Anteontem
morri, e ninguém ficou sabendo.
Não fiz alarde algum nas redes sociais, nenhuma nota de
falecimento previamente escrita, nem tarja preta, como nos remédios que sempre
me causaram espanto. De quem será o luto que tais remédios carregam? Da mente
ou da alma?
Morri assim, silenciosamente, por achar que fiz por merecer
mais que apenas um minuto de silêncio. Tantas coisas que calei e muitas mais
que falei ao longo desse tempo. Algumas até foram ouvidas e causaram diferença
na vida de outros que tenha encontrado por acaso ou sorte, e que se esvaíram no
tempo.
Morrer tem um sentido libertador, liberta a dor que
insistimos em manter presa dentro de nós. Não mais sentir a angústia que seca
nos olhos, por coisas que continuam a existir, apesar de nós.
Aquele filme que tanto desejava ver, perde a cor. Aquela
viagem que necessitava fugir, por outro será feita. Aquele livro interminável
que alavancaria a carreira com suas exigências cada vez maiores, jamais será
escrito novamente.
Pode ser que ocorra um inesperado sucesso, ao descobrirem
que o autor daquele romance que centenas disseram ter amado, embora a editora
tenha faturado apenas dois exemplares, ganhe ares de um clássico e adquira um
público que confessará, compungido, que conhecia o iluminado que o produziu.
Pode até ser que gostem da obra fictícia, simulando a vida,
que se apresenta nas redes sociais, como a pegar os peixes que nadam nesse mar
de diversidades e semelhanças. Então, recordarão de postagens e palavras,
reclamarão ensinamentos que possam ter ocorrido e se sentirão tocados pela
santidade do além que a todos torna santos.
Morrer no auge da saúde, que doença não manda aviso e
quando chega não dá espaço para mais nada, reclamando a necessidade absoluta de
decifrar o enigma da vida sob pena de devorar os que não o conseguirem.
Nada é tão libertador quanto morrer, nem mesmo a descoberta
daquele planeta que, se tornados luz, poderíamos alcançar em apenas quatro anos
e viver outra vida, talvez. Quem sabe até refazer todos os erros na esperança
que desta vez ocorresse algo inusitado.
Não mandarão flores, não regarão os jardins, não lembrarão
das gafes homéricas e das piadas engraçadas que só foram descobertas passado o
momento de rir, mas vão rir mesmo assim, por educação.
Enfim morto posso ler os livros acumulados de poeira, e se
não gostar dos primeiros capítulos, descarta-los sem remorso. Não serão
cobrados conhecimentos ou palavras gentis para obras horrendas. Não serão dados
elogios merecidos também, basta-lhes apenas terem sido adquiridos.
Números poderão ser abandonados displicentemente, datas,
saldos bancários, quantidade de amigos, coisas relevantes que se superaram ou
não. Apenas quantos por de sol e amanhecer que foram vistos. A Lua, assim
maiúscula, naquela foto que não será enviada e permanecerá egoisticamente
guardada na memória sem desbotar.
Não causará tristeza as imagens de crianças violentadas
pela burrice humana, ou as tentativas torpes de justificar cada erro e punir
cada acerto, de acordo com as interpretações e vivências que os interesses
delinearam em cada caráter, como tatuagem da vida, feita de cicatrizes
imperceptíveis a olho ou à nu.
Pode-se morrer todos
os dias, na busca de descobrir o que realmente é importante na vida, ou
permanecer morto por algum tempo, usufruindo da plácida tranquilidade que só se
alcança com a percepção da finitude.
Até que a vida nos puxe de volta ao seu redemoinho trágico,
e nos cobre alegrias e atitudes que devemos inventar constantemente para
satisfazer de alegria aqueles que nos querem felizes e produtivos. Que nos
querem por perto, mas não tão junto que tenham que nos carregar consigo.
Anteontem morri por breve período, apenas um ensaio a mais
para o grande cair do pano que um dia virá, o retorno ao camarim para tirar a
fantasia e limpar a máscara pintada no rosto e, quem sabe, no cantinho obscuro
iluminado em frente ao espelho, ouvir os aplausos do público, ou vaias que
possam ocorrer, mas que não alcançarão mais que a música que deixamos de ouvir.
E, só então, pensarei em retornar.
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