Xis passos para um Conto - Danny Marks


Prologo


                Qualquer texto necessita de um projeto que sirva de base para sua confecção. Essa estrutura básica depende do tipo de texto que se quer produzir, mas algumas coisas são elementares, necessárias para que o resultado não seja apenas um amontoado de palavras e as ideias que quer transmitir sejam claras para qualquer pessoa que os ler.
                O objetivo aqui não é criar um manual de fazer Contos, apenas como uma base inicial necessária para que um conto funcione e atinja o seu objetivo. Chame isso de estrutura básica de um conto, se quiser, embora nem todos os elementos aqui apresentados sejam necessários para se fazer um conto, mas quanto mais elementos ele tiver, melhor será o resultado final.
                Existe a possibilidade de quebrar as regras, os modelos literários, as estruturas narrativas, inventar algo completamente novo e inusitado, mas quando isso é feito a complexidade do trabalho aumenta, porque não importa qual seja o formato escolhido, ele precisa seguir regras próprias que sejam claramente perceptíveis e funcionem em harmonia com o que foi desenvolvido. É como um jogo em que se pode mudar as regras antes de se iniciar, consensadas com os jogadores antes de se iniciar a partida, mesmo assim pode dar errado em algum momento e levar a situações que não se esperava. Portanto, qualquer alteração de uma estrutura, modelo ou regra narrativa precisa ser antecipada por um profundo conhecimento de como essas ferramentas agem no texto e quais as implicações em não as usar.
                 Um autor iniciante sempre tende a seguir modelos estabelecidos dos autores que gosta, o que acaba muitas vezes tornando o texto quase uma cópia mal feita do outro, ou então tende a inovar demais sem o devido estudo e torna o texto um amontoado de palavras que não se conectam, a história fica dentro da cabeça do autor e não é transmitida em sua integralidade para o texto. Isso não é um problema, se for considerado como um exercício de criatividade, uma busca da própria “voz” narrativa que poderá usar para fazer seus textos de autoria, mas não são trabalhos que possam ser publicados comercialmente.
                Com o tempo os autores conseguem adquirir a sua voz narrativa, mas outras coisas se impõem necessárias, como a relevância do que será narrado, o ritmo da narrativa, o modelo a ser utilizado dentro do estilo previsto, o arco dramático, a tridimensionalidade dos personagens e, não menos importante, a quantidade exata de palavras para não deixar o texto poluído.
                Esses e outros assuntos vão aparecer no decorrer deste trabalho que não será um mapa na construção de Contos, mas pode servir de base mínima para que um texto funcione adequadamente. Leia com atenção, faça anotações que achar necessárias e solte a imaginação, porque antes de ser um autor, todos devem ser leitores críticos e atentos, só assim poderão produzir obras de qualidade inéditas para apresentar para o público. Vamos ao trabalho?




Passo 1 – Quem, O Quê, Como? Onde? Quando?


                Um texto literário deve atender basicamente a cinco perguntas para que tenha relevância:

— Quem? — sinaliza o agente da ação que será narrada. Normalmente é o personagem principal em um texto curto, como o conto, mas se houver outros personagens que interferem na ação, devem ser apresentados da mesma forma. “Quem?” deve ser descrito em todos os detalhes relevantes que interferem na história, alguns podem ser sutis como por exemplo se o personagem for de origem oriental tem toda uma bagagem cultural que direciona o seu modo de agir e pensar, o mesmo vale para outras etnias. Pesquisar sobre a cultura de origem do personagem é importante para descobrir como alguém dessa etnia lida com questões comuns, o que come, como se veste, quais suas crenças, etc. Isso não precisa necessariamente aparecer na história a menos que cumpra um papel fundamental na trama, mas é preciso pensar o personagem em todos os detalhes possíveis para que ele adquira uma tridimensionalidade própria. Usar fichas com as características dos personagens, imagens que sirvam de base e até mesmo pessoas que conheça, podem ajudar bastante na composição dos personagens.
                Quando for apresentado o personagem é importante fundamentar apenas o que cabe na história, ou seja, o que é relevante para dar um start no leitor que torne o personagem identificável e que em algum momento será fundamental. Por exemplo:
                “Cristina usava os cabelos longos com reflexos dourados sobre as mexas loiras de um tom quase natural. O corpo bem trabalhado na academia tinha um ar de feminilidade agressiva, imponente, envelopada por um vestido longo, preto sem brilho, que lhe deixava os braços e os ombros nus, sustentado nos seios firmes e redondos. O rosto sem muita maquiagem era suave e de riso fácil, como todos puderam notar quando subiu ao palco com elegância e se apropriou do microfone como um troféu por ter causado inveja nas mulheres e um certo desconforto nos homens que demoraram alguns segundos a mais para perceberem que estavam desejando uma pessoa do mesmo sexo.”
                Note a quantidade de informações que são oferecidas em um simples paragrafo de informação sobre o personagem. Nome: Cristina. Cabelos: tingidos de loiro com reflexos dourados condizentes com a atividade artística. Profissão: indefinida, mas sugerida como uma cantora (o vestido não permitiria uma dança, a desenvoltura com o microfone e a plateia que seduz implica habilidade em lidar com o público variado). Corpo: trabalhado em academia e cirurgia (seios firmes e redondos). Sexo: masculino, como é revelado no final. Fica fácil para o leitor identificar uma transexual nesse parágrafo, e automaticamente delinear como será sua personalidade: De uma feminilidade impositiva, uma sensualidade dominadora, segura de si diante dos desafios, em busca de aceitação, controvertida. A reação do público (que não é descrito porque são cenário) serve para apresentar como as pessoas se sentem em relação ao personagem, as mulheres a invejam por conseguir ser mais sensual e bonita que elas, os homens se sentem constrangidos por perceberem o desejo, mas recuam diante do preconceito interno. Essa composição psicológica deve aparecer por toda a narrativa, não se pode apresentar um personagem forte e determinado e depois fazê-lo ter ataques histéricos, a menos que os eventos posteriores justifiquem uma mudança de atitude tão radical. Mas é possível usar a questão da necessidade de aceitação e a busca pelo reconhecimento como um ponto fraco do personagem que será explorado pelos adversários. Um ponto importante dessa descrição e que será trabalhado mais adiante, está na forma de apresentar o personagem, não é dito: Cristina, transexual, cantora, 1,80m de altura, cabelos loiros com mexas douradas, elegante, de caráter forte, sensual, caucasiana média. O que é relevante para a história é demonstrado durante a ação em que o personagem aparece, sugerindo muitas outras coisas. Não foi dito que ela “desfilou” até subir ao palco, mas isso não fica sugerido na apresentação? De que outra forma ela causaria tal impacto em homens e mulheres se não fosse uma figura marcante? Tão importante quanto descrever um personagem é tornar a descrição parte da narrativa, não um recorte descritivo que não se junta a nada, como uma fotografia colada na testa com dados clínicos desnecessários. O fato de ser uma transexual lhe dá características próprias como uma força maior que a de uma mulher, mas fragilidades que um homem heterossexual não teria. Essa é a tridimensionalidade necessária aos personagens, eles podem ser qualquer coisa que se deseje, mas tudo o que forem são componentes a serem usados na narrativa, tem que ter relevância. Se dissesse que além de ser uma cantora em alguma boate para casais ela também é médica e rica, isso tem que aparecer de alguma forma relevante na narrativa, influenciar suas atitudes, nem que seja para salvar alguém ou dar uma grande festa em sua casa.
                “Quem” também implica em que os personagens apresentados, mesmo quando não estão em cena, continuam existindo e levando suas vidas. Uma vez apresentados os personagens eles devem permanecer no fundo narrativo de forma que, quando ressurgirem, fatos não narrados estejam implícitos. As pessoas não desaparecem do universo quando se deixa de vê-las, os personagens também não somem da narrativa quando não estão sendo vistos pelo narrador. Em contos longos é possível até trabalhar mudanças de cena e paralelismos de personagens para evitar o outro lado chato de uma narrativa de descrição de hábitos comuns e insignificantes para o contexto. Comer, dormir, fazer sexo, vestir-se, maquiar-se, correr, ir ao banheiro, beber, ler um livro, qualquer coisa que não implique em algo relevante para a trama e para o leitor, deve ser suprimido para não ficar diminuindo o ritmo da narrativa. Uma cena apresentada tem que ser importante para acrescentar dados. O fluxo de dados narrativos é o que mantém o leitor preso ao texto, se algo ficar muito cansativo ou não apresentar uma relevância no contexto só faz com que o leitor sinta sono. Isso nos prepara para as próximas perguntas que devem ser respondidas.

— O Quê? — Note na apresentação do personagem Cristina (agente da ação) que essa pergunta fica implicitamente respondida. O que ela está fazendo? Se apresentando para um público geral, em um palco, onde ela é o foco de atenção. Isso já foi dito durante a apresentação do personagem, detalhes adicionais sobre o lugar podem ser apresentados da mesma forma durante a narrativa, como por exemplo “o homem mais perto do palco recuou o braço diante do piscar de Cristina para ele, derrubando o copo com Champagne sobre a toalha branca, algumas gotas caíram no terno deixando ainda mais evidente a sexualidade excitada, o que lhe aumentou ainda mais o rubor nas faces e o olhar de fúria da sua acompanhante que o fuzilava do outro lado da mesa”.  Repare que foram acrescentadas roupas de gala (terno), mesa com toalhas brancas, Champagne e um certo constrangimento em se associar com Cristina. Isso pode servir de base para dizer que a apresentação não é artística, mas algo formal, uma palestra para um grupo selecionado de pessoas com dinheiro. Isso determina o cenário enquanto ocorre uma ação. Diferente de dizer: Os homens usavam ternos bem cortados, as mulheres exibiam vestidos de noite de algum estilista famoso, as joias resplandecentes, pequenas mesas com toalhas brancas acomodavam taças de Champagne servidas por garçons. Note que as mesmas coisas foram ditas de forma diferente, uma delas apresenta uma ação provocada pelo personagem (piscar) e uma reação na plateia e no cenário. A outra apenas apresenta dados sobre o cenário, sem ação alguma. Qual que tem mais chance de prender a atenção do leitor?

— Como? — O Como determina a forma que a ação ocorre, o ritmo, os elementos utilizados. Na primeira descrição aparece o palco, o microfone, o vestido tubinho que limita um andar mais aberto. Portanto fica implícito um andar elegante, restrito, uma subida para um nível mais elevado (palco) e a posse de um instrumento de destaque em relação aos outros (microfone). Na segunda descrição do cenário aparecem as mesas com toalhas e taças, logo também há cadeiras e as pessoas estão sentadas, logicamente há algum caminho predeterminado para a passagem do personagem até o palco, por ter mesas próximas ao palco também é demonstrado que há outras mais distantes, o que simboliza uma hierarquia de importância entre o seleto grupo, quem tem mais poder fica mais próximo ao centro de destaque, tem uma visão mais privilegiada (também demonstrado o vinculo mais intimo pela piscada de Cristina). Note que tudo isso foi dito sem ser explicitado, apenas na apresentação do cenário vivo, agente colaborador da ação, o Como.

— Onde? — Onde é a especificidade do cenário, o lugar em que a ação é desenvolvida. Hemingway destacou em sua obra de análise literária a importância que o cenário possui no contexto da ação, o leitor vai achar natural que haja uma taça de Champagne a ser derramada sobre a toalha branca que cobre a mesa, mas acharia estranho se fosse uma toalha xadrez ou mesmo não haver nenhuma toalha (Champagne implica em um ambiente mais formal, com todos os acessórios necessários, não seria servida, por exemplo, em copos plásticos, a menos que isso implicasse em um cenário completamente diferente que deveria ser justificado previamente), mas se eu disser que o homem recolheu a arma que estava sobre a mesa para não molhar, imediatamente acenderia o sinal de alerta no leitor. De onde veio a arma? Quem a colocou ali? Como isso se ajusta em um cenário formal com homens e mulheres bem vestidos? Toda essa coerência precisa ser pensada previamente, a mesma complexidade que é necessária para criar a tridimensionalidade do personagem, é necessária para compor o cenário que também é um personagem ativo na narrativa, mas de forma indireta. Não posso simplesmente dizer que alguém atirou na moça sobre o palco sem antes indicar o agressor, apresentar minimamente a arma, delinear uma intenção de agressão. Ninguém simplesmente pensa “Por que não atirar naquela mulher? Oh, meu deus, tenho uma arma no bolso que não sei de onde veio, e preciso usa-la”. O Onde é parte da ação do personagem e tem que se ajustar a realidade da ação, não dá para dizer que saíram todos correndo sem levar em conta as dificuldades de “sair correndo” em um salão com mesas e cadeiras, isso necessariamente causaria uma reação diferente no público que deveria ser determinado em quantidade também, porque é diferente uma pessoa levantar e correr e uma multidão desesperada tendo que driblar mesas, cadeiras e outras pessoas. É diferente de estar sentado em uma igreja, em um clube, em uma piscina, em um restaurante, em um banco, em um hospital. Até a mobília é um agente da ação, altera o rumo dos acontecimentos. Em um tiroteio ninguém vai se esconder atrás de uma mesa de plástico, mas se for se esconder atrás de uma coluna, essa coluna tem que ter sido apresentada no cenário anteriormente, o mesmo para as armas. Um detalhe que muitas vezes escapa aos iniciantes é a estrutura das casas, por exemplo. Já vi muitos autores situarem as cenas no Brasil e as casas terem lareira (?), andar superior e sótão (?). Da mesma forma que os traços étnicos são representativos de uma tendência, o cenário também é representativo de um tipo de clima, um modelo de construção. Por isso é importante, mesmo em um conto, o autor se preocupar em conhecer o cenário em que vai trabalhar a ação. Revistas de decoração, visitas a locais, estudo das estruturas urbanas e da história que elas apresentam ajudam muito a tornar o cenário mais tridimensional e fazem com que o Onde se torne parte da narrativa de forma mais harmônica e verossímil.

— Quando? — A localização temporal da narrativa é tão importante ou mais que a localização espacial. A localização temporal não é apenas relativa a época (e suas características próprias) em que a narrativa acontece, ela também precisa estar de acordo com as cenas narradas anteriormente. Se a descrição é de um cenário histórico, é preciso delimitar essa característica temporal não apenas na datação, fica absurdo que alguém do século XVIII tenha um relógio digital, ou use uma pistola automática, a menos que seja um viajante do tempo desastrado. As roupas também são diferentes, os modos, a comida, os veículos, tudo que aparece no cenário é demarcador de datação do tempo tanto quanto do espaço. Se colocasse chapéus nos personagens, iria delimitar tempo e espaço geográfico, se colocasse um relógio de bolso também. Mas apesar dessa delimitação temporal ser mais ou menos trabalhada, é comum erros de continuidade narrativa, que é parte do “quando”. Não dá para falar de um assassinato que ainda não aconteceu, ou pior, acabou de acontecer e alguém do outro lado da cidade já sabe sem que seja comunicado o fato. A polícia não chega segundos depois do crime, por mais que isso seja interessante, se pudesse ser verdade. Uma casa não se incendeia com a mesma velocidade de um fósforo, ninguém consegue perceber ao mesmo tempo uma taça que cai e um balançar do pedestal do microfone ou a garçonete que pega uma gorjeta de um cliente. Foco, continuidade, sincronicidade, tudo isso está implícito no “Quando” e deve ser trabalhado com muita atenção na narrativa. Tente visualizar a cena, passo a passo, detalhe por detalhe e vai perceber o trabalho que o leitor vai ter ao ler a sua descrição do tempo. Sem falar em erros grosseiros como a moça está sem maquiagem alguma e, de alguma forma não explicada, deixa uma marca de batom na camisa do rapaz que será descoberta pela namorada dele dias depois quando se encontrarem em um restaurante. Quando a moça passou o batom? Quando essa camisa será lavada? O cara não troca de roupa? Detalhes são mais que importantes em uma narrativa, são fundamentais para que a verossimilhança se construa, mas é preciso cuidado com eles para que não se encha o texto de coisas sem importância. Se ninguém vai descobrir a marca de batom na camisa, não apresente isso, nem mesmo a cor do batom que a moça usa, se ela não for marca-lo de alguma forma. Isso não importa, por mais que o autor queira detalhar minimamente a coisa. Lembre-se que cada coisa que aparece no texto tem uma importância para a narrativa, altera a ação, modifica os entendimentos, determina os conceitos, justifica resoluções, ou então está sobrando e deve ser retirada do texto.

                E assim terminamos essa primeira pincelada sobre como escrever um conto, lembrando que não importa o tamanho do texto pretendido, esses elementos podem ser colocados e se todos estiverem presentes, mesmo um microconto se torna uma história completa, complexa e simples de ser apreendida pelo leitor. Mas isso não quer dizer que só porque tenho liberdade de escrever quinhentas folhas na minha narrativa, vou colocar todos os detalhes inúteis que não servem para nada, além de encarecer a publicação, desgastar o leitor e tornar a história desnecessária. A narrativa tem que ter o tamanho certo e imprescindível para apresentar a ideia que quer transmitir, nem mais nem menos. O tamanho utilizado para se narrar bem depende do modelo utilizado, da estrutura necessária, do objetivo a ser atingido, e isso é o que veremos a seguir.




Passo 2 – Estrutura e Modelo Narrativo – Minha ideia cabe aqui?


                Qual o tamanho da sua ideia? Essa deveria ser a primeira pergunta que o autor faria antes de escolher a estrutura e o modelo narrativo, até porque há ideias que se desenvolvem muito bem em um microconto, outras precisam de mais espaço para serem trabalhadas, e um monte de outras nem deveriam ser apresentadas. É, por mais inacreditável que possa parecer, há muita coisa que não justifica uma publicação literária, até cabe em uma postagem nas redes sociais ou em um blog, mas não tem relevância significativa para o grande público, não contém a historicidade necessária para um registro maior. Não estou dizendo que as suas ideias não são importantes, elas são, mas são relevantes o suficiente para sustentar uma narrativa? Possuem um viés inusitado que ainda não foi explorado devidamente? São questionamentos que vão ultrapassar a barreira dos meses necessários para a elaboração, desenvolvimento, publicação e permanecerão válidas e necessárias até chegaram ao público objetivado?  Se estiver convicto de que sim, então é hora de determinar a estrutura e o modelo narrativo.
                O objetivo deste trabalho é apresentar para o autor iniciante o mínimo do mínimo necessário para que o seu texto tenha qualidade literária e a ideia seja apresentada de forma coerente, portanto vou evitar ao máximo as tecnicidades e tentar apresentar de forma simples e direta como trabalhar a estrutura e o modelo narrativo para tornar a ideia clara e bem apresentada. Isso não quer dizer que o autor pode prescindir de outros textos complementares para o seu trabalho ficar cada vez mais profissional, pelo contrário, este é o ponto de partida, o mínimo que se deve ter para ser considerado um texto literário no formato conto, bem como algumas das possibilidades de solução para torna-lo melhor, mas o estudo das técnicas não termina nunca, há milhões de possibilidades, estruturas, modelos, e a cada dia são criados novos formatos e intersecções.  Quanto mais profundamente o autor conhecer a técnica, mais livre vai se sentir para romper algumas regras e inovar no seu trabalho, se arriscar a soluções diferentes, mas há sempre um risco, tanto em seguir radicalmente as regras já elaboradas, quanto em rompê-las definitivamente sem um preparo adequado. Dito isso, sigamos.
                Uma narrativa de conto invariavelmente segue uma estrutura linear com pequenas alterações. Isso quer dizer que há um início, onde se apresentam os personagens e os cenários; um meio, onde se desenvolve a trama, as reviravoltas, o clímax; e um fim que é o fechamento da narrativa e a conclusão da trama. Dá para fazer diferente? Colocar o fim no início e tornar o fechamento parte do meio, ou saltar para lá e para cá no tempo-espaço narrativo (flashback, flashfoward em nome técnico), brincando com os elementos do texto como peças de um jogo que vai sendo montado? Sim, dá para fazer isso e pode ser até interessante, desde que não se perca o ritmo narrativo e nem haja uma complexidade desnecessária que desestimule a leitura. A estrutura e o modelo utilizados na narrativa são elementos fundamentais, como os personagens e o cenário, e devem se ajustar de forma a apresentar a ideia da melhor forma possível, ampliando a experiência do leitor, não o inverso.
                Vamos a um exemplo clássico. Uma cena de crime ocorre e é narrada sob a perspectiva de um personagem até um determinado ponto. O narrador segue o personagem e apresenta os fatos observados por ele, então a narrativa retroage a um momento anterior e começa a apresentar a mesma cena vista pelos olhos de outro personagem, e assim sucessivamente até que em um momento ela se estende até a conclusão de quem cometeu o crime. Parece simples dito dessa forma, não? O problema é que o autor vai ter que narrar os mesmos fatos com pequenas alterações (o que significa que boa parte das coisas necessariamente vão ser idênticas, não iguais, porque há uma mudança de perspectiva) sem fazer o leitor perder o interesse e apresentando fatos novos que modificam a interpretação anterior. Claro, porque se não modificar nada, não acrescentar nada, para que serve uma nova perspectiva?
                Nesse modelo em múltipla perspectiva há uma perda de ritmo narrativo, porque ela retroage antes de mudar o rumo. Seria necessária uma habilidade genial para usar esse modelo em um thriller por exemplo, em que a narrativa tem que ser ágil, cheia de ação, inusitada. Não significa que não pode ser usada, já fiz isso em um trabalho recente, mas é preciso trabalhar com outro elemento complexo, o tempo narrativo. Mas para este caso vamos dizer apenas que é complicado criar um texto ágil nesse formato, porém pode-se criar um texto tenso, em que a apresentação dos fatos aumente não a velocidade narrativa, mas a tensão narrativa do leitor que será a ancora que o fará continuar a ler. Esse modelo é interessante para uma narrativa de mistério em sistema de quarto fechado. Opa, o que é isso? Quarto Fechado é um modelo utilizado para narrativas de suspense, em que os elementos pouco variam, mas as interpretações dos eventos é que mudam.
                A claustrofobia psicológica gerada pelo modelo de Quarto Fechado é intencional, para aumentar a tensão do leitor, e “quarto” significa cenário estático, não precisamente um quarto, pode ser uma casa, um pequeno bairro de uma cidade, algo que não se amplie demais. Edgar Allan Poe criador desse modelo, era mestre no assunto. Há contos dele que toda a ação ocorre de forma minimalista, dois ou três personagens em uma sala e diversas insinuações que vão aumentando a tensão até que ela explode em um clímax e vem o fechamento que deixa o leitor exausto e aliviado, é quase como um orgasmo literário, todas as prévias encaminham para o clímax que se desenrola rapidamente e ainda assim gera uma satisfação pelo alívio da tensão e pelo prazer alcançado. Quantas reviravoltas cabem em um modelo assim? Depende da ideia.
                É preciso que seja um crime? Tem que ser uma narrativa de suspense? Policial? Não necessariamente, embora seja mais comum usar como ponto central um evento que pode ser analisado de vários ângulos em busca de pistas adicionais, no meu conto Gratidão Eterna desenvolvi um conto de FC sobre robôs, com elementos de viagem no tempo sendo o cenário uma biblioteca particular em que interagem apenas dois personagens. Há diversos contos de FC que trabalham nesse sentido com temáticas diferentes, mas é preciso domínio da técnica para criar a tensão dinâmica e prender o leitor na narrativa sem cansar. Um crime visto por vários ângulos de perspectiva é mais fácil, porque o objeto de ação não é o crime em si, mas a investigação de quem foi o autor.
                Cabe aqui um aparte importante, toda narrativa deve ser honesta com o leitor, isso implica que em um modelo de quarto fechado ou qualquer outro que se queira trabalhar, os agentes principais da narrativa devem estar expostos claramente para o leitor no processo chamado de “esconder a vista”. Se o leitor se sentir enganado em qualquer momento, ele vai ficar com raiva do autor, por melhor que seja a história, então cuidado com isso. Esconder a vista é tirar a importância de algo que foi apresentado, como a espingarda de Hemingway sobre a lareira que em algum momento da história irá ser utilizada, só para lembrar de um chavão clássico da literatura de formação de autores. Os elementos fundamentais para a ação têm que ser apresentados de forma direta e antecipadamente para o leitor, não dá para o personagem tirar uma corda de dois metros do decote e amarrar alguém, ou então descobrir que tem uma escopeta embaixo da poltrona da casa que ele acabou de entrar para visitar um amigo e atirar com ela. Parece exagerado? Há coisas mais absurdas que aparecem em textos, acredite. A lógica narrativa exige uma coerência entre os fatos, se falta a energia na casa, não dá para ligar a televisão para saber do que está acontecendo. Sim, já li coisas do tipo.
                Mas calma, saber que os elementos estão visíveis não significa que o leitor vai descobrir o que vai acontecer, ou quando, ou com quem. A habilidade do autor em trabalhar o modelo está justamente no fato de ser capaz de deixar o leitor seguir uma pista falsa sem induzi-lo diretamente a isso. Por exemplo, algum personagem que conhece química e ocorre um assassinato por envenenamento, muito provavelmente o leitor comum vai seguir essa pista que pode ser reforçada por outros elementos suspeitos, mas se o personagem conhece química, mesmo não sendo o criminoso, esse fato tem que ser relevante para a história de alguma maneira, como por exemplo ajudar a desvendar o mistério de quem foi o assassino. Note que há uma reviravolta que transforma o suspeito principal em um colaborador do herói.
                Já que estamos falando de herói, que tal falar da jornada do herói, que é um modelo recorrente, principalmente em histórias de fantasia onde alguém tem uma vida pacata e segura até que um evento qualquer obriga a sair do conforto do seu lugar comum para empreender uma jornada cheia de perigos e autodescobertas que culminarão na obtenção de algum item ou conhecimento necessário para então retornar e resolver o problema que o expulsou de sua paz. Aplique isso em Harry Potter, Games of Thrones, Senhor dos Anéis e outras sagas do tipo e vai ver que os elementos estão lá, embora os enredos e as estruturas sejam diferentes. Dá para fazer isso em um conto de poucas páginas? Claro que dá, desde que a estrutura e o modelo sejam planejadas para ficarem contidos nesse espaço. Não adianta querer colocar um elefante em uma casa de cachorro, a menos que o objetivo seja apresentar um elefante miniatura e haja uma justificativa coerente para isso.
                Como planejar uma estrutura e um modelo para uma ideia se nem sei o que vou escrever? Essa é a parte crucial e há alguns passos que podem ajudar a definir como será planejado o texto. Em primeiro lugar é preciso delimitar a ideia, escreva em poucas linhas qual é o “motor” da narrativa, o que é que vai servir para justificar a escrita? Se ficar com mais de cinco linhas, recomece, está perdendo o foco. É preciso ser sintético no projeto da ideia, ele tem que apresentá-la de forma clara para qualquer pessoa e ter a relevância necessária. Por exemplo, uma noveleta que escrevi para o Google Plus começou com uma brincadeira com uma amiga em uma rede social em que disse que às vezes acordo e não me reconheço no espelho.  Qual a ideia a ser trabalhada? Uma pessoa que ao se ver no espelho não reconhece a si mesma e tem que descobrir o que aconteceu com ela. Quais as possibilidades que essa temática pode produzir? Problemas de saúde que alteram a percepção do Si Mesmo, troca de corpo durante uma noite de sono (tipo invasor de corpos, aquele clássico de FC), deslocamento de perspectiva pessoal devido a uso de químicas que interfiram com o trato neurológico? Tudo depende do que se quer trabalhar, mas a ideia está ali, clara e simples, instigante.
                Delimitada a ideia, vem a parte de descobrir qual a melhor forma de realiza-la. Como será a voz do narrador? Primeira pessoa interna? Narrador impessoal onipresente? Terceira pessoa personagem? Cada uma dessas escolhas obriga a um modelo diferente que gera um efeito diferente no leitor. Uma primeira pessoa interna gera intimidade do leitor com o personagem, mas não necessariamente identificação, estar na mente de um assassino frio não faz com que o leitor queira ser um assassino frio ou goste de se ver ali dentro, preso na cabeça do outro, tendo que assistir seus atos hediondos. Por outro lado pode servir para ocultar fatos de que o personagem desconhece, mas lembrando, tudo o que for importante para mudar o rumo narrativo, tem que ser apresentado de alguma forma, mesmo quando o personagem não percebe a relevância, o leitor precisa poder voltar o texto e identificar o momento em que foi apresentado aquele fato.
                Um narrador impessoal gera uma imparcialidade necessária, lembrando que narrador não tem que ter opinião a menos que seja personagem e isso se encaixe de alguma maneira na narrativa. Sabe aquela vontade de dizer que o personagem é bom ou hediondo? Esqueça!!! Narrador impessoal é IMPESSOAL não faz julgamento de valor, não fica a favor ou contra, não se emociona, essa parte é a que cabe ao leitor ao ler os fatos narrados, não seja narrador leitor, isso não funciona, tira qualquer possibilidade de identificação do leitor com os personagens. A vantagem de um narrador impessoal é de surpreender o leitor com fatos apresentados sem qualquer destaque e que mudam significativamente os rumos narrativos, a reviravolta necessária, sem gerar revolta no leitor por se sentir enganado, estava lá, o leitor que não prestou atenção, mas se voltar e ler novamente, vai entender que foi avisado.
                Terceira pessoa personagem é basicamente de quem se fala. A parte complexa dos narradores está justamente na narrativa, é preciso apresentar os fatos para o leitor, mas de acordo com a escolha do personagem isso fica mais complicado, porque o leitor não está presente na história, o discurso do narrador se dirige a ele, mas não exatamente no tempo da história. Se for internalizado, não dá para dizer “peguei a xicara de café e levei aos lábios sorvendo um pequeno gole da bebida quente, enquanto ela passava geleia nas torradas que não iria comer”. Veja os erros! Meu discurso interno não fala os detalhes do que faço, não fico prestando atenção em cada passo, na roupa que estou usando, na forma como as minhas palavras saem da minha boca, pior ainda, como eu vou saber o que o outro vai fazer se ainda não aconteceu!!! A menos que esteja relembrando fatos e tentando rever a cena com detalhes que me escaparam a consciência, mas que estão lá de alguma forma. Se quiser fazer um teste de narrativa, ande por um lugar qualquer e observe as coisas, depois pegue o celular e faça o mesmo percurso filmando e descrevendo o que vê, depois assista e veja se a sua primeira impressão é idêntica a que apresentou durante a filmagem. Tente lembrar do que pensava no primeiro momento, ouça o que disse no segundo momento, note as diferenças entre um modelo de narrativa e outro. Esse é um excelente exercício para treinar a “voz narrativa”.
                Claro que há muito, muito mais para ser dito, mas essa é apenas uma pequena pincelada para ajuda-lo a compor o seu texto. Tempo narrativo, perspectiva, voz narrativa, estrutura de apresentação da ideia, clímax e reviravolta, fechamento, deslocamento de elementos narrativos. Todas essas coisas são fundamentais para que se produza um bom texto, ganhe algumas horas estudando e planejando, porque do contrário vai perder muito mais tempo escrevendo um texto inútil e sem sentido que precisará ser retrabalhado à exaustão para ficar minimamente aceitável ou ser jogado fora e reiniciar o projeto.

Passo 3 – O Discurso, a Voz e o Ritmo da Narrativa


                Uma das coisas que as pessoas esquecem com facilidade quando vão produzir um texto é que ele nasceu para ser lido em voz alta. Talvez um dos maiores erros das escolas tenha sido o de incentivar (praticamente obrigar) os alunos à “leitura silenciosa”. Como assim silenciosa? E o discurso interno? Quem lê usa uma voz, seja externa ou interna para ler, transforma as palavras escritas em um som dentro ou fora da cabeça. Em teoria literária usa-se o termo Vozes Narrativas porque são mais de uma e de diversas perspectivas e um texto fica tão melhor quanto o autor consegue suprimir da narrativa os seus conceitos pessoais em torno da questão trabalhada deixando que os personagens apresentem suas visões particulares, é o que se chama de suprimir o discurso autoral para liberar o discurso narrativo.
                Mas a questão a ser trabalhada aqui é a necessidade do autor saber que o seu texto será lido e que a escolha das palavras e sua disposição no texto define o ritmo narrativo tanto quanto a escolha dos outros elementos da narrativa, portanto um bom exercício de escrita é ler em voz alta o que foi produzido, mas não no instante em que foi produzido, é preciso dar um tempo para que a memória fique limpa do que se escreveu e se aproxime o máximo de um leitor diferente. Esse processo ajuda inclusive a perceber falhas na apresentação dos elementos do texto, identificar palavras que travam a leitura, corrigir erros de argumentação. Pode parecer estranho, mas ouvir a própria voz ao ler um texto é diferente de ouvir a “voz” interna, que tem um contato maior com o inconsciente. Muitas vezes acabei percebendo nos meus textos coisas que nem havia notado que estavam lá quando as escrevi. Já houve casos de um texto ter mais de uma narrativa subliminar e diferente da que estava apenas nas palavras, e essa era a intenção, mas só fui notar a efetividade do trabalho quando fui ler em voz alta o que havia escrito.
                Perceber que há diversos filtros na leitura de um texto, também auxilia o autor a dominar melhor a narrativa, porque esses filtros não estão apenas no autor, mas em todos os leitores posteriores e determinarão como serão as interpretações. Quanto mais o autor dominar essa técnica de obrigar uma interpretação única ou induzir a interpretações múltiplas, de acordo com o objetivado no trabalho, em relação ao que vai ser lido, melhor será a sua narrativa e pode se tornar um poderoso aliado na identificação do leitor com o texto. É preciso lembrar que para que um personagem que se quer que o público odeie (sem odiar o texto) é preciso dar a voz exata para o personagem, construí-lo de forma que tudo o que fizer e disser condiga com o que ele fala ao mesmo tempo que o autor se isenta de colocar seus próprios conceitos pessoais em jogo. Um texto não é uma afirmação de tese, uma confirmação das convicções do autor, mas um veículo para apresentar argumentos válidos e fortes o suficiente para convencer o leitor de que há uma isenção da autoria, que todos os pontos de vista foram apresentados de forma correta e apenas os fatos apontam para um julgamento de valor possível, mas não obrigatório.
                O ritmo narrativo também depende da velocidade com que os fatos são apresentados, em que momento a reviravolta deve ser anunciada e por quanto tempo ela deve criar impactos. O fechamento pode ser iniciado na primeira frase, antes mesmo dos argumentos a serem trabalhados, mas não deve ser antecipado para não criar uma tendência narrativa que exclui a liberdade do leitor. É preciso perceber a linha de raciocínio se avolumando, ganhando proporção ao longo da narrativa, criando a tensão necessária sem perder o interesse porque fica tenso por tempo demais e cansa. Sabe aqueles casos em que se cria uma tensão sexual entre os personagens que nunca se resolve e você começa a ter raiva porque todos os sinais foram dados e não o personagem parece estúpido e não vê? Excessos são sempre prejudiciais ao ritmo, mas a falta também tem o efeito paralisante.
                Muitos autores querem demonstrar erudição utilizando palavras que são corretas, mas pouco usuais no vocabulário dos leitores, ou então se esmeram em tornar o discurso tão próximo ao leitor que imaginam que vão ler que exageros nos coloquialismos, o dito “popular”. Isso é um erro em vários sentidos. Em primeiro lugar o discurso do personagem tem que se ajustar ao personagem, a classe social, a formação educacional que possui, a personalidade, tanto quanto aos argumentos que usa. Cada personagem tem uma voz diferente, um vocabulário diferente, uma visão de mundo diferente, e isso precisa estar presente mesmo que não abra a boca em nenhum dialogo. O discurso do personagem, a voz que ele usa, nasce do próprio personagem que interiorizou o mundo, o processou e o revela em atos e palavras, exatamente como as pessoas reais. O discurso do narrador é necessariamente diferente, porque tem outra perspectiva, tem outra função, e isso precisa ser observado com muito cuidado.
                Dificilmente o personagem que é um cientista em um meio acadêmico usaria de gírias e coloquialismos, mas é preciso tomar cuidado com o uso de termos que apenas cientistas e acadêmicos entenderiam, porque quem está lendo precisa entender o que está sendo dito, ou vai travar a leitura. É preciso verificar se aquela palavra bonita, aquela frase marcante, vai ter um efeito harmônico com o objetivo da narrativa, com o ritmo que se deseja para o texto ou se vai ser apenas uma pedra no caminho que fará o leitor perder tempo para interpretar antes de recomeçar ou ignorar e ficar sem a informação que DEVE ser preciosa, lembrando que qualquer palavra que não acrescente algo ao texto é supérflua e deve ser retirada.
                O ritmo da narrativa não é apenas para que o leitor possa ler rapidamente, de forma agitada, ou para segurar a leitura em uma tensão, ele serve para demonstrar a ideia de forma que ela possa causar um efeito emocional, gerar um “filme” na cabeça do leitor a ponto de que um leitor habituado à prática nem percebe mais as palavras escritas, ele automaticamente vai criando a cena na imaginação, seguindo as orientações dadas pela narrativa. Esse é o ritmo necessário a uma leitura, essa capacidade de fazer o leitor imergir na leitura e se ver como participante dela enquanto a cria na própria cabeça, recriando o texto com os elementos que já estão armazenados na memória. Existe todo um componente neurológico e psicológico por trás dessa habilidade que é interessante os autores procurarem conhecer, mas não será objeto deste trabalho porque é outra temática, mas indico aqui porque é preciso apontar que há uma justificativa muito forte para ter essa atenção.
                Vale lembrar que o ritmo de leitura também entra na classificação do gênero literário e seus múltiplos estilos internos, e é desejada pelo leitor daquele gênero. Pode ser utilizado um ritmo diferente do padrão? Claro, desde que isso se ajuste a necessidade da narrativa, as regras literárias podem e devem ser quebradas, desde que seja para melhorar ou ampliar o que já foi feito, senão vira apenas ruído e prepotência. O autor tem que desenvolver o seu próprio estilo de ritmo narrativo, pode até ter mais de um ritmo para diferentes gêneros, ou pode apostar em uma polifonia (diversas vozes e ritmos produzidos por uma única pessoa ao mesmo tempo), desde que tenha a habilidade e o conhecimento necessários para fazer isso funcionar bem.
                “É muita dificuldade para um texto curto” que se quer produzir? Não é, se o objetivo é fazer um bom trabalho, o resultado final que indica o que está por trás. Um Hai Kai (poema japonês de três linhas) é mais complexo que um texto longo. Muitas vezes é mais demorado ler um Hai Kai que um conto, porque as implicações e subjetividades obrigam uma percepção mais aguçada para o entendimento. Leitores que não possuem profundidade também precisam ser atendido, mas sempre se deve induzir a leitura para níveis mais profundos, de forma a estabelecer um contato com a literatura mais prazeroso. Nunca subestime o leitor, e sempre o auxilie para que a experiência da leitura seja a mais satisfatória possível. Essa é a marca de um bom autor.



Passo 4 – Conflito


                O que torna uma história interessante? As respostas podem ser as mais variadas, mas por trás de todas elas, vai aparecer, invariavelmente, um conflito. Meu professor de Contos, Marcelino Freire, costuma dizer em suas palestras que escreve sobre o que o incomoda e o faz muito bem, usando padrões de oralidade (a linguagem popular) com habilidade incomum, tornando o que passaria despercebido uma coisa interessante e gerando um questionamento no leitor. Esses recortes da vida comum, pinçados pela literatura e elevados a condição de arte, são sua matéria prima.
                Mas, basicamente, todo texto artístico retrata um conflito. Até mesmo textos de humor, pode verificar, possuem em seu cerne o conflito, que é trabalhado para que se possa rir dele e aliviar a tensão. A comédia de costumes, uma variante do humor, retrata os conflitos da sociedade. A literatura policial trabalha com um crime a ser cometido ou solucionado. O drama lida com o conflito pessoal, intimo ou familiar. O terror trabalha com o conflito psicológico, paranormal, existencial. A fantasia apresenta as diversas dimensões do conflito e até mesmo a jornada do herói apresenta o conflito de lidar com a evolução pessoal. A ficção científica expande o conflito e as diversas modalidades literárias para o futuro com toda a sua tecnologia, ou seja, o conflito nunca vai parar, por mais que criemos soluções, outras formas de conflito surgirão para se juntar aquelas que nos acompanham como espécie.
                Já houve quem dissesse que notícias boas não vendem jornal, porque o que interessa para as pessoas são os conflitos que estão acontecendo a sua volta e o motivo disso encontra suas respostas na psicologia. Para este trabalho, o importante é ressaltar que todo texto literário vai ter que ter em seu bojo mais íntimo, um conflito que deve ser apresentado, se desenvolver e movimentar a história a sua volta. Os gregos foram primorosos em perceber essa particularidade, mesmo as grandes aventuras de descobrimento apresentavam conflitos variados que surgiam a partir do conflito central que movimentava a história colaborando com a ação e com a conclusão da trama.
                Independente do modelo escolhido, do tamanho do texto a ser realizado, da quantidade de personagens envolvidos, o conflito vai estar presente e deve ser trabalhado com todo o cuidado necessário para que seja o motor da narrativa. Mesmo um microconto tem um conflito, um romance pode ter mais de um, ampliando a trama, mas não importa a quantidade, todos eles devem seguir três fases para serem elaborados corretamente. O conflito precisa ser apresentado em algum momento inicial da narrativa, pode-se até mesmo iniciar a narrativa por ele. É preciso delimita-lo, identifica-lo claramente, cientificar o leitor do motivo da narrativa existir e demonstrar que é necessário ser trabalhado. Muitas pessoas podem acreditar que esse cuidado é desnecessário, afinal quem vai comprar um livro policial sabe que vai encontrar um crime a ser solucionado, por exemplo, mas a grande sacada do autor experiente é demonstrar que apesar do crime ser uma peça central, o conflito verdadeiro pode não ser o crime, mas algo que levou a ele.
                Intensificar o conflito não é pintar com cores fortes, dramáticas, diálogos intensos ou maniqueísmos sufocantes. O conflito pode ser sutil, se embrenhando como uma névoa que penetra pelas brechas da narrativa e vai ganhando corpo ao longo do tempo, apresentando suas garras que vão pressionando e mudando as coisas enquanto se fortalecem. O crime pode ser apenas o resultado de um conflito que foi crescendo até que explodiu de forma violenta, insuspeita. Pode ser que o conflito seja apenas um terror psicológico, uma fobia que não se dá tanta importância assim até que ela atinge proporções de um câncer a crescer na alma e vai destruindo a personalidade do personagem que se tornar um monstro em sua própria história. Pode ser uma questão existencial antiga, um preconceito, uma questão moral complexa, uma dúvida insidiosa que não se resolve e não se revela.
                Apresentado e delimitado o conflito, é preciso fazer com que se misture com a narrativa em segundo plano. Espera, não é o conflito que move a narrativa? Sim, é exatamente isso, e note que quando anda de carro, ou de avião, não percebe o que o faz mover, não se fixa no esforço do motor, no ruído das turbinas, apesar de sentir o seu efeito e saber que se houver um problema ali, então as coisas vão dar ruim.  Até quando um problema com o motor ou a turbina são apresentados como o motor da narrativa, o que aparece na verdade são os seus efeitos. Que história seria contada se a narrativa se concentrasse em resolver o problema mecânico e apenas a isso se resumisse? “Charles apertou o parafuso fazendo a correia se fixar melhor, testou a tensão da peça e ligou o motor novamente, estava resolvido o problema, o carro não iria mais fazer tanto barulho”.
                Para que iria apresentar os conhecimentos mecânicos de Charles? Que importa sua altura ou cor dos olhos, o tipo de carro e de motor, quanto tempo foi produzido e qual a quilometragem? Que relevância tem para o leitor um motor barulhento por causa de uma correia mal ajustada? Mas, se o motor do carro for usado como uma metáfora para a vida de Charles, que segue ruidosa, causando confusões desnecessárias e precisando de ajustes simples que são ignorados constantemente, então temos um conflito interessante para o leitor, um paralelo entre o material e o emocional, a forma como Charles lida com as coisas que sabe como resolver, mas não tem vontade de corrigir até que percebe que se isso não for feito, os problemas vão aumentar e se multiplicar. O leitor pode não entender nada de mecânica de autos, mas vai entender a metáfora e perceber o vinculo entre o veículo e o seu dono, estabelecer o paralelo com a sua vida, os motores desajustados que encontra. Eis o conflito movimentando a narrativa sem que apareça no primeiro plano.
                Apresentado e delimitado o conflito, inserido de forma sutil em toda a narrativa e fazendo com que se movimente, é preciso estabelecer as reviravoltas. A correia que foi ajustada está desgastada, por isso ficou folgada, pode se romper a qualquer momento e provavelmente vai ser exatamente no instante em que for mais necessária. Ou pode ser substituída e por conta da supressão do ruído que provocava, revelar que há outros ruídos que não eram percebidos, outros problemas que estavam ocultos porque se acreditava que era algo simples. Pode se romper no exato momento em que um ladrão de carros estava fugindo com o veículo roubado e o proprietário pode recupera-lo sem maiores prejuízos. As reviravoltas redirecionam a narrativa para um novo ângulo, uma nova perspectiva, e intensificam a experiência porque podem surgir a qualquer momento, tanto a favor como contra o rumo que se estava dando, até mesmo invertendo o sentido. As reviravoltas não são motores da narrativa, mas utilizam as energias geradas pelo conflito para encaminharem os rumos desta, cuidado para não derrapar ao usa-las.
                Depois de apresentado, definido, entranhado na narrativa, o conflito precisa de uma solução. Cabe aqui um aparte, todos os conflitos apresentados, mesmo os conflitos paralelos, auxiliares do motor central, devem ser solucionados de alguma forma para não gerar o efeito de “pontas soltas”. Conflitos paralelos são interessantes desde que reforcem o conflito central de forma a intensificar o seu efeito e até mesmo gerar reviravoltas, mas se forem deixados de lado sem uma solução, acabam enfraquecendo o texto porque dá a impressão de que o autor se perdeu nos fios da trama, deixando fiapos que estragam a textura final. Para o leitor, cada pequeno detalhe pode ser importante e vai cobrar do autor que trate da mesma forma. Para o autor, algo pode parecer menor, sem muita importância, mas se encontrar um leitor que dá importância ao tema e ficar frustrado porque se sentiu desprestigiado, vai acabar percebendo que mesmo um conflito menor pode gerar uma história diferente da que se esperava.
                Quando o conflito deve ser fechado? Depende, se forem os paralelos, normalmente ao longo da narrativa. É um erro deixar para fechar todos os conflitos no final, uma solução deve começar justamente pelas pequenas questões que nasceram da questão central e assim encaminhar para um fechamento. Como fazer os encerramentos paralelos e encaminhar para o fechamento da história sem que haja uma antecipação do que vai acontecer no final é o trabalho que torna o texto uma obra de arte. O diabo mora nos detalhes, costumam falar, mas as fadas trabalham no silêncio e sem serem notadas, então exercite bastante essa parte para que não fique previsível a narrativa e perca o passageiro antes do final da jornada.
                Os conflitos, central e paralelos, a apresentação, delimitação, reviravoltas, fechamentos, são os elementos que determinam o ritmo narrativo e tornam interessante a história. Planejar cada evento antecipadamente permite que se consiga estabelecer o movimento necessário para sustentar o interesse do leitor mesmo que ele seja obrigado a interromper o texto. O tamanho do texto está menos vinculado a quantidade de palavras ou páginas que ao interesse do leitor, um texto curto com poucas palavras pode ser cansativo, demorado, parecer ser maior do que está formalmente visível. Por outro lado, um texto com muitas páginas pode ser lido com uma velocidade narrativa ágil e tornar-se mais prazeroso, fazendo com que o leitor queira voltar a ler mesmo que seja obrigado a interromper, levando o texto na cabeça, junto com ele, sendo atraído e seduzido de volta.
                A velocidade da narrativa, a sedução do leitor pela história, o engajamento e interiorização da perspectiva do leitor, está vinculado com a qualidade do trabalho, o uso adequado das palavras e da temática, o desenvolvimento da narrativa e dos conflitos apresentados, as reviravoltas, mas também está vinculado ao modelo narrativo escolhido que determina como será usado o clímax e anticlímax. O leitor quer ser surpreendido, mas não quer ser tratado como um idiota. Quer se envolver com os personagens, se identificar, mas não quer ficar frustrado com o desenvolvimento deles, com as soluções encontradas. O leitor quer amar/odiar alguns personagens, desejar ser um ou outro, torcer e se sentir emocionalmente envolvido, mesmo que não alcance o resultado que projetava, mas jamais pode ficar frustrado com o resultado apresentado. Se o objetivo do texto é provocar revolta e conseguir, que o leitor fique satisfeito em se revoltar com o que foi apresentado, não com o autor que apresentou. Os conflitos devem ser trabalhados na narrativa, se ultrapassarem esse limite, algo muito errado aconteceu e o final nunca é aquilo que se desejava.



Passo 5 – Tecnologia da Língua


Muitas pessoas desconhecem que a escrita é uma tecnologia, estamos acostumados a pensar a tecnologia pelos seus produtos, e não pelo conceito criado e desenvolvido. É mais fácil achar que um celular é uma tecnologia que perceber que na verdade é o produto de diversas tecnologias que se unem para formar um conceito integrado e produzir o aparelho. Mas como todas as tecnologias, se não houver evolução, fica obsoleto e desaparece. No caso da escrita é o que chamamos de línguas mortas, porque a língua, por ser uma tecnologia, também precisa evoluir e isso é feito através do seu uso pelos falantes da língua. Quando não há mais pessoas que falam uma língua, ela desaparece, mesmo que haja registros de sua existência.
A língua de uma comunidade, um povo, é desenvolvida pela oralidade que se replica em padrões gráficos (a escrita) e retorna para a oralidade em um fluxo contínuo. Por isso é muito comum as contrações de palavras, as incorporações de estrangeirismos e regionalismos, as anexações de gírias e coloquialismos, que se perdurarem por tempo suficiente se tornam um padrão culto, oficial e permanente. Essas transformações e adaptações são importantes não apenas para manter a língua viva, mas para revelar, difundir e preservar a cultura do grupo que representa. Porém, para um autor, pode apresentar dificuldades não perceptíveis no primeiro momento.
Ficamos tão acostumados com as palavras do nosso vocabulário, do grupo social que frequentamos, do país que vivemos, que não percebemos as sutilezas que elas escondem e que podem ser um entrave na hora de criar uma boa história. Muitos autores esquecem que de acordo com a época em que uma história se passa, é preciso adequar a forma dos diálogos para o modo como era dito por aquele grupo, o sotaque da região em que se desenvolve, a classe social do personagem, suas influências étnicas e culturais. Da mesma forma os objetos nomeados podem ter nomes diferentes de acordo com a localidade. Boa parte do trabalho do tradutor de um texto é encontrar os paralelos exatos ou o mais aproximado possível para um termo que, muitas vezes, não existe no grupo para o qual a tradução está sendo feita.
Expressões idiomáticas, aquelas frases de efeito ou conjunto de palavras que designa algo através de uma metáfora, muitas vezes não pode ser traduzido em todo o seu sentido embora as palavras possam ser substituídas facilmente, porque a expressão em si não é apenas a soma das palavras, mas representa um conjunto sutil de interpretações particulares que pertencem apenas a uma comunidade e se perdem quando saem do contexto original em que foram produzidas. Os ajustes precisam ser feitos de forma que o conteúdo seja traduzido não apenas no conceito, mas em toda a gama de sentimentos implícitos nas palavras.
É por isso que muitos especialistas dizem ser possível conhecer um povo através do estudo de sua língua, porque ela traduz para as palavras e seus sentidos toda a cultura em que foi produzida, impregnando os sentidos semânticos e suas variantes de significados diferenciados que nascem ou se transformam através dos usos da linguagem. Para a literatura a linguagem é mais que uma simples ferramenta de comunicação, ela é responsável por criar todo o cenário, induzir a imagem mental sobre os personagens e cenas, apresentar os estados emocionais e os nuances dos diálogos, sustentar a história, imprimir o ritmo e a fluidez do texto de forma que fixe a atenção do leitor sem induzir a ruídos mentais (pensamentos furtivos que não se vinculem com o que está sendo lido) ao mesmo tempo que promovem uma conexão com as memórias possíveis do leitor em busca de uma identificação mais profunda.
Na prática significa dizer que o uso de “línguas estranhas” que não tem base alguma, ou mesmo nomes de personagens diferentes da realidade retratada, regionalismos ou gírias fora do lugar onde são usadas ou descontextualizadas, inserções de estrangeirismos ou línguas mortas, além de símbolos que não podem ser vocalizados (ilustrações dentro do livro), podem comprometer seriamente os usos que se deseja para o texto. Uma das vantagens de um texto curto é a possibilidade de ser apresentado em uma leitura dramática, mas se houver complicações como as apresentadas, por mais que se ajustem a narrativa, dificultam demasiadamente o seu uso em outro formato.
Já recomendei anteriormente que o texto fosse lido em voz alta para perceber qual é o ritmo de leitura que ele predispõe, mas para saber se será um entrave para um leitor não acostumado com a linguagem usada, é preciso que seja lido em voz alta por uma pessoa que represente o público objetivado para aquele texto, assim pode-se perceber qual o efeito que vai causar na pessoa. O entendimento de um texto está vinculado ao nível de aprofundamento e conexões de memória que ele desperta, quando a leitura trava por tempo demasiado em uma palavra, todo o contexto recente é perdido, da mesma forma se provocar uma fuga dispersiva por conexões com outros assuntos. Quantas vezes se é obrigado a recomeçar a leitura de um ponto anterior porque apesar de se ter lido um trecho longo, não se fixou na memória o que foi dito? A escrita deve pegar o leitor pela mão e estabelecer um vinculo de confiança com ele de forma que possa conduzi-lo atento ao que vai ser apresentado, ou não vai funcionar.
Também é preciso tomar cuidado com determinados termos que podem soar ofensivos para alguns grupos de leitores, embora para o autor não representem nada pejorativo, que denigre a moral das pessoas representadas. A forma como as palavras serão interpretadas pelo leitor não pertence ao autor, embora este seja responsabilizado por qualquer interpretação que possam assumir. Por isso todo o cuidado com as palavras usadas em uma contextualização da narrativa, deve ser tomado. Pesquisar o tema, o público objetivado, as formas comunicativas que são empregadas por autores populares e clássicos, os efeitos de uma possível tradução para outras línguas, etc. são importantes para evitar problemas.

Com o tempo, todo esse processo vai se tornando automático e o autor adquire maior liberdade criativa, segurança para inovar em alguns pontos e formalizar em outros, porque vai entendendo cada vez mais do processo de criação literária e dominando a ferramenta tecnológica da língua, desenvolvendo o seu estilo pessoal e criando a sua marca característica. Sim, da mesma forma que a língua de um povo traduz a sua cultura, a linguagem estilística de um autor fica impregnada da personalidade do seu criador, o que não significa que não conseguirá criar uma isenção narrativa, calar a voz interior e deixar apenas a voz narrativa. Ou, como é o medo de muitos autores iniciantes, permitir que descubram segredos de sua personalidade pelo que escreve. O autor está na sua obra, mas não é a sua obra, que fique claro isso. Mesmo um autorretrato pintado por um artista talentoso, não representa o artista em toda a sua complexidade, quando muito apresenta um recorte que ele quer destacar, mas qualquer quadro do artista terá elementos exclusivos dele, que são identificados por especialistas e que demonstram a autoria de forma mais eficiente que a mera assinatura.

(Em construção)

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