A grande questão não é que santo de casa não faz milagres,
mas o fato de que as vezes precisamos de outra coisa para solucionar as coisas
que nem reza brava consegue dar jeito.
É por esse motivo que tenho percorrido o mundo em busca de
grandes gurus, pessoas iluminadas, e outras afins, na tentativa de alcançar um
estado nirvânico, sem controle governamental ou coisas do tipo.
Não é que não goste de governo, que todos sabem ser um mal
necessário para que se possa ter alguém para culpar por todas as coisas
erradas, feitas ou não por ele. Na verdade, não gosto de ficar mandando. Fico
esperando que o bom senso prevaleça, que os acordos sejam cumpridos, que a
inteligência dite as regras e, acima de tudo, que me deixem em paz para que
possa cuidar do meu próprio caos interior.
Os opostos se complementam, é a regra inflexível da
existência que descobri há tempos, e culmina por me brindar com amigos
caríssimos que me ajudam a ver as coisas de outra forma, e até a adquirir uma
certa sabedoria alternativa aos milagres nunca alcançados.
Uma dessas pessoas que me trazem a alegria de viver com sua
simples presença, é a Juíza. Pessoa equilibradíssima, sempre generosa e de uma
paz que faria inveja a muito santo de pau oco que se arroga milagroso nos
tempos de hoje. Não por outro motivo que me apraz por demais ter longos
diálogos com essa pessoa e, quando as complexidades das agendas permitem,
sentamo-nos no mesmo restaurante para degustar a companhia e trocar
experiências.
Foi em um dia desses que a percebi triste, incomodada com
algo, o que obviamente me perturbou mais ainda. Não poderia deixar que meu
melhor exemplo de eixo do mundo se desestabilizasse sem, ao menos, tentar
descobrir qual a tragédia que poderia acometer a humanidade, além de todas as
outras.
— Não é nada, bobagem. Apenas a minha empregada que pediu
demissão e pediu para enviar pelo correio o acerto das contas.
Eu, que já conhecia de outros carnavais as duas jararacas
velhas que serviam de empregadas para a Juíza, estendi o assunto apenas por
curiosidade. O que poderia ter acontecido de tão grave que a levara a demitir a
peçonhenta criatura? E nem sabia qual das duas seria, pois embora de espécies
diferentes, equivaliam em periculosidade ofídica.
— Nossa, que coisa chata. O que houve? Pegaram dinheiro da
sua carteira novamente? Tentaram afogar o cachorro na piscina? Botaram fogo na
arvore de natal? — Arrisquei algumas opções que já haviam ocorrido
anteriormente, sem que a Juíza tivesse perdido a sua postura equilibrada e
generosa. Não conseguia conceber algo tão grave que pudesse provocar a demissão
das colaboradoras centenárias.
— Brigaram uma com a outra. E a Anaconde me ligou dizendo
que não vai mais trabalhar lá. Imagina, depois de vinte e dois anos morando com
a gente, pediu demissão por telefone e ainda quer o acerto pelo correio. Como
se fosse possível isso. A Demoniana, claro, deve estar exultante. Há tempos que
não se dão bem e sempre ficam fazendo intriga uma com a outra.
— Sim, eu sei. Ainda acha que foi a Demoniana que sumiu com
o dinheiro para jogar a culpa na outra?
— Ah, vai ver que alguma delas estava precisando. Deixei
para lá. Poderiam ter pedido, mas não vou ficar acusando ninguém, ainda mais
que uma delas é inocente, coitada.
— Sei, inocente. Como no caso do cachorro que caiu na
piscina porque deixaram a porta aberta.
— Anaconde já tinha dito que não gosta de cachorro, nem
olha para ele. Vai ver que esqueceu de fechar a porta e como ele ainda é
criança, escapou. Ainda bem que o seu Armando estava por perto. Por falar
nisso, nem sei o que o seu Armando estava fazendo por ali, ele deveria ficar na
portaria do condomínio. Enfim, não aconteceu nada. Mas as duas ficam jogando a
culpa uma na outra, querendo que eu demita essa ou aquela. Não posso fazer
isso, elas já estão comigo há anos, me ajudam a fazer as coisas. Não posso
deixar alguém que não conheço entrar na minha casa.
Acenei com a cabeça concordando abismado. Como desejava ter
essa alma clonada de Gandhi. E essas nem eram as mais graves ofensas que
aquelas duas “colaboradoras” já tinham feito. Eu apenas não queria deixar a
minha amiga chateada com a minha postura que, comparativamente, seria crudelíssima.
Me sentia arrasado por não conseguir alcançar essa
tranquilidade de conviver com a adversidade e ainda ter uma paz iluminada e a
tranquilidade equilibrada que a minha amiga Juíza tinha, quando percebi que o
garçom se aproximou para receber o pedido. Ela olhou diretamente para ele com
aquele olhar santificador e disse suavemente.
— Você pode me trazer uma dose de veneno e dois cubos de
gelo?
Demorei algum tempo para processar o pedido, jamais teria
conseguido ser garçom na vida, que apenas terminou de escrever e perguntou:
— A senhora deseja que embale para viagem?
Isso foi o fim. Parei de procurar pelo mundo a fonte da
filosofia transcendental, ela estava o tempo todo bem aqui ao lado, ao alcance
da mão. Bastava-me apenas erguer a venda que me tapava os olhos para ver. Quem
precisa de juízo quando se conhece a Juíza? Que os deuses abençoem.
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