sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A Escolha de Cypher – Danny Marks


          Para quem ainda não assistiu ao filme Matrix, fique preparado, contém spoilers. É inevitável porque vou fazer referência a um personagem da trilogia cinematográfica como ponto de partida, porque se torna um arquétipo da modernidade. Para entender melhor é necessário dizer que a Matrix é um mundo virtual onde os humanos cultivados e escravizados por máquinas (sistemas), vivem suas vidas em um sonho eterno (ideologias), enquanto suas energias vitais são absorvidas para alimentar as máquinas (sistemas) que os aprisionam.
          Há muitas críticas possíveis a essa forma de roteirização, devido à lógica que ela envolve em seu nível primário, mas isso não arranha a trilogia de filmes porque a base em que se apoia segue o padrão de ação e filosofia existencial que acaba por encantar boa parte do público de uma forma ou de outra. Então vamos nos fixar nesta questão mais filosófica: A Utopia Humana contra a Matrix.
          Cypher é um dos humanos resgatados da prisão das máquinas por um artifício usado dentro da virtualidade da Matrix. Ser resgatado da escravidão é ser lançado no horrível mundo dominado por máquinas assassinas que vão caça-lo e mata-lo implacavelmente, enquanto tenta derrubar o sistema de dentro e de fora. É uma guerra dupla, constante, com resultados duvidosos, para a qual não se está preparado, e da qual não há retorno.
          Ou não havia, porque Cypher consegue fazer um acordo com o seu captor, decide trair os guerrilheiros e voltar a ter uma vida de ilusão, reinserido no sistema até a morte, vivendo em um mundo imaginário com vantagens que não teria na sua vida anterior de escravo, ou na sua vida de guerrilheiro liberto. E por isso é classificado como um dos vilões traidores da humanidade.
          Uma outra questão interessante que segue na mesma linha é dada pelo Arquiteto, uma entidade-programa que vive à parte da Matrix e é responsável por criar a realidade virtual onde os humanos são cultivados até a morte natural. O arquiteto revela que as primeiras versões da Matrix eram projetadas para serem verdadeiros paraísos, as utopias humanas realizadas na virtualidade. Mas não deram certo, os humanos as rejeitavam como real, não aceitavam que a realidade pudesse ser tranquila, benéfica a todos. E, segundo o Arquiteto, colheitas inteiras (de humanos) foram perdidas, até que se inseriu um mundo em que as diferenças e os desafios criassem um estado constante de conflito.
          Como é possível juntar essas duas coisas? O ser humano rejeita um sonho bom, mesmo quando lhe parece real, só porque todos estão bem, basicamente no mesmo nível que si mesmo? Cypher decide voltar a Matrix desde que tenha uma vida boa, mesmo sabendo que será um escravo até a morte, mas não quer lembrar de nada do que viu na sua liberdade, quer esquecer de que um dia foi livre, e voltar para um mundo onde as diferenças e conflitos existem, desde que ele ocupe um lugar acima dos outros.
          Essas duas questões se unem através do paradigma de que a competitividade humana faz parte de sua essência e jamais aceitaria uma total igualdade. Não estaríamos programados pela nossa própria essência humana a aceitar um mundo em paz, onde a ordem absoluta desse a todos os bens que desejavam. Necessitamos lutar para estar acima dos outros, necessitamos nos sentir superiores, necessitamos nos sentir privilegiados, para a vida fazer sentido?
          Isso poderia explicar o motivo de por que inúmeras pessoas desistem dos seus avanços nas lutas sociais, e passam a apoiar os algozes que vão restringir os direitos. A identificação com o carrasco, na chamada “Síndrome de Estocolmo”, estaria impressa na nossa essência. Amamos o predador que nos abate, porque desejamos no mais íntimo, SER o predador. Aceitamos ser as presas porque desejamos sempre abater nossas próprias presas. Essa seria a raiz animal da nossa essência que nem mesmo o verniz cultural conseguiria vencer. Mas será que isso é verdadeiro?
          Será que somos programados pela natureza a viver de forma hierárquica predatória, almejando subir na escala às custas de nossas vítimas, e não mudaremos nunca isso? Estaria a escolha de Cypher determinada em nossos genes? Seria o rebelde guerrilheiro o verdadeiro Messias da Humanidade, dizendo para todos que devemos sim buscar o topo à custa de tudo e de todos que se opuserem a isso, sem limites morais para alcançar o sucesso? Como ter certeza? Teríamos que verdadeiramente criar uma Matrix, onde um mundo perfeito, uma Utopia, fosse criada e vivenciada pelos seus integrantes. Mas tanto na filosofia, quanto na literatura, as utopias estão fadadas ao fracasso. Sempre há uma “serpente” disposta a nos banir do paraíso e nos lançar na dura e cruel luta pela sobrevivência.
          Em todos os milênios de nossa cultura, não conseguimos conceber uma utopia que funcionasse de verdade, não conseguimos aceitar a igualdade de direitos, a capacidade de existir sem que isso implique em tirar do outro algo a mais para nós, que talvez nem precisemos, mas que faremos porque “é a ordem natural das coisas”. Porém, um fator se levanta contra esse paradigma. A cultura é herdada tanto quanto os genes que nos formam. A nossa mente é formada pela sociedade que ajudamos a formar em conceitos e preconceitos.
          Dessa forma, sempre teremos como um ideal o paraíso, a utopia que será alcançada quando nos tornarmos melhores do que somos, mas que precisará ser conquistada através da eterna luta contra nós mesmos. Por isso sempre teremos aqueles que demonstram superiores capacidades de deixar os interesses pessoais pelo bem-estar de todos, sofrendo as penas por ir contra o sistema, que é praticamente uma máquina implacável a destruir os opositores e corromper os fracos. Nos almejamos Salvadores porque não nos sentimos capazes de alcançar sozinhos esse ideal, e repudiamos os Cyphers como traidores da humanidade embora, em nosso íntimo, desconfiamos que poderíamos facilmente fazer a mesma escolha, se nos fosse dada oportunidade.

          É por esse motivo que lançamos as utopias em outro mundo, após a morte, depois de uma purificação do Ser e livre de sua parte animal, mortal e resgatado em sua essência divina e imortal. Por isso que nosso repudio aos que se unem ao sistema opressor se dá de forma raivosa, fruto do medo que temos de que nos seja oferecida a mesma oportunidade e a aceitemos. Fruto do medo de que, afinal, alguém está melhor que nós, a nossa custa. E isso, como animais predadores, não podemos aceitar.


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