domingo, 1 de junho de 2014

Amanhã do Nunca Mais – Danny Marks


                Agora falta pouco para este instante desaparecer, mas insisto em ficar aqui.
                O sol ainda não conseguiu aquecer a brisa da maresia, o suor frio do banco de concreto que varou a noite em solitária companhia. Ainda não apareceram as hipnóticas ondas de vapor que brotam nos primeiros instantes de forma quase sufocante, como um grito de alegria preso na garganta do dia.
                Os primeiros caminhantes, corredores, aparecem e se assustam com a capa e o chapéu muito mais do que com o objeto em minhas mãos, mas desviam, envergonhados ou assustados, os olhos dos olhos que fitam sem pudor.
                Eu poderia estender infinitamente esse instante, congelado holograficamente como uma ínfima fatia de um rio. Mas isso seria redundância, já foi feito antes por algo maior.
                Observo os mundos globulares invadindo pouco a pouco os caminhos transitáveis em trajetórias assimétricas pré-determinadas, sobre duas, quatro, muitas rodas, solitários ou em grupos, alguns apenas sobre calçados bípedes de formatos coloridos.
                Novamente noto a falta que sinto da cor, da ordem caórdica que permanece subjacente ao caos... Não posso pensar nisso agora, não posso desperdiçar este momento novamente.
                A moça se aproxima em arrojada iniciativa e senta ao meu lado confiante na sua capacidade física e intelectual de sedução, e por um breve instante gostaria de ser outro. E perco mais um instante precioso.
                Ela fala algo que respondo com uma parcela de cognição, um fio que posso deixar solto do complexo emaranhado dos meus pensamentos, ancorando aquela possibilidade sanguínea das variáveis universais que continuam seu trajeto, agora mais indiferentes.
                Um par sempre causa menos estranheza ao conjunto que um Imago, ainda que a junção dicotômica possa causar o estranhamento rapidamente justificável pela sexualidade lasciva que é invocada do inconsciente ou das memórias de curto prazo.
                A Seminudez provocativa postural dela se digladia com a minha indiferença hermética, mas a excitação está no ar. Observo seu efeito nos músculos que se tencionam no macho alpha, esculpido em aparelhos anatômicos rudimentares e em químicas perigosas, apertados ainda mais nas roupas escolhidas para valorizar a forma física.
                O olhar dele cruza com o meu em um desafio mudo que se aproxima. Ressentimento e inveja resignificam o pisar que endurece como a querer esmagar as pedras do calçamento. Mantenho fixo o foco visual, não é um convite para uma contenda, mas uma análise profunda atitudinal. Prevejo em frações de segundos as possibilidades de um ataque e as inúmeras formas de neutraliza-lo eficientemente.
                Só quando o medo invade aqueles olhos que se desviam em curso e trajetória percebo o quanto fui influenciado por meus pares indesejados. Tornei-me sem querer um eficiente predador que abate a sua vítima antes mesmo de consumar a sua morte.
                Percebo naquele discurso não verbal todas as implicações obscuras que entrelaçam os discursos de sexualidade e política em nuances agressivos/passivos e consigo ler toda a história antecedente com uma resignificância inusitada que me surpreende e me faz sorrir como há muito não ocorria.
                A moça ao meu lado faz sua própria leitura, conseguindo por sua vez a parcela de interpretação que julgava merecedora e satisfeita de ter escolhido a abordagem correta se despede com expectativas totalmente próprias, e incorretas, de um futuro próximo que já projeta em torno de controles e amarras que possa manipular.
                Eu a observo afastar-se, como o passado se distancia do momento atual, deixando seu rastro perfumado, evanescente, a se esgarçar no tecido do espaço/tempo que permanecerá fixo enquanto a minha mente se desloca pelos quadros de possibilidades.
                Em outra realidade eu a tomaria nos braços antes que partisse. Em outra realidade eu abateria o predador antes que percebesse os seus impulsos de se tornar vítima. Em outra realidade eu não estaria aqui. Em outra realidade...
                Aqueles que julgam me conhecer não conseguiriam perceber a infinidade de mensagens que o silêncio encerra e, portanto, jamais vão compreender a mim ou ao meu universo, e isso me torna ainda mais vazio de possibilidades e pleno de outras tantas.
                Em outra realidade este momento jamais seria possível, ou seria conquistado de tantas outras maneiras e com tantas outras correlações que infinitas linhas se desenrolariam criando inúmeros nos de um futuro que talvez jamais se realize novamente.
                Ajeito a capa e o chapéu, está na hora de voltar.
                Desapareço diante do olhar indiferente dos que nunca me viram e que, agora, jamais vão voltar a ver.

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