Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Adélia Prado
Flor dos Dias (adaptação transcritiva para
linguagem teatral) – Danny Marks
(Entra a
menina cabisbaixa com as pétalas de uma rosa presas em seu punho. O talo da
flor enconstado na pele do braço desnudo)
— Meu pai descobriu-se doente quando já era irremediável qualquer possibilidade
de cura. Contrariando a si mesmo, deu para rir mais. Contrariando o médico, não
repousou jamais. Pintou de amarelo brilhante, quase alaranjado, o semblante de
nossa casa, como a rir do seu.
(Pausa)
(A menina ergue o olhar para o público e lentamente ergue os braços em um
abraço, abrindo as mãos.)
— Por algum tempo moramos em uma casa onde, constantemente, amanheciamos.
(A rosa alaranjada cai ao chão e a menina fecha o abraço sobre si mesma
definhando de joelhos)
-Não pai, a Cida tá cobrando baratinho pra praticar,só isso.A coitada da
mãe nunca tem chance de se cuidar um pouco.
-Hummmm.... sei.
................
No espelho do
banheiro Zé se depara com um quase desconhecido, o que vê é uma
pálida imagem do passado.
Desconfortável desvia o olhar, enquanto enxuga as mãos na toalha rosa com beirada em
crochê.
Está mexendo no controle da televisão,
quando Zulmira entra apressada.
-Oi Zé, chegou
mais cedo? Fui na Cida fazer as unhas,olha como ela tá trabalhando direitinho?
Aproveitei fiz uma escova, gostou?
-Hum...hum.
-Só vai dizer isso? Hum..hum
-Você quer que eu diga o que? A tal Cida
num tá fazendo o curso, não vai
abrir um salão lá na avenida?Deve di sabe o que faz. Se você tá toda feliz
desse jeito,minha opinião não interessa.
-Nossa Zé, que grosseria, se soubesse que ia ficar bravo, não teria ido.
-Num to bravo mulher, deixa de besteira. Você é bonita de qualquer
jeito. Só estranhei porque hoje num tem festa nem nada.
-É que a Cida precisa praticá, toda a vizinhança tá aproveitando.Ela
cobra menos da metade do preço de salão.
-Tá certo, não vamu discuti a toa. Dá pra arrumá a comida mais cedo, vou ver o futebol lá na quadra com
a turma.
Após servir
o jantar e arrumar a cozinha,como sempre ela está só. Recostada no sofá,
folheia o livro que a filha mais velha emprestou dias atrás. De olhos fechados, alisa a capa
com carinho,como se fosse o rosto de alguém querido, sempre amou livros. Quem sabe,como
afirmam as meninas, ainda haja tempo para aprender algo novo.
.Além de noções
de gramática e ortografia, tem
textos interessantes que ela, embora
achasse impossível, está conseguindo entender muito bem. Abre uma página ao acaso, o título chama
atenção:
O caminhante das estrelas
“....chegou sem avisar, o estranho
caminhante. Em uma das mãos um saco de tecido transparente contendo
letras cintilantes,inquietas, parecendo
ter vida própria. Na outra mão uma tocha,
para iluminar o escuro.
Seus passos deixam um rastro vindo
das estrelas, e o caminho à frente
marcado pela chama da tocha, não está
bem definido, mas é misterioso,
atraente......”
-Acorda mulher, depois fica reclamando de dor no pescoço.Vai pra cama.
-O que? Que foi, nossa você já chegou? Acho que peguei no sono.
-Acha? A televisão ligada, esse livro em cima de você, tá de bobera
mulher. Que mania é essa agora de ficar com esse livro pra lá e pra cá.
-Foi a Géssica que me emprestou pra eu esclarecer uma dúvida com uma
palavra, sabe aquele dia em que a gente discu...
-Desculpe Zuzu, mas to morrendo e de sono. Ainda bem que amanhã já é
sexta, depois me fala disso, vamu pra cama que já é tarde!
Ressentida com
mais uma indiferença, mas extremamente
cansada, pega rápido no sono.
O caminhante vindo das estrelas se aproxima sorrindo. Atira em sua
direção as letras inquietas, que rápido formam um tapete, onde ela deita sem
cerimônia. Algumas se transformam em pequenas borboletas coloridas que em
vôos rasteiros, tocam de leve seu corpo
aqui e ali,provocando uma sensação muito boa.
Ele traz um livro na mão e sorri enigmático.Leva a
tocha em sua direção e com a chama, toca
de leve seu corpo.Um calor que não
queima, mas invade cada espaço inexpugnável.
Uma onda de prazer acontece, como
um jato de vida incontrolável, penetra
todas as células adormecidas.
-Zuzu, Zuzu, o que foi, tá
passando mal?
-Hã? O que tá acontecendo Ze?
-Que tá acontecendo digo eu,
tá se debatendo, gemendo feito louca.
Foi alguma coisa que fez mal? Qué um sal
de fruta?
-Não Zé, foi só um pesadelo.
-Então reza pro anjo da guarda e volta a dormi em paz!
Alegria, alquimia do amor...
Sol, Leão, verão na alma,
Nada acalma , na palma da mão.
Farol, tesão, rumo sem aprumo,
Lençol em prontidão, submissão,
Desejos em solstício,
Exercícios da paixão...
-Conversa doida não, bem que
ajudou a genti a pará de faze filho.
-Qué dize filha né Zuzu, que
desse mato não saiu nenhum cuelho!
-Si não esquecesse, ia lembra que ela falô disso também. Quem faz o sexo da criança é o
pa....
-Pô, essa istória de novo! Melhor mudá a conversa, isso
sempre acaba em discussão. A janta tá pronta?
(....)
Sobre a toalha
xadrez os pratos estão arrumados. Embora
simples, percebe-se o capricho: garfos do lado esquerdo,facas do lado direito, copos de vidro barato, reluzentes, guardanapo de
papel florido, dobrado em quatro.
Na pia a mulher termina de
temperar a salada. Semblante triste por
não ter conseguido falar ao marido de suas angustias.
-Que foi mãe, tá
chorando?
-Não menina, deixa de bobagem.
-Tá sim, não me enrola,conta logo, o que aconteceu?
-Deixa de ser boba Dany, num tá vendo qui sua mãe acabou de discacá cebola?
-Teu pai tá certo. Chama suas
irmã, a comida tá pronta. A Géssica tem prova no cursinho, diz pra ela si
apressá.
Durante o jantar Zé se esforça pra disfarçar a tensão. Conta
piadas sem graça, ri mais que de
costume, fazendo com que as quatro
filhas tenham momentos
descontraídos.
Não estivessem em plena juventude mergulhadas em suas prioridades, talvez percebessem que
os olhos vermelhos da mãe, não são pelo
descascar de cebolas, mas de lágrimas por temores que a pobre não tem espaço pra falar
a ninguém.
Aos poucos a cozinha
fica em silêncio.José se apressa em levar Géssica ao cursinho,
no velho fusca da família. Ela é
orgulho dos pais: cursa o último ano do ensino médio pela manhã,
trabalha como recepcionista num consultório dentário à tarde, e ganhou uma bolsa de estudos num cursinho
preparatório para a universidade à noite.
Também nada têm
do que se queixar das outras três:
empenhadas em trilhar seus caminhos corretos.Zulmira é uma mãe presente: pobre nos estudos, incentiva e vê com orgulho o quanto suas
meninas tem gosto pelos livros.
Volta a chorar sozinha, agora de emoção, ao lembrar da promessa das duas mais velhas
outro dia após o almoço.
-Mãe, fica sossegada. Quando me formar
vou pagar uma empregada, a
senhora vai ver!
-Também to nessa mãe. Quero ver
dona Zuzu com a mão lizinha, perfumada, unhas bem grandes pintadas de vermelho.
- Outra coisa, a senhora vai fazer
algum dos cursos que vive falando!
-Estudar? Ficou doida menina, já passei do ponto.
-Passou nada. Lá no cursinho tem
um monte de gente de cabelo branco, que não teve chance antes e agora está
tirando o atraso.
(...)
Deixando a cozinha
em ordem, Zulmira relaxa no sofá
da sala. As pernas andam doendo demais, talvez precise apressar a cirurgia de
varizes.
Acaba caindo no sono e
tendo um sonho estranho: Ela e o
marido jovens, namorando sentados sobre a grama verdinha no Jardim Botânico.
Acordou com uma sensação esquisita, lembrando que de fato vivera uma tarde assim.
Estavam as vésperas do casamento,
José insistindo numa intimidade maior, sorrindo
malicioso lhe entregara um
pacotinho de balas, cada uma delas com
um bilhetinho amarrado, um código quase secreto, que ela ruborizando entendera
muito bem: quero a bala e você.....
Encontrar no meio do caderno da filha mais nova,
aquela palavra repetida dezenas de
vezes, tirou-lhe completamente o sossego, a fez recordar das insinuações
libidinosas de outrora.
(...)
-Tá tudo bem mãe, to achando a senhora abatida!
-Tudo bem filha,só os problema de sempre.
-Não vai mesmo contar né? Ando percebendo sua preocupação. Puxa vida, não sou mais criança,
a senhora não confia em mim?
-Claro que confio filha,em você e nas suas irmãs,mas existe tanta barbaridade por aí, qualquer coisa diferente a gente entra em pânico.
-Tá vendo, tá acontecendo alguma
coisa,fala logo mãe!
-Ai filha, promete que não comenta com as meninas, nem com seu pai?Tô
com a pulga atrás da orelha por causa de
umas coisas que li numa folha de caderno da Lu.
-Cartinha de namorado, recadinho, isso é normal na idade dela mãe, não
esquenta.
-Se fosse isso.... é uma coisa feia de falar. Procurei conversar
com seu pai,mas ele é ignorante, nem me deixou chegar perto do assunto.
-Então foi por isso que a senhora tava chorando outro
dia na hora da janta?
-Mais ou menos.Fui perguntar pra ele
como era aquele jeito que a médica do posto ensinou pra evitá filho.
-Nossa, a coisa é séria mesmo!
-Num to falando?Mas seu pai nem quis ouvir nada.
-Mãe, conta tudo desde o começo. O
que tem a ver o que a médica falou sobre anticoncepcional,com a
folha de caderno da Lú?
-Vou contar. Tô com um pouco de
vergonha, mas você já vai fazer dezenove
anos e está estudando pra fazer faculdade de enfermagem, tem tudo a ver,mas deixa eu falar de uma vez,
senão não consigo tá?
Você sabe que casei muito nova,naquele tempo a gente não tinha essa
intimidade de hoje em dia.Sexo só depois do casamento, é claro que muita gente
dava umas escapadinhas, mas daí era um escândalo daqueles. Seu pai vivia
insistindo num pouco de ousadia, mas eu era muito medrosa.No final foi bem
difícil segurar,ele vivia me dando presentinhos com bilhetes maliciosos.
Outro dia quando fui limpar a estante no quarto de vocês, caiu uma folha
de caderno da Lu com uma palavra feia escrita um monte de vezes.Lembrei das
explicação da médica porque era o jeito que seu pai criticava os ensinamento da
dotora.
-A senhora falou pra não interromper, mas não dá. De qual ensinamento a
senhora tá falando e qual é a palavra
feia que a Lu escreveu?
-Taí essa palavra que você falou:interromper. Eu perguntei pro sei pai e ele não lembrou.
Como é aquela coisa de parar o sexo antes do.....bem antes do final, pra evitar
a gravidez?
-Coito interrompido. Agora bagunçou de vez,o que isso tem a ver?
-Tudo ora bolas.Seu pai depois da palestra da médica, chegou em casa criticando, dizendo coisas
feias, como a palavra escrita no caderno da sua irmã.
-Ai meu Deus do céu, a senhora tá
querendo me enlouquecer? Conversa
sem pé nem cabeça!
- Espere um pouco. Olha a folha do caderno da sua irmã,veja o que está
escrito aí um monte de vezes! Só
pode ser recadinho secreto de um namorado sacana que tá querendo se
aproveitar da inocência da pobrezinha.
-Mãe, então é essa palavra que causou a confusão na sua cabeça?
-É essa sim, a mesma que seu pai
dizia fazendo gozação com o que a médica do posto tinha ensinado.Dizia que não
ia passar o resto da vida interrompendo o bem bom, ficou falando um tempão,lembro
como se fosse hoje.
Meta fora, meta fora, a doutora que use esse método de evitar
barriga,comigo não, isso é contra a natureza!
-Mãe, calma. Senta aqui pertinho,
vou explicar: Essa palavra no
caderno da Lu não é o que a senhora tá pensando. É da aula de português, fui eu
quem dei a dica dela escrever várias vezes pra memorizar,e não é meta fora é
metáfora!
-Me...metáfora e não meta fora. Eu nunca ouvi essa palavra, puxa vida filha, como é bom a gente ter
estudo, tava num sofrimento danado,com a cabeça cheia de caraminholas.
Quanta burrice meu Deus, justo eu que
vivo criticando seu pai por ser ignorantão!
-Calma dona Zuzu, não precisa ficar se martirizando. Vou pegar um livro
de português pra explicar pra senhora do
que se trata.
No mundo onde vivo
isso só existe para aqueles que acreditam que viver é um inferno. Não sou um
desses.
No mundo onde vivo
não há desculpas, não existe espaço para arrependimentos, não há tempo para
lamentações, não se pede perdão. Aceita-se a culpa.
As regras são assim.
Você faz as escolhas e aguenta as consequências. Não dá pra dizer que não
sabia, não há volta, o caminho te empurra para frente e segue, com ou sem
você.
Não dá para esperar ter
certezas, elas vêm com os fatos, ou nunca.
De vez em quando alguém
tenta quebrar as regras, mudar tudo. Às vezes consegue, por algum tempo. Mas as
regras são feitas para que todos tenham as mesmas chances de escolher, e quando
há escolhas as coisas cobram.
Não há escolhidos,
protegidos, privilegiados. O que um tem a mais é o que o outro mais deseja, e
se puder vai tomar sem pedir.
Guerra não há porque aqui
ninguém pode ser conquistado. Mesmo quando completamente derrotado. O vencedor
só poderia levar os destroços, inúteis, do que foi livre.
A liberdade não é
apenas uma palavra, não é um sentimento. É um estado de ser, o sentido de existir,
o motivo que não se busca por não estar em nenhum outro lugar senão onde lhe
é propicio.
Isto não é um jogo.
Talvez um acordo não escrito que você não assina e não percebe que entrou, mas
não pode sair.
No mundo onde vivo não existe crueldade; até a
ira mais profunda é fria como a certeza de que nem todos vão conseguir o que
desejam e desses, poucos vão ficar satisfeitos, por pouco tempo.
Não há um sentido
oculto por trás disso. Nenhuma verdade inalcançável guardada por legiões
obscuras de seguidores do absoluto nada.
No mundo onde vivo,
sentido é o que você empresta aos seus atos, os resultados são os seus tesouros
e as respostas o seu poder.
É quando percebe
que está no mundo há muito tempo, percebe que já foi longe demais e que aquele
que o seguia vai passar por você e levar apenas a lembrança do seu rosto.
Até que, mesmo isso,
desapareça.
Só então terá paz.
Lógico
que ele nunca admitiu isso, na verdade nunca se achou um cabeça dura. Considerava-se
muitas coisas: motoqueiro, roqueiro, bonito, inteligente, pegador, sarado,
habilidoso. Mas cabeça dura? Claro que não. No máximo, impulsivo.
Leu
isso em um horóscopo, gostou e aderiu. Impulsivo era algo melhor que cabeça
dura, não era? Não importa, mesmo que fosse a mesma coisa não admitiria jamais.
Todos
temos momentos difíceis, todos temos nossos problemas e nossas soluções, e as
do João eram assim, impulsivas. Se até atleta tem que tomar impulso para saltar
os obstáculos que mal tem em ser um cara que faz disso uma condição?
Quando
arrumou emprego de cachorro louco, gostou do termo. Motoboy é coisa de gringo
fresco, cachorro é mais brasileiro e todo roqueiro brasileiro é louco, não é?
A
habilidade dele era tomar impulso, se jogar mesmo; fosse na vida, fosse ao
entrar em uma esquina. A habilidade o salvava. Nunca aconteceu nada, então é o
certo a ser feito, não é mesmo?
Foi
assim com a Maria, ou seja o nome que ela tem, mas todo João tem uma Maria que
é o seu contraponto, o seu esteio, o seu
motivo de se jogar na vida.
E
a Maria vai ter um filho, desses que tiram a gente do sério, quando se é sério;
ou então desses que deixam a gente louco de felicidade, quando se é louco.
Mas
louco não pensa, louco é cabeça dura, cabeças-duras não pensam, não é mesmo?
Mas
o João era apenas impulsivo, se fosse cabeça dura poderia ser diferente.
Eu
nem sei por que chamam alguém impulsivo de cabeça dura, não tem nada a ver uma coisa com outra. Na
cabeça dura não entra nada, na impulsiva talvez entre, às vezes, quando menos
se espera.
Mas
o João não era cabeça dura, e isso fui eu quem provou, sem querer, por culpa do
João Impulsivo com seu cabeção que se atirava nas esquinas sem pensar, como um
cabeça dura, mas que nunca tivera problema porque era só tomar bastante impulso
e seguir em frente.
Eu
não conhecia o João, só fiquei sabendo das coisas depois, quando não dava mais
pra conhecer o João, ou o filho da Maria, ou seja lá qual for o nome da moça
que ficou viúva quando as rodas macias do meu carro encontraram o crânio que
deveria ser duro, mas não foi.
E
agora o João não é mais chamado de cabeça dura, não é mais chamado por ninguém.
E
só eu continuo com o João na cabeça, que
não é tão dura quanto a vida pode ser.
Estou
honrado de estar aqui, na formatura de uma das melhores universidades
do mundo. Eu nunca me formei na universidade. Que a verdade seja dita,
isso é o mais perto que eu já cheguei de uma cerimônia de formatura.
Hoje, eu gostaria de contar a vocês três histórias da minha vida. E é
isso. Nada demais. Apenas três histórias.
A primeira história é sobre ligar os pontos.
Eu
abandonei o Reed College depois de seis meses, mas fiquei enrolando por
mais 18 meses antes de realmente abandonar a escola. E por que eu a
abandonei? Tudo começou antes de eu nascer. Minha mãe biológica era uma
jovem universitária solteira que decidiu me dar para a adoção. Ela
queria muito que eu fosse adotado por pessoas com curso superior. Tudo
estava armado para que eu fosse adotado no nascimento por um advogado e
sua esposa. Mas, quando eu apareci, eles decidiram que queriam mesmo uma
menina.
Então
meus pais, que estavam em uma lista de espera, receberam uma ligação no
meio da noite com uma pergunta: “Apareceu um garoto. Vocês o querem?”
Eles disseram: “É claro.”
Minha
mãe biológica descobriu mais tarde que a minha mãe nunca tinha se
formado na faculdade e que o meu pai nunca tinha completado o ensino
médio. Ela se recusou a assinar os papéis da adoção. Ela só aceitou
meses mais tarde quando os meus pais prometeram que algum dia eu iria
para a faculdade. E, 17 anos mais tarde, eu fui para a faculdade. Mas,
inocentemente escolhi uma faculdade que era quase tão cara quanto
Stanford. E todas as economias dos meus pais, que eram da classe
trabalhadora, estavam sendo usados para pagar as mensalidades. Depois de
seis meses, eu não podia ver valor naquilo.
Eu
não tinha idéia do que queria fazer na minha vida e menos idéia ainda
de como a universidade poderia me ajudar naquela escolha. E lá estava
eu, gastando todo o dinheiro que meus pais tinham juntado durante toda a
vida. E então decidi largar e acreditar que tudo ficaria ok.
Foi
muito assustador naquela época, mas olhando para trás foi uma das
melhores decisões que já fiz. No minuto em que larguei, eu pude parar de
assistir às matérias obrigatórias que não me interessavam e comecei a
frequentar aquelas que pareciam interessantes. Não foi tudo assim
romântico. Eu não tinha um quarto no dormitório e por isso eu dormia no
chão do quarto de amigos. Eu recolhia garrafas de Coca-Cola para ganhar 5
centavos, com os quais eu comprava comida. Eu andava 11 quilômetros
pela cidade todo domingo à noite para ter uma boa refeição no templo
hare-krishna. Eu amava aquilo.
Muito
do que descobri naquela época, guiado pela minha curiosidade e
intuição, mostrou-se mais tarde ser de uma importância sem preço. Vou
dar um exemplo: o Reed College oferecia naquela época a melhor formação
de caligrafia do país. Em todo o campus, cada poster e cada etiqueta de
gaveta eram escritas com uma bela letra de mão. Como eu tinha largado o
curso e não precisava frequentar as aulas normais, decidi assistir as
aulas de caligrafia. Aprendi sobre fontes com serifa e sem serifa, sobre
variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras,
sobre o que torna uma tipografia boa. Aquilo era bonito, histórico e
artisticamente sutil de uma maneira que a ciência não pode entender. E
eu achei aquilo tudo fascinante.
Nada
daquilo tinha qualquer aplicação prática para a minha vida. Mas 10 anos
mais tarde, quando estávamos criando o primeiro computador Macintosh,
tudo voltou. E nós colocamos tudo aquilo no Mac. Foi o primeiro
computador com tipografia bonita. Se eu nunca tivesse deixado aquele
curso na faculdade, o Mac nunca teria tido as fontes múltiplas ou
proporcionalmente espaçadas. E considerando que o Windows simplesmente
copiou o Mac, é bem provável que nenhum computador as tivesse.
Se
eu nunca tivesse largado o curso, nunca teria frequentado essas aulas
de caligrafia e os computadores poderiam não ter a maravilhosa
caligrafia que eles têm. É claro que era impossível conectar esses fatos
olhando para frente quando eu estava na faculdade. Mas aquilo ficou
muito, muito claro olhando para trás 10 anos depois.
De
novo, você não consegue conectar os fatos olhando para frente. Você só
os conecta quando olha para trás. Então tem que acreditar que, de alguma
forma, eles vão se conectar no futuro. Você tem que acreditar em alguma
coisa – sua garra, destino, vida, karma ou o que quer que seja. Essa
maneira de encarar a vida nunca me decepcionou e tem feito toda a
diferença para mim.
Minha segunda história é sobre amor e perda.
Eu
tive sorte porque descobri bem cedo o que queria fazer na minha vida.
Woz e eu começamos a Apple na garagem dos meus pais quando eu tinha 20
anos. Trabalhamos duro e, em 10 anos, a Apple se transformou em uma
empresa de 2 bilhões de dólares e mais de 4 mil empregados. Um ano
antes, tínhamos acabado de lançar nossa maior criação — o Macintosh — e
eu tinha 30 anos.
E
aí fui demitido. Como é possível ser demitido da empresa que você
criou? Bem, quando a Apple cresceu, contratamos alguém para dirigir a
companhia. No primeiro ano, tudo deu certo, mas com o tempo nossas
visões de futuro começaram a divergir. Quando isso aconteceu, o conselho
de diretores ficou do lado dele. O que tinha sido o foco de toda a
minha vida adulta tinha ido embora e isso foi devastador. Fiquei sem
saber o que fazer por alguns meses.
Senti
que tinha decepcionado a geração anterior de empreendedores. Que tinha
deixado cair o bastão no momento em que ele estava sendo passado para
mim. Eu encontrei David Peckard e Bob Noyce e tentei me desculpar por
ter estragado tudo daquela maneira. Foi um fracasso público e eu até
mesmo pensei em deixar o Vale [do Silício].
Mas,
lentamente, eu comecei a me dar conta de que eu ainda amava o que
fazia. Foi quando decidi começar de novo. Não enxerguei isso na época,
mas ser demitido da Apple foi a melhor coisa que podia ter acontecido
para mim. O peso de ser bem sucedido foi substituído pela leveza de ser
de novo um iniciante, com menos certezas sobre tudo. Isso me deu
liberdade para começar um dos períodos mais criativos da minha vida.
Durante os cinco anos seguintes, criei uma companhia chamada NeXT, outra
companhia chamada Pixar e me apaixonei por uma mulher maravilhosa que
se tornou minha esposa.
A Pixar fez o primeiro filme animado por computador,Toy Story,
e é o estúdio de animação mais bem sucedido do mundo. Em uma
inacreditável guinada de eventos, a Apple comprou a NeXT, eu voltei para
a empresa e a tecnologia que desenvolvemos nela está no coração do
atual renascimento da Apple.
E
Lorene e eu temos uma família maravilhosa. Tenho certeza de que nada
disso teria acontecido se eu não tivesse sido demitido da Apple.
Foi
um remédio horrível, mas eu entendo que o paciente precisava. Às vezes,
a vida bate com um tijolo na sua cabeça. Não perca a fé. Estou
convencido de que a única coisa que me permitiu seguir adiante foi o meu
amor pelo que fazia. Você tem que descobrir o que você ama. Isso é
verdadeiro tanto para o seu trabalho quanto para com as pessoas que você
ama.
Seu
trabalho vai preencher uma parte grande da sua vida, e a única maneira
de ficar realmente satisfeito é fazer o que você acredita ser um ótimo
trabalho. E a única maneira de fazer um excelente trabalho é amar o que
você faz.
Se
você ainda não encontrou o que é, continue procurando. Não sossegue.
Assim como todos os assuntos do coração, você saberá quando encontrar.
E, como em qualquer grande relacionamento, só fica melhor e melhor à
medida que os anos passam. Então continue procurando até você achar. Não
sossegue.
Minha terceira história é sobre morte.
Quando
eu tinha 17 anos, li uma frase que era algo assim: “Se você viver cada
dia como se fosse o último, um dia ele realmente será o último.” Aquilo
me impressionou, e desde então, nos últimos 33 anos, eu olho para mim
mesmo no espelho toda manhã e pergunto: “Se hoje fosse o meu último dia,
eu gostaria de fazer o que farei hoje?” E se a resposta é “não” por
muitos dias seguidos, sei que preciso mudar alguma coisa.
Lembrar
que estarei morto em breve é a ferramenta mais importante que já
encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões. Porque quase tudo —
expectativas externas, orgulho, medo de passar vergonha ou falhar — caem
diante da morte, deixando apenas o que é apenas importante. Não há
razão para não seguir o seu coração.
Lembrar
que você vai morrer é a melhor maneira que eu conheço para evitar a
armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há
razão para não seguir seu coração.
Há
um ano, eu fui diagnosticado com câncer. Era 7h30 da manhã e eu tinha
uma imagem que mostrava claramente um tumor no pâncreas. Eu nem sabia o
que era um pâncreas.
Os
médicos me disseram que aquilo era certamente um tipo de câncer
incurável, e que eu não deveria esperar viver mais de três a seis
semanas. Meu médico me aconselhou a ir para casa e arrumar minhas coisas
— que é o código dos médicos para “preparar para morrer”. Significa
tentar dizer às suas crianças em alguns meses tudo aquilo que você
pensou ter os próximos 10 anos para dizer. Significa dizer seu adeus.
Eu
vivi com aquele diagnóstico o dia inteiro. Depois, à tarde, eu fiz uma
biópsia, em que eles enfiaram um endoscópio pela minha garganta abaixo,
através do meu estômago e pelos intestinos. Colocaram uma agulha no meu
pâncreas e tiraram algumas células do tumor. Eu estava sedado, mas minha
mulher, que estava lá, contou que quando os médicos viram as células em
um microscópio, começaram a chorar. Era uma forma muito rara de câncer
pancreático que podia ser curada com cirurgia. Eu operei e estou bem.
Isso
foi o mais perto que eu estive de encarar a morte e eu espero que seja o
mais perto que vou ficar pelas próximas décadas. Tendo passado por
isso, posso agora dizer a vocês, com um pouco mais de certeza do que
quando a morte era um conceito apenas abstrato: ninguém quer morrer. Até
mesmo as pessoas que querem ir para o céu não querem morrer para chegar
lá.
Ainda
assim, a morte é o destino que todos nós compartilhamos. Ninguém nunca
conseguiu escapar. E assim é como deve ser, porque a morte é muito
provavelmente a principal invenção da vida. É o agente de mudança da
vida. Ela limpa o velho para abrir caminho para o novo. Nesse momento, o
novo é você. Mas algum dia, não muito distante, você gradualmente se
tornará um velho e será varrido. Desculpa ser tão dramático, mas isso é a
verdade.
O seu tempo é limitado, então não o gaste vivendo a vida de um outro alguém.
Não fique preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas.
Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz interior.
E
o mais importante: tenha coragem de seguir o seu próprio coração e a
sua intuição. Eles de alguma maneira já sabem o que você realmente quer
se tornar. Todo o resto é secundário.
Quando eu era pequeno, uma das bíblias da minha geração era oWhole Earth Catalog.
Foi criado por um sujeito chamado Stewart Brand em Menlo Park, não
muito longe daqui. Ele o trouxe à vida com seu toque poético. Isso foi
no final dos anos 60, antes dos computadores e dos programas de
paginação. Então tudo era feito com máquinas de escrever, tesouras e
câmeras Polaroid.
Era
como o Google em forma de livro, 35 anos antes de o Google aparecer.
Era idealista e cheio de boas ferramentas e noções. Stewart e sua equipe
publicaram várias edições deWhole Earth Cataloge,
quando ele já tinha cumprido sua missão, eles lançaram uma edição
final. Isso foi em meados de 70 e eu tinha a idade de vocês.
Na
contracapa havia uma fotografia de uma estrada de interior ensolarada,
daquele tipo onde você poderia se achar pedindo carona se fosse
aventureiro. Abaixo, estavam as palavras:
“Continue com fome, continue bobo.”
Foi
a mensagem de despedida deles. Continue com fome. Continue bobo. E eu
sempre desejei isso para mim mesmo. E agora, quando vocês se formam e
começam de novo, eu desejo isso para vocês. Continuem com fome.
Continuem bobos.