quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Máquina dos Sonhos - Danny Marks

Até hoje eu não sei bem o que aconteceu. Tenho pensado nisso todos os dias da minha vida, desde então. Todas as noites em que acordo suando, temendo ainda me ver naquela cama, sentindo o odor nauseabundo dos medicamentos.
            S.O.B  não era mau, algo em mim diz que não. Apenas queria fazer as coisas direito, da maneira dele. Mas, penso, quantas pessoas que acreditam que estão fazendo o melhor quando destroem tudo? Somos tão diferentes assim?
            A única certeza que eu tenho é que as coisas poderiam ter sido diferentes, em qualquer ponto, de alguma forma.
            Se o meu avô não tivesse deixado os Estados Unidos, depois de uma aposentadoria compulsória em situação estranha, e se mudado para o Brasil onde a minha mãe e o meu pai moravam desde que se casaram, talvez para fugir do clima frio.
            Eu quase não conheci o meu avô. Ninguém em casa falava dele, só alguns boatos que eu escutava aqui e ali, que era um espião aposentado.
            Morava em Campos do Jordão, acho que pelo clima frio, em uma casinha afastada, mal cuidada, que lembrava as da sua terra natal.
            Raramente íamos visitá-lo. Nunca ele vinha até a minha casa. Enclausurado na dele, com seus projetos eletrônicos, suas manias...
            Não pude ir ao funeral, nem meus pais foram. Eu estava internado para exames que provaram que um câncer havia crescido em meu cérebro e que não havia muito tempo para fazer qualquer coisa.
            Não é fácil você descobrir que o resto da sua vida não vai ultrapassar muito os quinze anos que se passaram correndo, sem nenhum sintoma anormal, até que...
            Um médico amigo da família disse que havia uma clínica especializada em Campos, faziam pesquisas e tratamentos caros, poderia ser uma chance de prolongar os dias. Meus pais enfrentaram o frio e nos mudamos para a casa vazia do meu avô. A poltrona onde havia sido encontrado morto com o seu livro de cabeceira no colo, ainda estava lá. Mas havia muito mais.
            Fiquei no quarto mais alto, o que tinha uma vista melhor. A cama colocada próximo a janela para poder olhar os pinheiros e a neve quando caísse. O quarto do meu avô.
            Não havia muito ânimo para mudar as coisas, estávamos ali por pouco tempo. Eu menos que os outros, com certeza. Entre um tratamento e outro, paliativos que massacravam o meu corpo e me deixavam debilitado por dias. Quase não saia do quarto e isso me permitiu estudar cada pequeno milímetro dentro daquelas paredes.
            Foi assim que eu descobri o alçapão. Uma pequena escada muito bem disfarçada que descia do teto e levava a um cubículo sem nenhuma ventilação, com o que parecia ser um rádio amador velho e um computador de ultimo tipo instalados lado a lado em uma mesa velha com uma cadeira empoeirada. Apenas isso.
            Não sei por que nunca contei essa descoberta para os meus pais, para mais ninguém. Só agora eu me atrevo a falar a respeito...
            De alguma forma eu consegui ligar aquele equipamento. O rádio parecia quebrado, não emitia nada embora a sua estranha antena estivesse instalada. Descobri um cabo ligado ao computador, logo acima das letras escritas em vermelho: S.o.B.
            Entrei na internet para ver o que poderia significar aquelas letras e em uma infinidade de resultados dois me chamaram a atenção: “Secret Official Bureau” e “Son of Bitch”.
            Meus pais nunca me deixavam sozinho em casa, mas eu passava muitas horas dormindo de dia e tinha a noite para explorar tudo o que quisesse, ainda que, normalmente, eu ficasse apenas com a tv ligada para fazer barulho.
            Mas aquela coisa no sótão me intrigava, e quando me senti melhor fui vasculhar os livros velhos do meu avô em busca do seu significado.
            No meio do livro de cabeceira dele uma frase escrita em uma página com a mesma tinta vermelha. “Preciso destruir essa coisa antes que cause problemas”.  Não estabeleci nenhum vinculo entre a “coisa” do livro e a que estava no sótão. Até que os sonhos começaram.
            Era estranho, a princípio. Quando eu conseguia dormir era como se estivesse em outro lugar, em outro momento, vendo coisas que não poderia ver. Pelos olhos de outra pessoa que não era eu. A única coisa que sempre percebia, não no início, mas depois, quando passei a prestar atenção a todos os detalhes, era o zumbido da máquina que continuava ligada no sótão. Nem eu mesmo sabia por quê. Nunca pensei em desligá-la.
            O zumbido era onipresente em todos os sonhos, ainda que ao acordar eu não ouvisse nada. Mas isso era só o começo.
            Comecei a identificar as pessoas dos sonhos como sendo pessoas que eu via no hospital, na rua, em algum lugar. Eu sabia o que estava acontecendo com elas. De alguma forma eu entrava na vida delas e vivia com elas por alguns anos. Como se fosse uma delas. As esperanças e realizações, coisas que ainda iriam acontecer eram passadas para mim através do tempo infinito e estranho dos sonhos.
            Só isso já era algo que deveria ter me advertido para o que estava acontecendo, mas quando eu vi a enfermeira Maria com o anel de noivado, o mesmo que eu havia visto em sonhos, junto com o seu casamento e os filhos crescidos. A vida dela presente e futura. E quando eu havia estado no hospital da ultima vez nem sabia que ela tinha namorado.
            Então percebi que os sonhos não eram apenas sonhos, eram projeções, partiam do presente das pessoas e se lançavam em longas divagações. Vidas inteiras vividas em algumas horas, pelos olhos de outros, dentro de seus corpos e suas mentes, suas emoções.
            Eu tive a minha primeira experiência sexual através de um sonho. E depois eu fui mulher e homem. Estava simplesmente viciado em tudo aquilo, não conseguia mais viver sem esse estado onírico para além do que era eu.
            Eu tento não me culpar pela invasão de privacidade, quem poderia resistir a algo assim? Eu nem sabia o que estava fazendo. Podia entender cada uma das pessoas que conhecia, que me chamavam a atenção, que povoavam os meus sonhos com seus sonhos, seus sentimentos.
            Então eu decidi que devia olhar para o que eu era, ou seria. De alguma forma eu tinha que saber o que eu poderia ser se conseguisse sobreviver. Mesmo sabendo que não havia essa possibilidade.
            Pela primeira vez eu tive o pesadelo.
            Um imenso e negro nada que absorvia tudo. Um infinito nada. Vazio de todas as coisas. Vazio de mim.
            Acordei suando, com o cheiro nauseabundo de remédio no ar. Subi ao sótão e fiz o que qualquer garoto na minha idade faria com algo assim. Fui gritar com a máquina que não me satisfazia o único desejo que era totalmente meu. Eu queria o meu sonho.
            E a máquina apenas zumbia indiferente.
            Xinguei, gritei, implorei, chorei. Filha da puta. Desgraçada. Por que eu?
            Comecei a passar mal. Me arrastei para a cama e só tive tempo de fechar o alçapão antes de vomitar até o que não havia no meu estômago antes de desmaiar.
            Acordei dois meses depois, em um quarto de hospital. Meus pais choravam muito, mas eu já estava acostumado. Eu devia ter piorado para além das expectativas e provavelmente tinha apenas alguns últimos momentos.
            Quando viram que eu acordei foram chamar o médico que veio apressado. Me fez um monte de perguntas e não respondeu nenhuma minha.
            De alguma forma inacreditável eu estava curado. O tumor havia sumido completamente, nem sinal de que um dia havia estado lá.
            Recebi alta dois dias depois, com uma infinidade de exames que não explicavam o que havia acontecido. Só um milagre. Eu havia desmaiado e quando acordara novamente estava curado. Só um milagre. Mas eu sabia que não era isso. Algo dentro de mim sabia.
            Voltamos para a casa do meu avô, mas a máquina não funcionava mais. Nunca mais funcionou se algum dia realmente o fez. Talvez, de alguma forma, o tumor tenha criado a ilusão de tudo o que eu me lembrava. Um ano depois nos mudamos de novo.
            Passaram-se trinta anos e eu ainda não consigo voltar naquela casa. Ainda a tenho, herança dos meus pais. Pago uma mulher para limpar ela de vez em quando, menos o ultimo quarto que permanece intocável.
            Não sonho mais, nunca mais. Mas as vezes eu ainda sinto que o vazio completo está lá dentro em algum lugar e escuto apenas o zumbido, sempre presente...

Um comentário:

Unknown disse...

Danny, meu amor


Sempre se superando.
O conto é ascendente, rico em detalhes e na linguagem que usa. Prende e supreende do início ao fim.

Adorei o final. O conto para mim é uma metafóra do passado, do inconsciente que nos habita e determina. Rico em grandezas.

"Não sonho mais, nunca mais. Mas as vezes eu ainda sinto que o vazio completo está lá dentro em algum lugar e escuto apenas o zumbido, sempre presente..."


Parabéns pelo Prêmio Escriba 2011 do PP É Proibido Proibir, fechou com chave de ouro.

Beijo e afagos,

Anna

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