Ficou olhando aquele pano pendurado no pescoço como se fosse um novo membro que houvesse nascido ali. Há vinte e cinco anos, com uma regularidade quase psicótica, arrumava a tira colorida com voltas, em um nó perfeito. Mas não hoje.
Agora
era uma excrescência, aquele pano-membro depositado sobre o seu pescoço. Não
lembrava o que fazer e o susto, da mulher batendo na porta, não colaborou em
nada para melhorar o seu humor.
Abriu
um sorriso desconfortável, uma suplica murmurada.
Poderia
me ajudar com isto?
Não
conseguia nem mesmo enunciar o seu problema, como se fosse tão ridículo alguém
da sua idade ter um problema. Algo tão simples que nem merecia resposta. E
assim ficou.
Ali
atrás da mulher que arrumava o batom e o delineador com perícia como a debochar
dele, e magicamente o nó se fez, apertado sobre o pescoço. Limpo, ascético,
como de costume.
Saiu
para trabalhar ainda pensando no ocorrido. Qual o problema de esquecer como dar
um nó? De qualquer forma conseguira, sem pensar, não é? Quantos milhares de
pessoas no mundo todo deveriam ter enfrentado algo assim ao longo do ano?
Não é algo tão grave como
esquecer a chave no carro quando se sai do estacionamento, ou o andar em que se
trabalha.
Apertou a chave no
bolso para ter certeza que a levava consigo, enquanto apertava um número no
elevador. Até conseguiu sorrir diante da perspectiva de contar para o sócio a
coisa ridícula que acontecera de manhã.
Mas
ao abrir da porta o pânico invadiu o pequeno cubículo de aço polido, fracamente
iluminado. Aquelas portas enfileiradas como soldados de um pelotão de
fuzilamento. Uma bala aguardando para lhe trazer o fim, mas de que lado?
Andou
lentamente tentando decidir. Estava no andar certo? Qual era o número mesmo?
Pensou no nó da gravata. Instinto é algo maravilhoso, mecânico. Com recursos de
memória que ultrapassavam a vontade. Fechou os olhos, direita ou esquerda?
O
suor frio já lhe molhava o colarinho impecável. Uma luz no fim do túnel e ele
como uma mariposa se sentiu atraído para o ultimo portal. Seu nome lavrado no
vidro, claro.
Sentiu-se
reconfortado no ambiente familiar. Tudo arrumado e limpo, um cheiro de lavanda
que combinava com o creme de barbear.
Passou
a mão no rosto dando-se conta que pelos haviam crescido. Não lembrava quando
havia sido a ultima vez que se barbeara. A lâmina correndo áspera na pele.
Sabia exatamente a sensação, o som da torneira ligeiramente aberta, o reflexo
no espelho.
Que dia esse?
Poderia
perguntar para o homem gordo que ficava na outra sala, ao lado da sua. Aquela
com carpete macio, recém-colocado. A foto da família sobre a mesa ao lado das
pilhas de papeis. Parou com a mão na maçaneta. Não podia simplesmente entrar e
dar de cara com uma pessoa que não sabia mais o nome. Dar de cara com um
estranho.
Recuou
rapidamente e se trancou na sua sala.
Fez uma busca agitada
na internet para tentar descobrir o que estava acontecendo com ele. Um lapso de
memória ocasional, talvez. Um AVC a caminho? Câncer no cérebro? A garganta
seca, apertada em um nó. Que estava procurando?
Ficou
com medo de tirar a gravata, sentir-se mais confortável. E se não conseguisse
lembrar mais como coloca-la?
Faça
uma lista das coisas importantes, verifique se no dia seguinte consegue lembrar
todos os itens e se acrescentou mais alguns, cantava a tela à sua frente.
Trêmulo
pegou a folha de papel e começou a colocar tudo o que se lembrava daquela
manhã.
Acordara
ao lado da, como era mesmo o nome da esposa? A filha, Daiane, lhe pedira
dinheiro novamente, como se ele já não lhe houvesse dado na... sexta feira?
Para quê mesmo? Sim, para comprar um... uma coisa para ela.
Isso
não estava funcionando. As coisas iam se apagando da sua mente mais rápido que
conseguia resgata-las. Melhor ligar para o seu médico, ele deveria saber o que
fazer. Assim que encontrasse o número de telefone na agenda que estava sobre a
mesa. Não ali, na sua casa. Ele a havia deixado ao lado do celular.
Ficou
tão feliz por ter lembrado disso que até sentiu-se melhor. Stress era apenas
isso. Depois de um fim de semana difícil com a família que morava na sua casa.
Quando
fora a ultima vez que tivera um fim de semana bom? Sem ter que se lembrar das
contas a pagar; sem ter que concordar com a mulher contra a filha, ou vice e
versa?
Quando
fora que sua filha crescera a ponto de não lhe dar mais importância?
Quando
perdera a sua mulher para o salão de beleza? Para as amigas?
Ficou
olhando para o papel que começara a escrever, praticamente vazio, como a sua
memória, como se as letras tivessem escorregado para o carpete, perdidas.
Levantou-se
e dirigiu-se para o elevador que descia para o fundo do poço, cumprimentando o
Jorge, seu sócio. Nem reparou no computador que ficou ligado, na porta que
deixou aberta, o paletó sobre o encosto da cadeira.
Quando
chegou à rua afrouxou o nó da gravata e atirou-a em uma lata de lixo, próxima, sem
recordar a cor do nó que lhe apertava a garganta.
Saiu
caminhando feliz como se fosse a primeira vez que andava por aquele calçadão,
rumo a um lugar que não sabia qual. Feliz como não se lembrava de estar ha
muito tempo.
Esquecera-se
de quem era.
3 comentários:
Amor,
Quandos as vestimentas mergulham o SER no esquecimento, tornam-se prisão e podem levar a loucura ou a re-descoberta de quem somos.
Belo texto e temática!
Beijos meus,
Anna Amorim
Amor,
Vale reler e reler. Voltei aqui e o capturei para meu blog.
Beijos meus,
Anna Amorim
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