabia que o plástico leva muito tempo para se desfazer? Na escola ensinaram a fazer um montão de enfeite de natal com material reciclado. Quer ver minha redação sobre o lixo?
 -Viu? É essa falação a semana toda.
-Mãe, não é falação. Ou a gente joga certo  o lixo, ou o lixo...
-Que tal irmos comprar as rodas pro carro novo? Aproveitamos para um  sorvete. Na volta você lê a redação.
                                                              (...)
-Vamos filha, tem  muito  trabalho, chegou plástico na reciclagem.
-Ai mãe, dá um nojo separar lixo. Um dia saio dessa pobreza toda da favela, credo.
-É, o trabalho não é  agradável, mas reforça o orçamento,   e  não fica  um  monte de lixo jogado por aí.Você viu quanta enfeite de natal feito com material reciclado,comprei um bonito para colocar na  porta, foi  bem baratinho.
-Lixo, enfeite feito de natal feito de lixo, coisa horrorosa.  Quero mesmo é  virar modelo ou artista e ir morar longe  dessa pobreza..
-Eta menina boba,  por acaso no asfalto não tem lixo?
-Tem, mas é levado pra longe. Você já viu monte de lixo no Leblon ou Capacabana?
-Claro que não, o lixo deles vem pra cá.
-Por isso quero  ficar rica, prá  não  separar    lixo de ninguém.
                                                     ( ...)
-Gostei, as rodas  ficaram da hora. Pai, não joga o palito de sorvete na rua. Você não tem  lixinho aqui no carro novo?
-Não falei que a história do  lixo do seu filho, não tem fim?
-Luiz Alberto   sua mãe tem razão:  um palito de sorvete no meio dessa imundície, não faz diferença.
-Mas pai, o professor explicou que existem centenas  de carros, e ...
-Que  saco garoto. Chega!  Ao invés de aproveitar o passeio no carro novo, o sorvete de chocolate,  fica tentando salvar o planeta.  Mude a  conversa, não quero ouvir mais  um pio sobre isso.
                                                                 (...) 
-Olha Beto,  melhor   mudar o trajeto,  a água  está acumulando  na praça.
-Os bueiros estão    entupidos. Pior, esta água imunda vai sujar o carro novo.
-Pai,  posso  ler minha redação agora?
-Seu pai  já não avisou pra parar com essa ladainha?  Deixe esse assunto chato pra  aula.
                                            (...)

A televisão mostra, a montanha de  entulho sendo remexida pelos bombeiros a procura de corpos trazidos pela avalanche. Pessoas sujas, olhos perdidos, renascidos da lama,  perambulam  como personagens de um pesadelo.
                                                       
Aquele  homem  em choque  observa   seu automóvel destruído por uma  enorme pedra, juntamente com  uma montanha de sujeira e  lama.
                                             (...)     
-Coisa pavorosa, o carro foi praticamente cortado  ao meio pela  pedra. Parece que os pais escaparam,mas a pobre criança no banco de traz.....
-Ele   tem um pedaço de papel  na mão.Parece que  segurou com força antes de morrer,   uma frase sem sentido, alguma brincadeira de criança: -“A gente é que joga o lixo, ou é o lixo que vai  jogar a gente”?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Máquina dos Sonhos - Danny Marks

Até hoje eu não sei bem o que aconteceu. Tenho pensado nisso todos os dias da minha vida, desde então. Todas as noites em que acordo suando, temendo ainda me ver naquela cama, sentindo o odor nauseabundo dos medicamentos.
            S.O.B  não era mau, algo em mim diz que não. Apenas queria fazer as coisas direito, da maneira dele. Mas, penso, quantas pessoas que acreditam que estão fazendo o melhor quando destroem tudo? Somos tão diferentes assim?
            A única certeza que eu tenho é que as coisas poderiam ter sido diferentes, em qualquer ponto, de alguma forma.
            Se o meu avô não tivesse deixado os Estados Unidos, depois de uma aposentadoria compulsória em situação estranha, e se mudado para o Brasil onde a minha mãe e o meu pai moravam desde que se casaram, talvez para fugir do clima frio.
            Eu quase não conheci o meu avô. Ninguém em casa falava dele, só alguns boatos que eu escutava aqui e ali, que era um espião aposentado.
            Morava em Campos do Jordão, acho que pelo clima frio, em uma casinha afastada, mal cuidada, que lembrava as da sua terra natal.
            Raramente íamos visitá-lo. Nunca ele vinha até a minha casa. Enclausurado na dele, com seus projetos eletrônicos, suas manias...
            Não pude ir ao funeral, nem meus pais foram. Eu estava internado para exames que provaram que um câncer havia crescido em meu cérebro e que não havia muito tempo para fazer qualquer coisa.
            Não é fácil você descobrir que o resto da sua vida não vai ultrapassar muito os quinze anos que se passaram correndo, sem nenhum sintoma anormal, até que...
            Um médico amigo da família disse que havia uma clínica especializada em Campos, faziam pesquisas e tratamentos caros, poderia ser uma chance de prolongar os dias. Meus pais enfrentaram o frio e nos mudamos para a casa vazia do meu avô. A poltrona onde havia sido encontrado morto com o seu livro de cabeceira no colo, ainda estava lá. Mas havia muito mais.
            Fiquei no quarto mais alto, o que tinha uma vista melhor. A cama colocada próximo a janela para poder olhar os pinheiros e a neve quando caísse. O quarto do meu avô.
            Não havia muito ânimo para mudar as coisas, estávamos ali por pouco tempo. Eu menos que os outros, com certeza. Entre um tratamento e outro, paliativos que massacravam o meu corpo e me deixavam debilitado por dias. Quase não saia do quarto e isso me permitiu estudar cada pequeno milímetro dentro daquelas paredes.
            Foi assim que eu descobri o alçapão. Uma pequena escada muito bem disfarçada que descia do teto e levava a um cubículo sem nenhuma ventilação, com o que parecia ser um rádio amador velho e um computador de ultimo tipo instalados lado a lado em uma mesa velha com uma cadeira empoeirada. Apenas isso.
            Não sei por que nunca contei essa descoberta para os meus pais, para mais ninguém. Só agora eu me atrevo a falar a respeito...
            De alguma forma eu consegui ligar aquele equipamento. O rádio parecia quebrado, não emitia nada embora a sua estranha antena estivesse instalada. Descobri um cabo ligado ao computador, logo acima das letras escritas em vermelho: S.o.B.
            Entrei na internet para ver o que poderia significar aquelas letras e em uma infinidade de resultados dois me chamaram a atenção: “Secret Official Bureau” e “Son of Bitch”.
            Meus pais nunca me deixavam sozinho em casa, mas eu passava muitas horas dormindo de dia e tinha a noite para explorar tudo o que quisesse, ainda que, normalmente, eu ficasse apenas com a tv ligada para fazer barulho.
            Mas aquela coisa no sótão me intrigava, e quando me senti melhor fui vasculhar os livros velhos do meu avô em busca do seu significado.
            No meio do livro de cabeceira dele uma frase escrita em uma página com a mesma tinta vermelha. “Preciso destruir essa coisa antes que cause problemas”.  Não estabeleci nenhum vinculo entre a “coisa” do livro e a que estava no sótão. Até que os sonhos começaram.
            Era estranho, a princípio. Quando eu conseguia dormir era como se estivesse em outro lugar, em outro momento, vendo coisas que não poderia ver. Pelos olhos de outra pessoa que não era eu. A única coisa que sempre percebia, não no início, mas depois, quando passei a prestar atenção a todos os detalhes, era o zumbido da máquina que continuava ligada no sótão. Nem eu mesmo sabia por quê. Nunca pensei em desligá-la.
            O zumbido era onipresente em todos os sonhos, ainda que ao acordar eu não ouvisse nada. Mas isso era só o começo.
            Comecei a identificar as pessoas dos sonhos como sendo pessoas que eu via no hospital, na rua, em algum lugar. Eu sabia o que estava acontecendo com elas. De alguma forma eu entrava na vida delas e vivia com elas por alguns anos. Como se fosse uma delas. As esperanças e realizações, coisas que ainda iriam acontecer eram passadas para mim através do tempo infinito e estranho dos sonhos.
            Só isso já era algo que deveria ter me advertido para o que estava acontecendo, mas quando eu vi a enfermeira Maria com o anel de noivado, o mesmo que eu havia visto em sonhos, junto com o seu casamento e os filhos crescidos. A vida dela presente e futura. E quando eu havia estado no hospital da ultima vez nem sabia que ela tinha namorado.
            Então percebi que os sonhos não eram apenas sonhos, eram projeções, partiam do presente das pessoas e se lançavam em longas divagações. Vidas inteiras vividas em algumas horas, pelos olhos de outros, dentro de seus corpos e suas mentes, suas emoções.
            Eu tive a minha primeira experiência sexual através de um sonho. E depois eu fui mulher e homem. Estava simplesmente viciado em tudo aquilo, não conseguia mais viver sem esse estado onírico para além do que era eu.
            Eu tento não me culpar pela invasão de privacidade, quem poderia resistir a algo assim? Eu nem sabia o que estava fazendo. Podia entender cada uma das pessoas que conhecia, que me chamavam a atenção, que povoavam os meus sonhos com seus sonhos, seus sentimentos.
            Então eu decidi que devia olhar para o que eu era, ou seria. De alguma forma eu tinha que saber o que eu poderia ser se conseguisse sobreviver. Mesmo sabendo que não havia essa possibilidade.
            Pela primeira vez eu tive o pesadelo.
            Um imenso e negro nada que absorvia tudo. Um infinito nada. Vazio de todas as coisas. Vazio de mim.
            Acordei suando, com o cheiro nauseabundo de remédio no ar. Subi ao sótão e fiz o que qualquer garoto na minha idade faria com algo assim. Fui gritar com a máquina que não me satisfazia o único desejo que era totalmente meu. Eu queria o meu sonho.
            E a máquina apenas zumbia indiferente.
            Xinguei, gritei, implorei, chorei. Filha da puta. Desgraçada. Por que eu?
            Comecei a passar mal. Me arrastei para a cama e só tive tempo de fechar o alçapão antes de vomitar até o que não havia no meu estômago antes de desmaiar.
            Acordei dois meses depois, em um quarto de hospital. Meus pais choravam muito, mas eu já estava acostumado. Eu devia ter piorado para além das expectativas e provavelmente tinha apenas alguns últimos momentos.
            Quando viram que eu acordei foram chamar o médico que veio apressado. Me fez um monte de perguntas e não respondeu nenhuma minha.
            De alguma forma inacreditável eu estava curado. O tumor havia sumido completamente, nem sinal de que um dia havia estado lá.
            Recebi alta dois dias depois, com uma infinidade de exames que não explicavam o que havia acontecido. Só um milagre. Eu havia desmaiado e quando acordara novamente estava curado. Só um milagre. Mas eu sabia que não era isso. Algo dentro de mim sabia.
            Voltamos para a casa do meu avô, mas a máquina não funcionava mais. Nunca mais funcionou se algum dia realmente o fez. Talvez, de alguma forma, o tumor tenha criado a ilusão de tudo o que eu me lembrava. Um ano depois nos mudamos de novo.
            Passaram-se trinta anos e eu ainda não consigo voltar naquela casa. Ainda a tenho, herança dos meus pais. Pago uma mulher para limpar ela de vez em quando, menos o ultimo quarto que permanece intocável.
            Não sonho mais, nunca mais. Mas as vezes eu ainda sinto que o vazio completo está lá dentro em algum lugar e escuto apenas o zumbido, sempre presente...

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