quarta-feira, 8 de junho de 2011

Construindo um Texto Literário – P3 – Psiquismo do Personagem


                Por ser uma parte fundamental do texto literário, o personagem necessita ter a “consistência” ideal para que cumpra o seu papel como autor da ação. Essa consistência é o que passaremos a chamar de Psiquismo do Personagem.
                Em um texto mínimo, como o micro-conto, não há espaço para que se estabeleça a construção desse psiquismo, que nada mais é do que a delimitação da personalidade que o personagem apresentará. Nesses casos o autor utiliza o recurso do conhecimento enciclopédico do leitor, e em alguns casos, dos conhecimentos arquetípicos inerentes ao inconsciente humano.
                Veja, por exemplo, o micro-conto de Monterrosso:
“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”.
                Há dois personagens explicitados nessa história:  O que acorda e o Dinossauro.
                O dinossauro não precisa de maiores apresentações porque já faz parte do conhecimento enciclopédico da maioria dos leitores: Um réptil gigante.
                Por outro lado, o outro personagem implícito, aquele que acorda, não é identificado. Não sabemos de quem se trata, não conhecemos as suas características. Sabemos apenas que dorme, portanto trata-se de algum tipo de animal, pressuposto que apenas os animais dormem.
                Porém, o fato do autor ter usado a palavra “ainda”, já nos dá uma infinidade de informações importantes. Em primeiro lugar que a ação já vem acontecendo há algum tempo. O dinossauro já havia chegado e permanecia no mesmo lugar, portanto possui algum interesse no mesmo. O outro personagem acorda, e defronta-se com o dinossauro, com quem já havia estabelecido um contato anterior. O termo “ainda” também nos transmite um desejo interno desse personagem de que o personagem não estivesse mais ali. Como isso pode ser constatado? Pela lógica. Se o personagem que dormia não tivesse interesse de perder o contato com o dinossauro não teria adormecido, ou caso o tivesse feito sem o seu desejo, ficaria feliz por constatar que o mesmo ainda não havia ido embora, mas a ausência de uma exclamação no final da história nos demonstra que não é algo desejável para o personagem que dormiu. Portanto, chega-se a conclusão de que há um temor do personagem que dorme em relação ao dinossauro.
                Essas duas características, dormir e temer, estabelecem o vinculo do leitor com o personagem que dormia, cria a identificação que permite que o leitor possa colocar a sua própria história no texto, complementando-a. Portanto temos um vinculo psíquico formado com um personagem que nem aparece na história, mas não com o outro personagem, o dinossauro, que aparece explicitamente. O saber enciclopédico poderia acrescentar muitos mais elementos, como o fato de que havia dinossauros carnívoros e de que os hominídeos não habitaram o mesmo ambiente que estes. Mas isso ficaria para uma análise textual, o que não é o nosso desejo neste momento. O importante aqui é demonstrar como um simples elemento textual pode nos dar pistas e ajudar a construir o psiquismo do personagem.
                No meu texto “Calo em Rosa” apresento um monólogo em que o narrador é um personagem e onde todo o cenário é apresentado diretamente na fala do mesmo. Não apenas o cenário, mas os outros personagens como a Rosinha, o Doutor – com quem o personagem está se comunicando, o Hermelau e os Filhos da Rosinha.
                Apesar de não haver descrição direta de nenhum cenário ou dos personagens, que encontram-se diluídos no monólogo, alguns elementos propiciam um aprofundamento da construção de ambos.
Existem dois momentos em que a ação ocorre no tempo, o momento atual, do encontro da interlocutora com o personagem Doutor, e o tempo subjetivo, passado, que é descrito pela sua fala. A época em que os fatos ocorreram é apresentada em vários momentos, como por exemplo,  quando a interlocutora fala em cinqüenta anos transcorridos do primeiro encontro com a Rosinha e o fato de que andava de bonde, um veículo de época.
Com esses elementos de cenário, justifica-se, pelo âmbito social, a opção da interlocutora de esconder do mundo os seus sentimentos em relação à Rosinha.
Temos então vários personagens com diferentes níveis de aprofundamento psíquico.
A interlocutora, objeto de identificação, necessariamente precisa ser mais detalhada na sua estrutura psicológica para poder gerar a identificação do leitor com a trama.  Por essa mesma lógica, faz-se necessário que haja um aprofundamento, não necessariamente tão grande, da personagem Rosinha, com quem se estabelece o conflito descrito no texto. Já os outros personagens são secundários na história, aparecem apenas como parte do “cenário” que vai se construindo e contra o qual se dará as ações.
Desta forma pretende-se demonstrar que um personagem pode ter um aprofundamento psíquico, ter suas características de personalidade, identificadas diretamente ou indiretamente. Pode ser necessário que haja esse aprofundamento, ou não, de acordo com o que o enredo da história exigir, e o mesmo pode ser feito em vários níveis sem prejuízo para a trama. Porém, se um personagem ganha “força” no texto, ele precisa atuar diretamente na trama, influenciando-a.
Lembrando que o cenário pode atuar como personagem, como a Pedra de Drummond já apresentada anteriormente, e neste caso não ter um psiquismo vinculado ao humano, mas metaforizado em relação a este.
É o que ocorre com o “calo” da interlocutora, que é parte cenário e parte uma metáfora utilizada para os sentimentos desta, quase um personagem em sua ação no mundo, apresentando-se como uma ação e como o resultado desta.
Estudar a forma como o personagem atua, seu aprofundamento psíquico na trama, sua inter-relação com o cenário e com os outros personagens, permite perceber mais profundamente a história, a estrutura utilizada pelo autor para apresentar a idéia e, acima de tudo, criar a identificação e a verossimilhança.
Obviamente há muito a ser dito sobre esse elemento textual, o personagem, mas neste momento o objetivo é apenas apresentá-lo de forma simples sem, contudo, negligenciar a sua importância para o texto literário, seja qual for o modelo adotado pelo autor.
Lembrando que todos os elementos do texto literário se integram em uma composição harmônica de forma a reforçar-se mutuamente, mas isso fica para o nosso próximo encontro.
Até lá!

3 comentários:

Lariel disse...

Agora você me confundiu legal!!!Meus personagens são criados "fraquinhos", não dou nome a eles, (lembra do genro do artesão no Baú????rsrsrsrsrs)....gosto de brincar com minhas criaturas...elas vão adquirindo personalidades independente da minha vontade...é um exercício de pura insanidade....uma vez nasceu um TEO....(sim a intenção era criar DEUS) mo meio da trama roubaram meu personagem central (tão comum roubos de idéias não????)...das cinzas Teo renasceu como um cão sarnento....um cão de asas de luz que não estava programado,nem desejado, sequer pensado....

Danny Marks disse...

Marli,

As "dicas" são gerais, não cabem em casos em que a intencionalidade do autor obriga que seja de outra forma.
Veja Saramago, também não usa nomes de personagens.
Embora alguns textos possam ser escritos por "formulas", eu mesmo não recomendo que seja feito. A força de um texto tem que estar fundamentada na criatividade, no inusitado, na capacidade de reinventar e de criar novas soluções para velhos problemas.

Beijos Mágicos

Lariel disse...

Obrigada mestre, numa quinzena de escuridão e tristeza, seus apontamentos são pontos de luz num universo quase sem esperanças!!!!

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