terça-feira, 7 de junho de 2011

Construindo um Texto Literário – P2 – Personagem Difuso


                Como foi apresentado antes, o personagem é uma parte fundamental de um texto literário, é com ele que o leitor vai vivenciar as ações, desenvolver a sua identificação e estabelecer a verossimilhança necessária para que o texto resulte em um eficiente emissor da mensagem que o autor quer transmitir.
                Porém, em alguns casos, os personagens não cumprem apenas o papel que lhes é destinado, confundem-se com o cenário e vice e versa. Para exemplificar eu trouxe dois textos curtos de Carlos Drummond de Andrade, um mestre na arte poética e na escrita.

Quadrilha – Carlos Drummond de Andrade
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Percebe-se neste texto que os personagens são ao mesmo tempo cenário e atores da ação. Não há um local onde a ação ocorra, pois o cenário é a vida, mais precisamente o sentimento Amor, que é compartilhado entre os personagens, mas experimentado de formas distintas, com soluções diferentes para cada um.
Em poucas linhas o autor nos descreve um arquétipo do psiquismo humano: o Amor não correspondido.
Como isso é feito? Pelo simples alinhamento dos personagens em relação ao Amor. Tem-se a sensação imediata de uma continuidade, não de um retorno. O Amor passa de um personagem para o outro, mas não retorna, segue em frente.
Qualquer pessoa que tenha amado de alguma forma, consegue perceber que a simples falta de retorno do sentimento gera uma insatisfação, uma carência. O Amor é dado, mas não retribuído, não retorna como dádiva do outro para quem o ofertou.
Na primeira parte do poema se estabelece o conflito que é justamente a carência gerada por um amor que não é correspondido. Estabelece-se também o tempo, passado, e a continuidade.
Então na segunda parte o autor faz o fechamento do texto apresentando outros cenários que representam arquétipos: um pais, um convento, o desastre, “ficar para tia” = permanecer solteira, o suicídio, o casamento.
Em poucas linhas o autor constrói várias histórias que se complementam, demonstra o psiquismo de cada um dos personagens e a sua escolha de vida na história.
João, ao não ter o amor correspondido, resolveu fugir para outro pais, começar outra vida. Tereza decidiu dedicar o seu amor a Deus. Raimundo teve um fim trágico, possivelmente produzido por uma revolta interior, arriscou-se mais e acabou sucumbindo. Maria sufocou o seu amor e jamais o deu a outra pessoa. João entrou em depressão e terminou com a própria vida, e Lili, que não amava ninguém, casou-se, talvez sem amar. Finalmente o J Pinto Fernandes, que não havia entrado na história, foi o único contemplado com o casamento, mas, talvez, não com o Amor.
Todas essas histórias seriam mínimas se não fosse um outro personagem que não aparece diretamente na mesma, o Eu Lirico do autor, que surge como um narrador em terceira pessoa. É com este personagem, o narrador, que o vinculo com a realidade se estabelece, com quem o leitor se identifica ao ver o que acontece na vida de cada uma das personagens que acabam se tornando o cenário para os sentimentos deste e a história ganha a amplitude necessária.

Em outro texto do mesmo autor o cenário ganha as características de um personagem:

No Meio do Caminho – Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

A pedra que estava no meio do caminho é um personagem metaforizado, assume uma amplitude de ação pelo simples fato de estar no meio do caminho.
Neste texto o conflito se estabelece não no cenário descrito, um caminho com uma pedra, mas no universo interior do Eu Lirico representado pelo narrador, que permite com que o leitor se identifique com o conflito e o transporte para seu mundo interno, arquetípico, como o encontro com uma dificuldade no seguir. Não se dá o tamanho da pedra, não se diz qual o caminho, não há pessoas caminhando por ele, mas todos esses elementos estão no texto e configuram a verossimilhança com a linguagem metaforizada que permite a identificação arquetípica do leitor. A pedra pode tornar-se qualquer coisa no leitor, assim como o caminho, e este, o leitor, torna-se então o personagem no lugar do narrador, atuando diretamente na própria história que vai criar em seu mundo interior à partir da que foi apresentada.
Com isto demonstramos que o termo “personagem” é algo que transcende a simples caracterização. Personagem, em um texto literário, é tudo aquilo que, de alguma forma, provoca uma ação, cria um efeito, contrapondo-se com o “cenário” que é tudo aquilo que sustenta a ação do personagem, que a justifica.
O cenário pode auxiliar na construção do psiquismo do personagem, e o personagem pode simplesmente ignorar o cenário, apresentando-o diluído nas suas ações.
A construção do psiquismo do personagem, seu aprofundamento ou superficialidade, é o tema do nosso próximo encontro. Nos vemos lá.

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