quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Vitimas Algozes - Danny Marks


Lá está de novo. Coloco o saco de lixo de volta no vizinho e vou trabalhar, é assim todos os dias. O cachorro do vizinho não deve gostar de ver a merda que produz.
À noite os cães vadios espalham mais adereços na minha calçada, atraídos pelo cheiro. Ao lado tudo limpo.Tenho que persistir na lição, talvez...
Em classe resolvo tentar dar um ânimo, uso uma música conhecida e peço que falem a respeito do que a letra diz, do que podem trazer para o seu dia.
Em casa não funcionou, “troque seu cachorro por uma criança pobre”, ao lado só há amante dos animais.
O aluno no fundo troca algumas palavras com a namorada, a boca no ouvido que ri.
14 anos e grávida, olho por cima dos óculos sem levantar a cabeça, não se pode fazer muita coisa. Difícil levantar a cabeça. Antigamente o problema com balas perdidas era apenas quando elas ficavam coladas nas roupas e estragavam os dentes, hoje a realidade é mais dura que bala puxa-puxa. Essa nem existe mais, fico lembrando os nomes que davam: machadinha, caramelo escolar, vermelhinha...
A jovem mãe sai da sala, nessa altura da gravidez é comum correrem para o banheiro para tantas coisas. Ele se debruça sobre o papel, esfregando o rosto.
Fecho os olhos. Quantos antes não fecharam os olhos para que isso estivesse acontecendo. Há forças incontroláveis em andamento.
Todos começam a sair antes mesmo de terminar a aula, os celulares dão o sinal. Deixam as folhas sobre a mesa e vão. A menina-mãe nem volta, o garoto leva o material, a folha fica sobre a carteira, esquecida, sem importância.
Espero todos saírem e vou recolhê-la.
Sinto na superfície algo diferente, cheiro o pó das letras, não há duvidas. Sento-me desanimado. Olhando para a frente como no tempo em que eu era um deles, quando estava do lado de cá, tentando entender o incompreensível.
Enfurecido, saco a minha arma vermelha e vou sublinhando os erros e aplico um enorme zero no alto da página antes mesmo de terminar de ler.
Então noto algo no verso. Grafado e sublinhado.
Legião é de Legionário, soldado. Urbana é de cidade, favela, refúgio. Soldados encarnam a vida até que a morte chegue. Lutar até morrer
Algumas frases saltam aos meus olhos
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar
De escolha própria, escolheu a solidão
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.
Não entendia como a vida funcionava
Ficou cansado de tentar achar resposta
Vocês vão ver, eu vou pegar vocês
Não boto bomba em banca de jornal
Nem em colégio de criança isso eu não faço não
Se a via-crucis virou circo, estou aqui
Deu cinco tiros no bandido traidor
Fiquei olhando as frases sublinhadas, a resposta no final da página:
Você perdeu a sua vida meu irmão...
Me senti exaurido, inútil como um saco de excrementos devolvido a porta ao lado.
Vejo o embrulho sob a carteira, estend a mão e sinto o aço frio em contato com a pele febril.
Recolho minhas coisas e vou para casa, as palavras martelando na cabeça...
Você perdeu a sua vida meu irmão, essas palavras vão ficar no coração, eu vou sofrer as conseqüências como um cão.
Encaixo uma garrafa pet no cano da arma e salto o muro. A literatura ensina muitas coisas. O meu sorriso é maior que o do cão.
Um caiu sem suspiro, o outro arregalou os olhos e derrubou algumas garrafas.
Arrasto para dentro do banheiro, tiro as minhas roupas e as dele, uso a serra elétrica que nunca me devolveu.
Deixo todos os objetos de valor em vários lixos, os carrinheiros vão fazer a festa. Sacos pretos com excrementos em outros tantos lugares, a noite foi longa, cansativa, cem rumos, sem pistas.
Chego cedo na escola, sem dormir, devolvo a arma limpa no mesmo lugar e deixo a folha sobre a cadeira com dois pequenos acréscimos.
O numero 1 na frente do zero e mais uma frase sublinhada fortemente.
E na escola até o professor com ele aprendeu
Quando eles entram eu saio, há coisas que não se deve ensinar.
Nem aprender.

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