quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Uma Dose de Veneno e Dois Cubos de Gelo - Danny Marks


           A grande questão não é que santo de casa não faz milagres, mas o fato de que as vezes precisamos de outra coisa para solucionar as coisas que nem reza brava consegue dar jeito.
          É por esse motivo que tenho percorrido o mundo em busca de grandes gurus, pessoas iluminadas, e outras afins, na tentativa de alcançar um estado nirvânico, sem controle governamental ou coisas do tipo.
          Não é que não goste de governo, que todos sabem ser um mal necessário para que se possa ter alguém para culpar por todas as coisas erradas, feitas ou não por ele. Na verdade, não gosto de ficar mandando. Fico esperando que o bom senso prevaleça, que os acordos sejam cumpridos, que a inteligência dite as regras e, acima de tudo, que me deixem em paz para que possa cuidar do meu próprio caos interior.
          Os opostos se complementam, é a regra inflexível da existência que descobri há tempos, e culmina por me brindar com amigos caríssimos que me ajudam a ver as coisas de outra forma, e até a adquirir uma certa sabedoria alternativa aos milagres nunca alcançados.
          Uma dessas pessoas que me trazem a alegria de viver com sua simples presença, é a Juíza. Pessoa equilibradíssima, sempre generosa e de uma paz que faria inveja a muito santo de pau oco que se arroga milagroso nos tempos de hoje. Não por outro motivo que me apraz por demais ter longos diálogos com essa pessoa e, quando as complexidades das agendas permitem, sentamo-nos no mesmo restaurante para degustar a companhia e trocar experiências.
          Foi em um dia desses que a percebi triste, incomodada com algo, o que obviamente me perturbou mais ainda. Não poderia deixar que meu melhor exemplo de eixo do mundo se desestabilizasse sem, ao menos, tentar descobrir qual a tragédia que poderia acometer a humanidade, além de todas as outras.
          — Não é nada, bobagem. Apenas a minha empregada que pediu demissão e pediu para enviar pelo correio o acerto das contas.
          Eu, que já conhecia de outros carnavais as duas jararacas velhas que serviam de empregadas para a Juíza, estendi o assunto apenas por curiosidade. O que poderia ter acontecido de tão grave que a levara a demitir a peçonhenta criatura? E nem sabia qual das duas seria, pois embora de espécies diferentes, equivaliam em periculosidade ofídica.
          — Nossa, que coisa chata. O que houve? Pegaram dinheiro da sua carteira novamente? Tentaram afogar o cachorro na piscina? Botaram fogo na arvore de natal? — Arrisquei algumas opções que já haviam ocorrido anteriormente, sem que a Juíza tivesse perdido a sua postura equilibrada e generosa. Não conseguia conceber algo tão grave que pudesse provocar a demissão das colaboradoras centenárias.
          — Brigaram uma com a outra. E a Anaconde me ligou dizendo que não vai mais trabalhar lá. Imagina, depois de vinte e dois anos morando com a gente, pediu demissão por telefone e ainda quer o acerto pelo correio. Como se fosse possível isso. A Demoniana, claro, deve estar exultante. Há tempos que não se dão bem e sempre ficam fazendo intriga uma com a outra.
          — Sim, eu sei. Ainda acha que foi a Demoniana que sumiu com o dinheiro para jogar a culpa na outra?
          — Ah, vai ver que alguma delas estava precisando. Deixei para lá. Poderiam ter pedido, mas não vou ficar acusando ninguém, ainda mais que uma delas é inocente, coitada.
          — Sei, inocente. Como no caso do cachorro que caiu na piscina porque deixaram a porta aberta.
          — Anaconde já tinha dito que não gosta de cachorro, nem olha para ele. Vai ver que esqueceu de fechar a porta e como ele ainda é criança, escapou. Ainda bem que o seu Armando estava por perto. Por falar nisso, nem sei o que o seu Armando estava fazendo por ali, ele deveria ficar na portaria do condomínio. Enfim, não aconteceu nada. Mas as duas ficam jogando a culpa uma na outra, querendo que eu demita essa ou aquela. Não posso fazer isso, elas já estão comigo há anos, me ajudam a fazer as coisas. Não posso deixar alguém que não conheço entrar na minha casa.
          Acenei com a cabeça concordando abismado. Como desejava ter essa alma clonada de Gandhi. E essas nem eram as mais graves ofensas que aquelas duas “colaboradoras” já tinham feito. Eu apenas não queria deixar a minha amiga chateada com a minha postura que, comparativamente, seria crudelíssima.
          Me sentia arrasado por não conseguir alcançar essa tranquilidade de conviver com a adversidade e ainda ter uma paz iluminada e a tranquilidade equilibrada que a minha amiga Juíza tinha, quando percebi que o garçom se aproximou para receber o pedido. Ela olhou diretamente para ele com aquele olhar santificador e disse suavemente.
          — Você pode me trazer uma dose de veneno e dois cubos de gelo?
          Demorei algum tempo para processar o pedido, jamais teria conseguido ser garçom na vida, que apenas terminou de escrever e perguntou:
          — A senhora deseja que embale para viagem?
          Isso foi o fim. Parei de procurar pelo mundo a fonte da filosofia transcendental, ela estava o tempo todo bem aqui ao lado, ao alcance da mão. Bastava-me apenas erguer a venda que me tapava os olhos para ver. Quem precisa de juízo quando se conhece a Juíza? Que os deuses abençoem.

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