A casa velha, como todos
a chamavam, foi reformada. Apenas uma pintura comum para esconder as manchas,
uma limpeza rápida e algumas telhas trocadas.
Foi o suficiente para
que todos na rua aguçassem os olhos atrás de cortinas ou disfarçados em
caminhadas com cães, que outrora andavam soltos na rua.
Demorou alguns dias
antes que, no entardecer, o caminhão despejasse moveis e outros pertences na
casa.
— Você viu aquela
mobília? Coisa fina. — Disse a dona do 264 para a do 370. Mas logo o ultimo
capítulo da novela assumiu a devida importância.
Até que o carro importado apareceu na garagem
da casa velha.
Mais estranho que isso
foi quando o mesmo desapareceu, trocado por um modelo mais simples de vidros
escuros e alguns arranhões na lateral.
O Jonas do bar da
esquina discutiu com alguns clientes fiéis, entre uma rodada e outra de
cerveja, as possibilidades do que estava acontecendo:
— Deve ser alugada. O
dono veio para conferir e agora está o inquilino morando.
— Será? Não vi a cara do cidadão. Se for corintiano...
— Você acha que todo
mundo é corintiano, Zé. Quem além de
você torceria por uma merda de time desses?
— Não foi isso que você
falou no campeonato de...
A conversa logo mudou
para os valores nacionais e internacionais da democracia futebolística.
E as coisas foram
acontecendo. Nada que assustasse muito, mas o fato que o morador da casa velha
era um total estranho não passou despercebido. Alguns até já haviam conseguido
vê-lo, quando entrava ou saia com o seu carro velho, logo de manhã cedo ou
tarde da noite.
Nos finais de semana,
uma total ausência. Não demorou muito para que surgissem as especulações.
— Deve ser funcionário
público. Tem um jeito esquisitão de quem manda no mundo. Todo funcionário
público se acha o tal.
— E desde quando
funcionário público trabalha tanto?
— Mas quem disse que trabalha?
Sei não. O cara sai logo cedo e volta tarde... mas trabalhar? Não vi nada que
dissesse que ele trabalha, ou onde.
— Isso porque você faz
questão de mostrar para todos. É só olhar o seu carro que eu sei de tudo. “Camping
Astro Rei”, “Familia Monstro”, dois gatos, um cachorro, três filhos...
— E o colante dos
engenheiros? Coisa ridícula aquilo.
— Não vem não que
aquela coruja que colocou no seu é coisa de boiola...
— Eu só tenho o emblema
do timão.
E a conversa novamente
tomou outro rumo. Mas o incômodo permanecia, logo abaixo dos olhares furtivos,
como um caroço sob a pele social, algo que precisava ser estudado, porem não
assumira uma importância de ir ao médico.
Até que, não se sabe
quem, vaticinou: É traficante!
Os risos nervosos só
serviram para demonstrar o que todos estavam pensando, mas não tinham coragem
de falar. A coisa era muito séria.
Um deles alegou ter
visto o estranho ajeitando uma arma sob a roupa, discretamente.
Não que fosse alguém ruim.
Até cumprimentava um ou outro quando encontrava pela rua, mas não falava mais
do que uma ou duas palavras entre o ir e vir.
Puro disfarce,
provavelmente. Esses caras tem sangue de barata, frio como o inverno.
A verdade é que todos
temiam o estranho da casa velha. Seus hábitos incompreensíveis. Seu carro velho
sempre limpo.
A casa era arrumada por
uma empregada que não era dali.
Claro que deram um
jeito de interrogar a moça, saber mais fatos.
A mobília? Coisa fina, da
boa, mas ocupa mais espaço que deve, sabe, coisa de gente metida a besta que
gasta muito só para ostentar. Paga direitinho, mas sempre fica por perto, como
se temendo que roube alguma coisa. Sou pobre, mas sou honesta! Imagina, pegar
alguma coisa que é dos outros?! Traficante? Sério? Deve ser mesmo. Bem que desconfiei, tem cara de bandido. Nem
fala muito, mas tem aquele jeito insinuante que nem sei. Arma? Nunca vi. Deve
levar com ele, com medo da polícia dar batida, sabe? Acho melhor arrumar outro
emprego. As coisas estão difíceis, mas não quero nenhuma treta com essa gente.
Imagina ser presa? A policia logo vai
achando que a gente é cúmplice só porque é pobre. Eu sou honesta.
Em pouco tempo era
consenso. O cara era perigoso e precisavam dar um jeito nisso. Se livrar
daquele incomodo de forma cirúrgica. Deixar claro que na comunidade não
admitiam esse tipo de coisa.
Mas e se ele resolvesse
revidar? Dar um tiro em um ou, sei lá, sumir com alguém na calada da noite?
Esses caras são casca grossa, levam tudo para o lado pessoal e resolvem na
bala.
Melhor isolar o
estranho, manter distância.
Cumprimentar? Nem pensar! Vai que alguém ta vigiando o cara e pensa que sou
cúmplice? E se for algum rival? Eu não!
Todos esses eventos
transcorreram ao longo de um ano e alguns dias. A casa velha e seu morador
esquisito foram esquecidos no Natal e no Ano Novo, quando todos da rua se
reuniam para as festanças. Como se não tivesse ninguém lá. E não tinha. A
garagem vazia deixava claro.
Ficou vários dias
vazia. Ninguém sabia o motivo.
Será que mataram o cara? Ainda bem. Bandido
bom é bandido morto. Um canalha a menos no mundo.
Estava
vazia ainda quando a casa do seu Tonho da esquina foi invadida e roubaram a
coleção de moedas que ele tinha. Ninguém viu quem foi, mas todos tinham uma só certeza,
o estranho estava envolvido. Deve ter dado o serviço. Só pode. Como iam saber
que o Tonho estava fora com a família, na casa da sogra?
Isso
não podia ficar assim. Não naquela rua. Gente honesta e trabalhadora.
Foram tirar satisfação
com o estranho, quando ele pretendia fugir, logo cedo.
Dois
homens seguraram o cara e arrancaram a chave da casa da mão dele. As mulheres
invadiram e saíram revirando tudo. Iam achar a prova e dar um fim naquela coisa
toda.
Alguém chamou a polícia para levar o
criminoso, já com as testemunhas arroladas no processo condenatório. Melhor
assim que linchar o bandido. Gente pobre, mas de bem.
Quando
o policial chegou reconheceu o suspeito.
—
O senhor não é aquele do condomínio Santo Amaro?
Todos
ficaram horrorizados, então o cara já tinha uma extensa ficha de assaltos em
condomínio de luxo! Bem que haviam desconfiado.
—
Sim, sou eu mesmo, policial.
—
Assaltaram a sua casa de novo? Que azar,
heim. Desta vez vamos pegar os pilantras.
—
Na verdade eu não fui assaltado. Não desta vez. Mudei pra cá para não pagar uma
fortuna e ficar preso dentro de casa, com os bandidos do lado de fora. Não tem
jeito, quando os bandidos querem, entram e levam tudo, até a dignidade. Tive
que vender o carro para pagar algumas dívidas.
Queria um lugar mais tranqüilo, ir conhecendo as pessoas aos poucos... As
pessoas andam muito assustadas. Eu mesmo morro de medo...
Então
o cara não era um bandido, era mais uma vitima. Esse mundo violento!!!
Os invasores foram se
afastando, com medo de serem presos pelo arrombamento. Mas não foi dada queixa
nenhuma.
Dias depois a casa
velha estava a venda. Vazia de novo.
Os
moradores ficaram aliviados em suas culpas.
Mas que o cara era
estranho ninguém pode negar. Se ao menos
ele tivesse se mostrado mais receptivo...
Então
alguém levantou o assunto que tinham medo de comentar.
—
Mas... se não foi ele quem assaltou a casa do Tonho, quem foi?
Aquela
rua nunca mais foi a mesma...
Um comentário:
Danny, Amor
Uma crítica social, uma verdade do humano. O estranho é o outro. Mas qual outro?
Beijos meus,
Anna
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