segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Ninguém vai acreditar nessa história – Danny Marks


          Hoje tive uma ideia para um romance. É sobre um cara que mesmo sem ter diploma universitário consegue se tornar empresário e começa a fazer negócios com o governo. Para ganhar uma grana mais rapidamente, acaba se envolvendo em um esquema de pagamento de propinas milionário e em pouco tempo esse empresário do ilícito se torna um dos homens mais ricos do mundo com uma fortuna avaliada em 30 bilhões de dólares.
          Só que um azar danado acontece e o cara vai a falência, e o pior, acaba sendo indiciado pela polícia como suspeito nos tais esquemas de propinas. O cara cisca daqui, cisca dali e consegue se sair bem por mais algum tempo até que outras investigações o colocam na mira da polícia novamente, com mandado de prisão expedido.
          Vários dias depois de ter sido pedida a prisão preventiva, aquela que é para impedir o cara de fugir, o cara foge para outro país. O advogado do cara diz que foi apenas uma viagem de negócios, que logo o cara vai voltar e se entregar. Desconfiada a polícia pede a colaboração da Interpol para prender o suposto meliante foragido, mas ninguém consegue descobrir onde o cara foi e suspeita-se que já tem um esquema montado para ir para um pais que não tem repatriação.
          Uma reviravolta acontece quando o cara aparece em um aeroporto internacional e tranquilamente embarca em um voo comercial para o pais onde está sendo procurado e, finalmente, é preso com toda pompa e circunstância que alguém de tanta periculosidade merece.  Políticos que estão envolvidos nos esquemas se preocupam com uma possível delação do empresário que conseguiu a façanha de perder 30 bilhões de dólares em um par de anos e que agora pode acabar com o esquema bilionário deles da mesma maneira.
          Mas outra reviravolta acontece, e o perigoso possível delator de políticos é levado para um presídio em que se encontram outros líderes do crime organizado e que, como todos os presídios do país em questão, enfrenta uma crise de superlotação com três vezes mais detidos do que a capacidade. Não tem arrego, o cara não tem diploma de nível superior, tem que ficar com os presos comuns, digo, de alta periculosidade igual a ele.
          Só que outra reviravolta acontece e o presídio acaba sofrendo uma rebelião semelhante à dos outros presídios que também saíram do controle resultando em massacres entre os detentos e que levaram dias para serem contornados pelo sistema carcerário falido devido às propinas que resultaram na maior parte dos meliantes que os integram. Na confusão que se forma, um cadáver com a aparência do empresário é encontrado de forma tão desfigurada que dificulta a identificação.
          Uma força tarefa é montada para descobrir se o cadáver é realmente do empresário e dados médicos arquivados em hospitais e clinicas dentárias são solicitados para que se possa confirmar que realmente houve uma tragédia e o possível delator não pode mais delatar nada porque foi exterminado pelos chefes de gangues que odeiam delatores. A justiça do crime passando acima da justiça da lei e cumprindo a sentença com mais rapidez e eficiência.
          Alguns dos presos que fugiram na já citada rebelião são conduzidos para outros presídios e um ou outro que alegam que houve um esquema organizado para a fuga, acaba desaparecendo em outros motins de forma a cumprir a mesma lei da Omerta. Em boca fechada não entra facão enferrujado.
          Enquanto isso, um homem desconhecido, com as faixas necessárias à reconstrução facial a que se submeteu, olha o saldo das contas secretas que manteve ocultas dos olhos curiosos e começa a fazer planos para uma faculdade, afinal, não se pode brincar com a sorte e é preciso ter muito conhecimento nesses dias turbulentos.

          Essa seria a história que eu iria contar, mas cá entre nós, é um enredo muito ruim, não dá para acreditar em tamanhos absurdos, certo? Melhor deixar para lá, isso nunca iria acontecer de verdade. Como é difícil a vida de um escritor tentando compor enredos com a verossimilhança necessária.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Entrevista concedida ao site Arca Literária - Danny Marks


http://www.arcaliteraria.com.br/danny-marks/
Entrevista
1.       Fale-nos um pouco de você.
Puxa começou difícil rsrs. Acho mais fácil falar dos personagens ou das tramas que de si mesmo, mas vamos lá. Sou formado em ADM e LETRAS, pós-graduado em Alfabetização e Letramento. Aposentado da indústria metalúrgica. Escrevo desde criança, mas profissionalmente só mais recentemente, sou péssimo com datas, mas não faz mais que dez anos. Sou considerado um Ciêntista Mistico, bruxo tecnológico na variante mais comum, mas estou afastado da psicobiofísica há mais de trinta anos, portanto o título é apenas uma concessão.
2.       O que vc fazia/faz além de escrever? De onde veio a inspiração para a escrita?
Como disse, atualmente estou aposentado. Já dei aulas particulares e no Estado sobre técnicas de redação, já fui organizador de antologia e editor, mas me desliguei porque gosto de uma certa tranquilidade, cansado de batalhas infrutíferas. Minha inspiração para a escrita vem das pessoas e situações que acompanho, do olhar para o mundo e dos conhecimentos de análise de padrões que desenvolvi na época em que era místico. Minha habilidade em construir cenários a partir de indícios já foi muito elogiada por administradores, mas sempre procurei usa-la mais para o lado da escrita literária.
3.       Qual a melhor coisa em escrever?
Difícil dizer isso. Meu relacionamento com a escrita é na base de que não a comando. Aceito uma ideia e a desenvolvo no estilo e no modelo que ela exigir. Já escrevi FC, Terror, Horror psicológico, Psicologia, Policial, Comédia de Costumes, Fantasia, Fábula, Literatura fantástica, distopia e por aí vai. Gosto de misturar alguns estilos, fazer uma intersecção entre realidades possíveis e imagináveis. Quando estudo um autor, tento criar algo usando o estilo dele para alguma ideia que me surgiu, contos especialmente. Isso cria um sério problema na definição da minha literatura, mas recentemente escrevi um texto sobre isso e conclui que escrevo sobre qualquer coisa que gostaria de ter lido, mas não havia sido escrito, até então.
4.       Você tem um cantinho especial para escrever? (envie-nos uma foto)
Não tenho, qualquer lugar serve, até porque eu “vejo” as cenas que escrevo. Acompanho a história na minha cabeça para poder ver o seu desenvolvimento, seu ritmo, suas conexões. Depois tento transpor o “filme” para a escrita, mas antes pensei bastante a respeito, investiguei todos os ângulos. Qualquer lugar server, e alguns lugares acabam servindo de cenários também.
5.       Qual seu gênero literário? Já tentou passear em outros gêneros?
Rsrs, como falei. Não tenho um gênero específico, escrevo o que gostaria de ler e ainda não fizeram. Pode me chamar de um escritor de transgênero rsrs, ou algo pior uma mistura de gêneros e estilos que se submetem a ideia que querem contar para realiza-la da melhor forma que puder. Terror/Ficção Científica/Policial? Fantasia/Medieval/retrofuturista? Qualquer coisa serve, desde que o resultado seja algo que faça o leitor sentir satisfação e sou o meu primeiro e mais exigente leitor.
6.       Fale-nos um pouco sobre seu(s) livro(s). Onde encontra inspiração para título e nomes dos personagens?
Na maioria das vezes os títulos e personagens se nomeiam a partir das próprias narrativas. Aquela coisa de que tinha que ser aquele nome, naturalmente. Não forço em nenhum momento a ideia, no máximo a questiono sobre onde está querendo ir, mas procuro deixar que me conduza e me apresente coisas novas. Publiquei em antologias de poesia, medieval, terror, ficção científica, literatura fantástica. Tenho livro de literatura policial, livros de contos, dois volumes com filosofia existencialista sob uma abordagem dialógica no formato de romance intermodal, tenho uma autobiografia mística em forma de romance. O que você quiser, pode acreditar que escrevi ou vou escrever em algum momento. Gosto do desafio de fazer o novo e me surpreender. Gosto do inusitado que surpreende pela sua complexidade simples, aquela coisa da pessoa ver algo totalmente novo e falar “como não pensei nisso antes?”. Esse é o meu objetivo, fazer o meu leitor amar o inesperado e aproveitar cada momento que estiver lendo uma de minhas viagens ao universo do possível.
7.       Qual tipo de pesquisa você faz para criar o "universo" do livro?
Depende. Sempre vou atrás do que é preciso para realizar a ideia. Faço pesquisa histórica, científica, estilística, o que for. A construção de uma narrativa é como se fosse uma investigação, alguns fatos são apresentados, mas existem lacunas imensas e uma indefinível linha de tempo que precisa ser traçada para poder fazer algum sentido. É preciso mergulhar na história sem uma ideia pré-concebida, sem expectativa, seguir os rumos para onde ela levar e ver o que é importante e o que é melhor deixar de lado. As ideias são sempre prolixas em apresentar pistas falsas, tergiversar. Tem que segui-las, mas tem que pressiona-las para que digam o que importa, fazer com que revelem mais do que gostariam, então acaba descobrindo coisas incríveis, se estiver atento.
8.       Você se inspira em algum autor ou livros para escrever?
Em todos rsrs. Digo que na minha escrita estão não apenas todas as pessoas que conheci ou de quem ouvi falar, mas todos os autores que amei e todos que odiei. Não se pode deixar nada de fora se o objetivo é ser o mais verdadeiro possível. Cada detalhe é importante na composição do quadro, mesmo que não apareça em primeiro plano. Você não vai pintar o vento soprando, mas a forma como as folhas estão vão falar sobre o vento, sobre a luz, sobre aquele animal que passou por ali e comeu algumas delas, amassando outras. Quanto mais você conseguir apresentar sem dizer, mais belo será o seu texto, e mais fácil levar o leitor junto.
9.       Você já teve dificuldade em publicar algum livro? Teve algum livro que não conseguiu ser publicado?
Não, na verdade não procuro editoras. Todo material que publiquei foi por convite ou oportunidade. Recentemente publiquei em eBook porque queria verificar como era essa mídia e só estando dentro. Já notei algumas coisas interessantes que vão me conduzir para os próximos passos.
10.   O que você acha do novo cenário da literatura nacional?
Essa é uma equação complexa porque há várias frentes. Ainda estamos presos a muito preconceito. Os leitores brasileiros não gostam de autores brasileiros, a menos que tenham sido “aprovados” lá fora. As editoras não investem em autores novos porque não possuem público e muitos são fracos em termos de técnica, mas não há uma aposta na construção de um público ou de formação de autores mais qualificados. São raros os cursos de escrita criativa, a grande maioria não passa do básico. Ser autodidata em algo tão complexo quanto a escrita não é um caminho fácil e a maioria dos autores ou sobrevive porque pode pagar pelo hobby das auto publicações ou desiste.
11.   Recentemente surgiram várias pessoas lançando livros nacionais, uns são muito bons, outros nem tanto, outros são até desesperadores, o que você acha sobre este boom?
Acho que é importante no aspecto de que é preciso diversidade para poder criar um espaço para a qualidade. Quando os importados chineses invadiram o Brasil todos temeram que iam acabar com o mercado nacional por venderem produtos de baixa qualidade e baixo preço. Anos depois vemos que a grande maioria dos produtos vendidos nessas lojas são de marcas nacionais desconhecidas, que não possuem um grande marketing, mas que possuem qualidades mínimas regulamentadas pela legislação e um preço acessível. Quem pode comprar qualidade melhor, vai procurar uma loja diferente, mas ambas sobrevivem em fatias diferentes de mercado, cada qual com seus objetivos e público. O mesmo vale para o mercado literário, o problema é que, ao contrário dos importados, não temos o desenvolvimento da produção nacional com qualidade.
12.   Qual sua opinião sobre os preços elevados dos livros nacionais?
Poderiam ser menores se fosse feita uma pesquisa e desenvolvidas tecnologias na produção e distribuição dos livros. O mercado literário está preso a produção importada, a leis que regem esses livros. Fica complicado baixar o preço quando você depende de restrições que quase equalizam o valor local com o do estrangeiro e ainda tem que compor royalties para os detentores do direito de publicação. Se investirem em autores nacionais, em produção local, em tecnologia digital para imprimir livros por demanda eliminando estoques, os preços cairiam para os livros nacionais, mas isso desestabilizaria todo o mercado do livro importando. Não é tão simples assim. Aquela coisa que só há mudança por dois motivos: necessidade ou interesse.
13.   Qual livro você falaria: "queria ter tido esta ideia"?
Na verdade, nenhum. Tem livros que adoro, autores que me encantam, mas não diria que gostaria de ter alguma ideia que eles realizaram, não seria a mesma coisa. Adoro ser surpreendido por um autor, isso fica cada vez mais difícil rsrs, mas perderia esse prazer se ficasse pensando que poderia ter escrito aquilo. Não, prefiro pensar que posso escrever algo que daria o troco a esses autores, surpreendendo-os e fazendo-os sentir como me sinto ao ler o que escrevem.
14.   Se tivesse que escolher uma trilha sonora para seus livros qual seria? (nome da musica + cantor)
Complicado rsrs. Sou eclético também no estilo musical. Minha playlist é uma miscelânea absurda de músicas nacionais e estrangeiras. Tenho instrumental, épico, clássico, rock, heavy metal, lírico, world music, mantras e por aí vai.  Não sou o mesmo em todos os momentos, então a música pode me acompanhar ou eu acompanho a música. Se algo não me satisfaz no momento, pulo para a faixa seguinte e tento sintonizar com o som que me conecta de alguma forma a realidade que estou vivendo. Não obrigo meus personagens a nada, não os obrigaria a serem tão loucos quanto eu rsrs
15.   Já leu algum livro que tenha considerado "o livro de sua vida"?
Já, vários. Dependendo da fase da vida em que estou, algum me pega de jeito. Quando as coisas mudam, outro assume o lugar, mas aqueles que passaram e me tocaram profundamente sempre ficam e de vez em quando ainda sinto o seu toque suave e sei que não estou sozinho, nunca.
16.   Você tem novos projetos em mente? Se sim, pode falar sobre eles?
No momento o meu maior projeto é ficar vivo rsrs. Estou escrevendo um romance complexo chamado Fome de Viver, é a quarta tentativa de realizar essa ideia, nenhuma das anteriores ficou satisfatória e comecei tudo de novo.  Algumas ideias são complicadas e não aceitam que as deixe de lado ou que passe adiante para outro realizar. Há quatro anos venho tentando me livrar desta, já escrevi um monte de coisa durante esse período, mas ela está lá só observando. Quando fica brava, me deixa acordado a noite, só revirando uma cena que vai ficar em algum lugar da narrativa ou será descartada, mas que até uma coisa ou outra acontecer, não vai sumir. Fome de Viver fala sobre sobrevivência, estou testando a vontade de viver dessa ideia e ela está testando a minha. Espero que ambos cheguemos vivos ao final.
17.   Você acompanha as críticas feitas por blogueiros nas redes sociais? O que você acha sobre isso?
Vejo algumas coisas, as pesquisas e as escritas tomam bastante tempo. Quando uma crítica é bem-feita, não vejo problema algum, mesmo que sejam negativas são importantes para apontar onde o autor pode aprimorar o seu trabalho. Quando as críticas são apenas opiniões, acho que entra no direito de cada um apresenta-la, se não for ofensiva, não vejo problemas, mas ignoro. Sou órfão de críticas, algumas opiniões favoráveis, acho que meus leitores tem medo de mim, nunca se sabe o que se passa na cabeça de um autor como eu, não é mesmo? Rsrs
18.   Se pudesse escolher um leitor para seu livro (escritor, alguém que admire) quem seria?
Olha, adoraria que Isaac Asimov, Frank Herbert, Robert Heinlein, Arthur Clark ou Dean Koontz dessem uma lida no que escrevi e me oferecessem uma crítica. Mas acabei ficando com outros autores muito bacanas que foram inclusive meus mestres em alguns estilos, como o Marcelino Freire (contos/crônicas) e Sérgio Couto (literatura policial). Devo ter sido lido por outros autores nacionais com quem publiquei ou que publiquei quando era editor, mas não recebi críticas.
19.   Qual a maior alegria para um escritor?
A minha é poder criar uma história que possa ler milhares de vezes e anos depois ainda continua a deixar a mesma emoção. É algo indescritível porque você gerou, viu crescer, superar todas as dificuldades e depois vencer no mundo e se realizar. É o mais próximo de um filho que se pode criar com palavras.
20.   Deixe uma mensagem a nossos leitores e para aqueles que estejam iniciando no mundo da escrita literária.
A melhor mensagem que posso deixar para os leitores é que devem dar oportunidade para o novo, devem olhar para os autores nacionais como olham para os estrangeiros, são pessoas iguais a você que merecem uma oportunidade de serem ouvidos e lidos, nada além disso. E se gostarem, que continuem fazendo; e se não gostarem, apenas deixem de lado e peguem o próximo e deem uma oportunidade também. Pode ser que o momento e o clima não sejam propícios, mas pode ser que se surpreenda e se apaixone.
Aos autores nacionais eu digo, resistam. Se não conseguirem superar-se nas próprias dificuldades, como pensam ensinar os seus personagens a ser melhor? A criatura nasce como fruto da matéria do criador, e desenvolve-se depois no mundo apenas com as ferramentas que lhe forem dadas por este, ou morrem. Seja responsável pelo que faz e faça o melhor que puder em cada momento, nada mais pode ser pedido de forma justa.

Agradeço pela oportunidade, nos vemos em algum lugar por ai.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Dinâmica do Imperativo Primário contra a Entropia – Danny Marks


          Existem muitas Literaturas e a cada momento muitas outras são criadas, mas, talvez, a função mais comum entre estas formas é a da quadridimensionalidade representativa. Sim, é uma palavra difícil de se ler e seu sentido, embora aparentemente simples, é complexo em suas implicações. Quando falamos em quatro dimensões estamos usando os elementos comuns à ciência: a largura, a altura, a profundidade e o tempo. Estes elementos, como todas as outras formas de conhecimento representativo, ultrapassam as fronteiras onde são descritos e trespassam, no sentido de interagir, com outros conhecimentos e elementos.
          Quando usamos a quadridimensionalidade na Literatura queremos dizer que uma boa literatura é um retrato em quatro dimensões psicológicas de uma sociedade, de um momento dado, de uma situação específica que ganhou importância para o autor e para os leitores que o sucederam e que ganhou perspectivas próprias. Assim é possível através da Literatura ter uma representação melhor, não apenas das roupas e costumes de um determinado grupo representado em um texto, mas também a dimensão não explicita dos sentimentos envolvidos nesses relacionamentos, as escolhas e consequências em uma linha temporal dada. Podemos recriar na mente essas situações descritas que podem ser extremamente agradáveis ou incômodas, de acordo com as intencionalidades que o texto possui e, como se sabe, não existem textos ingênuos em Literatura.
          Por esse motivo me vejo obrigado, diante da situação Global, de tocar em um assunto que, se pudesse, manteria apenas no nível ficcional como alerta a possíveis desvios da sociedade, em uma distopia que, apesar de apresentar o lado mais obscuro do humano, apresenta explicitamente ou implicitamente (pela advertência prévia) uma esperança de que as coisas vão ficar melhor do que o que foi retratado. Isso porque a tendência natural da Vida é a superação e é a única forma de fugir do resultado trágico, quando não é alcançada. Superamos mesmo quando, apesar de não sobreviver aos danos, nos mantemos vivos nos ideais que defendemos e que sustentarão e melhorarão a vida dos que nos sucederem.
          Entropia é a palavra que a ciência usa para a morte pela falta de energia para agir, a decadência máxima do Universo que só pode ser combatida pela ação positiva, pela recusa em deixar as coisas seguirem o seu “curso natural” de derrocada, que todos vivenciamos no envelhecimento. A Vida luta constantemente para se manter ativa e usa de todos os recursos disponíveis para superar-se seguindo as regras naturais. Então é bobagem dizer que a decadência é natural e que a busca pela superação constante é antinatural. A dinâmica desse movimento é complementar, é preciso que haja uma decadência para que se produza a energia necessária para se contrapor a ela, afinal, a energia não pode ser destruída no nosso universo, apenas paralisada, impedida de ser utilizada de alguma forma causando o efeito de Entropia.
          Ok, me perguntarão onde quero chegar ao linkar o Momento Atual Global e essa ladainha sobre entropia, perda de capacidade de movimentar a energia e a Literatura. A reposta não é simples, como todos os movimentos acabam sendo complexos quando vistos no contexto absoluto em que se desenvolvem e apenas quando restritos adquirem a percepção simplista que possibilita uma interpretação parcial. O que liga todos esses pontos apresentados é que a Literatura nos permite ver em perspectiva algo que de outra forma seria muito mais complexo de ser compreendido e, talvez, solucionado no longo prazo.
          Talvez você não tenha percebido ainda, mas estamos vivendo a Terceira Guerra Mundial neste exato momento. Para compreender isso é preciso que se olhe para as guerras globais anteriores de alguma forma, e muitos livros e filmes, ficcionais ou documentais, foram feitos sobre o assunto. O que se percebe por trás desse conhecimento arquivado em nossas memórias? O fator que dispara uma guerra global é quando as desigualdades atingem números assustadores, onde a energia que provocaria uma evolução benéfica fica aprisionada e impedida de agir causando o efeito da entropia. Vamos colocar de uma forma mais simples. Quando alguns grupos ultrapassam todos os limites racionais do acúmulo de recursos disponíveis deixando outros completamente desprovidos da possibilidade de sobrevivência minimamente razoável, cria-se um efeito contrário e perfeitamente natural chamado de “imperativo primário”, ou seja, a tentativa de sobreviver a qualquer custo, nem que seja pelo uso da força bruta com o risco da vida, ou seja, a violência.
          Quer um exemplo simples? Quando você fica instável? Quando as coisas estão tranquilas e confortáveis, ou quando o seu mínimo conforto está perdido e não há uma perspectiva razoável de ser readquirido? Quando um animal deixa de ser dócil e passa a ser altamente agressivo? A partir do momento que nos vemos sem saída, que tememos pela nossa sobrevivência, só há dois caminhos possíveis que dependem exclusivamente da energia acumulada em nós e ainda preservada, embora em níveis críticos: ou deixamos que nos vençam e morremos, ou lutamos de forma explosiva, incontrolável, pela nossa sobrevivência acima da do que nos ameaça. Esse é o imperativo primário que no indivíduo só é superado pela preservação da espécie. Podemos sacrificar nossa existência para que o nosso legado seja preservado e sobrevivamos através dele.
          Todas as guerras são iniciadas por esse motivo, mesmo quando os discursos utilizados para justifica-las ou manipula-las sejam outros. Só vamos a guerra quando sentimos, de forma real ou imaginária, que a nossa sobrevivência e da nossa espécie está ameaçada, e quanto maior for a urgência dessa reação, mais violenta vai ser a reposta dada: a guerra. Visto dessa forma parece fácil acabar com todos os conflitos globais, não é? Bastaria que dividíssemos os recursos de forma justa entre todos, evitando, por exemplo, que oito pessoas detenham a fortuna equivalente a todo o resto do mundo (alguns bilhões de pessoas) junto. Poderíamos promover o respeito ao outro de forma a sermos respeitados, poderíamos criar uma sociedade em que todos se ajudassem e progredissem dentro de um nível razoável de conforto e segurança. A Literatura chama isso de Utopia, algo que jamais vai ser conseguido, ou quando alcançado, será destruído em um tempo curto pela ação de alguma força natural que desmascara as bases que a sustentam, a “serpente no paraíso”. A Serpente do Paraíso não quer destruir a Utopia, apenas quer garantir que terá a utopia para si até o fim dos seus dias, e por causa disso acaba destruindo tudo, sem querer.
          Mas em termos reais o que seria essa “serpente”? Haveria alguma forma de impedir que expelisse seu veneno? Infelizmente a resposta é um sonoro NÃO! Lembra-se que a Entropia, o declínio da energia a um estado em que não produz efeitos significativos, é algo Natural e que só uma ação constante, que faça com que haja uma troca de energia entre dois pontos e que produz o que consideramos como Trabalho da Energia, é que consegue deter a Entropia?
          Ou seja, sempre haverá uma tendência natural a alguns pontos de acumularem mais e mais energia, paralisando-a, reservando-a para sua sobrevivência, que em última análise acabará por matar tudo a volta e até mesmo a esse catalizador, provocando uma reação contrária do entorno de tentar resgatar essa energia de volta, muitas vezes de forma violenta. Esse fluxo poderia ser controlado para que evitasse os efeitos mais danosos, mas jamais poderia ser impedido porque é parte do processo universal de gerenciar as coisas e ainda não conseguimos imaginar algo melhor, mas podemos fazer melhor do que estamos fazendo.
          Olhe à volta. Veja os países entrando em recessão e fomentando guerras armadas e econômicas. Veja os povos desses países reagindo com violência ou elegendo a arbitrariedade como única defesa possível dos seus interesses, enquanto amargam suas próprias faltas de recursos. Veja o decréscimo da compaixão e o aumento dos discursos de ódio e pergunte-se: O que posso fazer para evitar que isso fique pior ainda?
          Se conseguir fazer isso já deu o primeiro passo: Parar para pensar qual é a fonte do problema e como se pode buscar uma solução melhor. Podemos minimizar os estragos feitos pela entropia apenas redirecionando nossos esforços no sentido contrário. Podemos ser mais solidários e dividir o que temos com os mais necessitados e de alguma forma obrigar os que possuem muito mais do que necessitam a fazer o mesmo. E quando digo obrigar não digo para ir lá e tomar dos ricos e dar aos pobres, como um Robin Wood utópico. Estou falando de cobrar do Estado, que ajuda a eleger e manter, a cumprir com suas responsabilidades de gerir o bem-estar comum, para isso pagamos impostos, para assegurar um mínimo de condições a todos cidadãos. Não podemos ceder a corrupção nossa ou de quem for, precisamos ficar sempre vigilantes. Precisamos nos tornar melhores para querer um mundo melhor com pessoas que sejam semelhantes a nós, porque é assim que o mundo reage. Quando nos permitirmos ser menos, o mundo nos espelha e a entropia aumenta.
          Nós somos a serpente no paraíso, quando nos permitimos ser menos do que poderíamos. Quando delegamos a outros a nossa responsabilidade. Quando esperamos que a “natureza”, “deus”, “a sociedade”, como entidades distintas de nós, resolvam o problema para nós. Quando nos distanciamos do centro da ação, causamos a entropia na nossa atuação, acumulando recursos que parecem nos proteger nos tempos difíceis que estamos criando justamente por fazer isso, até que, isolados, vemos tudo a nossa volta morrer ou levantar-se contra a nossa opressão. Você faz parte da Natureza, da Humanidade, da Sociedade, do Estado, do deus que acreditar existir ou da ausência de crença. Você faz parte dessa Utopia que o Universo tenta criar, apenas comece a pensar que a função da serpente utópica não é a de destruir tudo, mas provocar uma ação que faz com que as coisas permaneçam mudando, e que as mudanças podem ser para melhor. Então a Literatura terá feito a sua parte de apresentar a questão para sua reflexão.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Seu rosto na Multidão – Danny Marks


             “Veja, olha outra vez o rosto na multidão. A multidão é um monstro sem rosto e coração”
 Negro Drama – Racionais MC’s

          Os corpos estavam decapitados, esquartejados, corações arrancados em uma fúria sangrenta. Não é uma cena de filme de terror, não é uma cena de guerra de outro pais em conflito, é a realidade de um sistema carcerário falido.
          Mas o que mais horroriza, não é a dantesca cena e sim a forma como é recebida e comentada pelas autodenominadas “pessoas de bem”, como se houvesse “pessoas de mal” pela própria natureza e não monstros criados e cultivados pelos horrores de uma guerra.
          Em uma guerra o instinto do lobo é matar sempre mais e mais rápido para garantir a sua sobrevivência, entrando em uma fúria assassina sem limites até estar cercado de corpos mortos por todo lado. O instinto da ovelha é ficar feliz de ter sobrevivido novamente enquanto o seu vizinho é que foi morto, mas o que fazer? É a vida. E quando lobos matam lobos, até mesmo as ovelhas se regozijam dessa carnificina, tiveram o que mereciam, deviam se matar todos.
          Essa histeria coletiva que toma conta das ovelhas em uma fúria assassina que vê, na morte violenta dos violentos pelos violentos, a única saída para se livrar do seu medo é que assusta mais ainda que a carnificina generalizada. O que separa um povo de uma barbárie é justamente a capacidade de se horrorizar contra atos de violência descontrolada. A multidão se torna uma turba quando decide linchar o bandido, quando decide que a morte do outro é a única saída para a sua vida, e que o outro tem que morrer de forma violenta. A turba esquece que para a pessoa que está ao seu lado, na turba, você pode ser o próximo a ser justiçado, você é o próximo a ser temido pelo seu ato violento e covarde de todos contra um até a morte.
Nesta semana o Brasil assistiu a pior chacina dentro dos muros da penitenciaria, seguida de outra menor, na mesma semana. Muros em que se deveria erguer uma ordem mais rígida e absoluta contra os que infringem a lei, que deveria recuperar indivíduos para a sociedade, e que na verdade se torna apenas um campo de treinamento para monstros insanos capazes de qualquer coisa, eliminando os que não conseguiram passar nos testes do abismo.
O governo diz que foi um acidente, talvez tenha sido. Talvez tenha sido um acidente que pessoas incompetentes tenham assumido cargos de liderança e tenham que se defrontar com situações desse tipo. Uma tragédia anunciada com nada menos que um ano de antecedência, um caldeirão fervente onde se entope lugares com quase quatro vezes mais pessoas do que caberiam, aumentando a pressão até que exploda descontrolada. Foi um acidente ter acontecido esta semana e não daqui a dois anos, quando outro assumisse acidentalmente o mesmo cargo. Como acidente, pague-se a indenização e pronto, problema resolvido.
E a população se revolta, a população quer mais é que os presidiários se matem porque custam mais caro do que o trabalhador que os vigia, custam mais caro do que o salário mínimo suado, que nem quando aposentados vão ganhar, se aposentarem. Bandido bom é bandido morto, assim não comete mais crimes. A população não comete crimes. Não bebe e dirige matando pessoas no transito mais violento do mundo. Não rouba no preço, nos impostos que sonega, nos desvios que consegue aqui e ali. A população não deixa de pagar pensão alimentícia para os filhos que nem queria ter. Não agride em brigas de torcida organizada, não usa drogas, não faz justiça com as próprias mãos.
A população não bate em mulheres indefesas, não depreda patrimônio público em manifestações controladas por facções organizadas e legalizadas aos olhos da população. A população é contra o aborto, para salvar a vida de mais um miserável sem pai, abandonado a própria sorte, se ganhou a vida agora que a pague, se virar marginal, aí a gente manda matar, quem sabe. A população tem dinheiro para pagar bons advogados e sair livre pelas brechas que a lei dá para quem pode pagar, mas não para pobre, preto, vadio desempregado, traficado no comercio de escravos que todos os dias produz milhões de desesperados, possível combustível para o circo carcerário.
A população acredita que está acima da lei, está livre da lei, que há lei igual para todos e que aquele bandido que foi morto, ladrão assassino, estuprador violento, traficante da morte, nasceu assim, sem alma. Não foi um garoto vivendo no meio das drogas e do sexo sem limites com “as novinhas” de plantão no baile funk pancadão, financiado pelo tráfico para lavar dinheiro, não foi um trabalhador desempregado e desesperado preso por roubo e esquecido no lento sistema judiciário, tendo que assumir um papel na facção para sobreviver, subindo de posto ao matar o adversário, tornando-se general ao comer o coração ainda pulsante daquele que não foi tão rápido na arte de matar ou morrer.
A população acredita que monstros não são forjados na sociedade, já nascem prontos vindos de outras dimensões e das profundezas dos abismos abertos na verdadeira e calma sociedade que atende a todos de forma igual e justa. E como a população acredita, os magistrados acreditam, o legislativo acredita, o governo acredita, e os bandidos passam a acreditar. E por saberem que não tem mais retorno, avançam ainda mais para as sombras se tornando de fato aquilo que a sociedade acreditava não ter, um câncer que matará até o ultimo que sobrar, por não ter sido prevenido, por não ter sido tratado a tempo, por não ter sido humanizado como deveria.

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