quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Lançamento A Teia de Sonhos - Karine Aragão

Danny Marks convida para o lançamento do livro A Teia dos Sonhos de Karine Aragão


Amizade e suicídio são temas em destaque no livro A Teia dos Sonhos
A professora e escritora Karine Aragão, lança no dia 05 de novembro de 2016 o romance A Teia dos Sonhos, sob o selo da Editora Muiraquitã, na livraria EdUFF, em Niterói.

                  Sobre a autora:

Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em Cultura Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Karine Aragão é professora de, aproximadamente, 310 crianças que estudam no ensino fundamental II, em Niterói – cidade que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), possui um dos maiores índices de suicídios do estado do Rio de Janeiro.



        Sobre o livro:

Em 2015, a professora ficou diante de um fato que modificou sua vida: uma adolescente teria se jogado de um edifício próximo à escola onde ela trabalhava.  Diante disso, a escritora resolveu pesquisar sobre o tema e desenvolver o romance A Teia dos Sonhos – que tem como objetivo trazer aos jovens estudantes, por meio de uma linguagem leve, não só reflexões sobre problemas ligados à juventude, mas uma forte mensagem de valorização à vida e às relações interpessoais.
A Teia dos Sonhos apresenta, em suas matizes, uma narrativa envolvente, jovem e delicadamente desenvolvida. Apresentando aos jovens leitores a beleza e o poder da amizade, a dor de uma perda, o caminho da superação e no meio do caos, o amor.
A difícil tarefa de crescer e aprender a perdoar aquilo que jamais será esquecido, o conflito entre sonho e realidade, os desejos mais escondidos, as amizades eternas, o namoro adolescente, a verdade nua da vida e o suicídio entre os jovens fazem do livro A Teia dos Sonhos leitura obrigatória a jovens e adultos.







Serviço:
Lançamento do livro A Teia dos Sonhos – de Karine Aragão
05 de novembro de 2016 – às 17 horas
Livraria EdUUF
Rua Miguel de Frias, 09 – Icaraí – Niterói.

Mais informações:
Editora Muiraquitã (Raquel Ribeiro)
Tel: 2620-2788

Século XXI - Danny Marks


Quem tem mais de cinquenta, como eu, provavelmente deve estar com a mesma decepção em relação a esse futuro que nos alcançou depois de longas batalhas para o realizar. Porque o futuro não chega sem muita luta, fica resistindo ferrenhamente e precisa ser arrancado à fórceps dos sonhos para finalmente gritar, para nossa alegria, quando nasce cheio das melhores expectativas.
Os primeiros momentos são de todos, um pedaço de cada um. Aquele olhar de esperança é dos avós, não notou? E aquelas ideias na cabeça, tão ralinhas, uma pendendo para um lado, outra para o outro, não é a cara do pai? Mas a força com que reclamou ao nascer, os berros que todos ouviram, isso não há dúvidas que é da mãe. Há sempre um vínculo com o passado, que lhe serve de base, em cada novo século que nasce.
Talvez por isso todo século quando nasce é feio. Enrugado de estar mergulhado em ideais por tanto tempo, só curtindo a vida nos sonhos que nem precisam se realizar, chamam-se apenas de futuro. Ninguém espera de fato que as expectativas se realizem, são mais para se ter algo em que pensar quando se namora, juntinho de conchinha, agarradinhos embaixo de um cobertor quentinho enquanto o frio fica do lado de fora, entre um amor e outro, até que haja um sexo gostoso que faz esquecer de tudo.
Talvez tenha sido esse o problema, o sexo. Desde que liberaram geral no século passado, com a queima dos sutiãs e o amor livre regado a muito rock´n´roll e rebeldia, as coisas ficaram mais soltas. Depois veio a ressaca, os peitos cansados da gravidade voltando para sutiãs de bojo a fim de parecerem mais firmes, volumosos, as ressacas homéricas que levaram a batidas ferozes, distorções, desconexões, em rituais sexuais estilizados. A rebeldia ainda tentou se manter firme, rebelde até mesmo na decadência. Importante era se revoltar contra qualquer coisa, e haviam tantas.
Ficou tudo tão disperso que os laços ficaram frágeis, esgarçados como lençóis amarrotados depois uma noite de amor intenso, a louça do café da manhã se juntando com a do jantar e esperando que alguém tivesse a dignidade de lavar os pratos antes dessa pirâmide desabar sobre a própria base. O homem foi para a lua a pretexto de trazer o universo para a amante, mas esqueceu o que tinha ido fazer lá, voltou de pedras nas mãos. Pedras que substituíram flores, muros quebrados que se tornaram mais pedras, e quando haviam tantas pedras no caminho, a poesia perdeu espaço e ficou concreta, armada. Começaram a atirar nos outros restos de sonho que acabou.
A esperança estava logo ali depois da curva, na virada do século que prometia ganhar novamente espaço, ciberespaço, que juntaria lugares mais distantes que o olhar diferente. Criar pontes e achar novos caminhos que nem se sabia que existir. O amor estava no ar e o sexo nas veias eletrônicas de uma nova realidade, mais forte, bondosa para com os desprotegidos de além na esperança que outros cuidassem dos daqui. Resgatar a natureza depredada, compartilhar riscos e ideias, juntando grupos de semelhantes em uma aldeia global que faria a roda do progresso girar e trazer soluções para todas as doenças do corpo e do caráter. Faríamos contato com outras inteligências de outros mundos que nos abraçariam em irmandade para salvar o planeta e a nós mesmos, no futuro.
Quando o século XXI nasceu, a contragosto, veio marrento em sua arrogância imatura, fruto de lar desfeito em valores penhorados. Criança birrenta, egoísta, que constrói castelos com pedras atiradas para olhar de cima das muralhas com ar reprovador das diferenças, na certeza individual de que é rei e o universo deve se curvar à sua vontade e sua inquestionável expertise superior. O olhar obeso acima do outro, a crítica chovendo acida em solo infértil, de rios contaminados e mar alagado.
Contatos com outras civilizações? Só se for para sexo voraz, descartável na saciedade individual, a posse sem retorno, que sinta o privilégio de me ter e esqueça essa coisa de ter sua vontade. Deixa de frescura que a vida é dura e vai penetrar onde houver espaços, caminhos fálicos, gente de armadura.
Solitário para não se ferir, cresce gigante o medo do desconhecido, espelho escurecido, revelado em fotos de nudes que deixa vazar nas redes, tentativa de ser capturado para não fazer tantas escolhas difíceis.
O que aconteceu de errado? Entramos com velocidade excessiva na curva e derrapamos em direção ao abismo? Ou apenas descobrimos que o mundo não é do jeito que pensávamos, com a nossa cara? Nosso jeito pode não ser o melhor, mas para que aprender se já acostumamos a ser? É preciso fazer a criança crescer de forma correta, perceber os erros dos pais e dos avós e não ter que os repetir, velhas lições só se forem estruturais. Não reinventar a roda, aprender a usa-la, descobrir coisas novas sem medo de ser velhos demais para aceita-las e nos permitir renovar.
É preciso olhar para o passado, não em busca de velhas respostas para os mesmos problemas que não foram solucionados. Olhar para frente e evitar saudosismos inúteis, reinventados pela lembrança adocicada da memória, buscando a sabedoria que nos fez chegar aqui. Tentar criar novas sabedorias que conduzam ao próximo século, sem gosto amargo de decepção e olhar crítico de quem já viu coisas demais, porém não reconhece as mesmas perguntas, os mesmos erros que insistem em se manter firmes, enquanto não os resolva definitivamente.

Então poderemos verdadeiramente conquistar o espaço, abraçar novas civilizações, que descobrimos não estarem no mundo da lua onde as fomos buscar, mas aqui ao lado, na casa do vizinho que, inadvertidamente, nos deixou entrar e que agora não sabe mais o que fazer com a nossa presença constante e vigilante. Descobrimos ter uma coisa em comum com esse vizinho, o medo. Mas podemos descobrir que há outras, tanto melhores em comum, como o desejo de ser feliz, de ter o seu espaço respeitado, de ter oportunidade de fazer escolhas diferentes e descobrir onde nos levam e que podemos aprender, ou nos decepcionar, com o que for encontrado. É preciso que isso seja feito, ou as próximas gerações não terão o privilégio que tivemos de ultrapassar limites do desconhecido, só para descobrir um espelho que nos revela como somos de fato, não como imaginamos, e que nos cobra a parte da responsabilidade de lidar com um sonho, que acabou virando a realidade em que vivemos. E que a poesia tenha esperança em nós.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Você não é tão especial assim - Danny Marks


           O sistema solar é composto de uma estrela central, chamada de Sol, e diversos corpos celestes sob sua influência gravitacional. Os quatro planetas mais próximos do Sol são Mercúrio, Vênus, Terra e Marte; mais afastados tem os quatro gigantes gasosos, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno; além desses existem os cinco planetas anões, Ceres, Plutão, Haumea, Makemake e Éris; sem falar em inúmeros corpos menores que permeiam praticamente toda a extensão do sistema solar.
          Apenas na Terra existem Ipês Amarelos, uma das 298 mil espécies de plantas que encantam os humanos. Humanos são uma das 7, 77 milhões de espécies animais que, ainda este ano, ultrapassou o número de 7 bilhões de indivíduos. A grande maioria desses indivíduos acredita que algum ser divino criou tudo, dos Ipês ao sistema solar e o universo, só para que o indivíduo possa ter uma boa vida. Nenhum problema quanto a isso, crenças são úteis para nos conduzirem em algum determinado caminho quando tudo o mais falha e necessitamos de algum conforto extra.
          A Zenilda, por exemplo, acreditava que o Ambrósio existia para pagar as contas dela e fazer-lhe as vontades. O Ambrósio não era um gênio da lâmpada, apenas um humano que tinha conseguido juntar uma grande quantidade de bens e valores que a humanidade chama de forma genérica de fortuna. Ambrósio, portanto, era rico; por consequência, Zenilda e os filhos que teve com Ambrósio também se sentiam ricos, afinal eram casados; a Zenilda com Ambrósio e os filhos com uma qualquer, nas palavras da progenitora.
          Há os que vão dizer que Ambrósio era um gênio de fazer dinheiro, mas os fatos demonstram que não, por dois motivos justos. O primeiro é que o Ambrósio foi à falência, embora a fortuna tenha durado um bom tempo antes de acabar; e o segundo é que tinha coração e não suportou o baque. Não morreu por ter falido, nem mesmo dos gritos da Zenilda quando soube que não poderia mais gastar a fortuna que não existia mais. Ambrósio sofreu um mal que os gregos antigos atribuíam a uma vingança divina, teve um infarto fulminante e caiu completamente duro no chão, o que lhe valeu apenas o ganho de um traumatismo craniano que, conforme relato de Zenilda, estragou um ótimo tapete que estava na entrada da casa.
          Segundo a vontade escrita de Ambrósio, o melhor seria cremar e espalhar as cinzas em um belo lugar. Dele, não do tapete, que um dos filhos disse que daria uma limpada para poder vender para um amigo turco. Como conhecido da família, fui convidado para a cerimônia fúnebre, até porque precisavam de alguma ajuda com os tramites necessários, afinal o Ambrósio era quem, em vida, fazia tudo. Não deixava a Zenilda nem ir no banco para ver o saldo da conta bancária, o que provavelmente foi um dos fatores que o levou a falência.
          Providenciei a cerimônia de despedida e a cremação do Ambrósio. Poderia ter cremado o tapete também, tem coisas que é melhor deixar ir, mas escolheram permanecer com o tapete que com uma maquiagem certa até parecia perfeitamente bem. Como o Ambrósio que estava com o terno que tinha usado no casamento de um amigo, há seis meses, em que tínhamos nos encontrado pela última vez. Foi nesse evento que soube da falência pelo próprio e dos seus planos para lidar com ela, a falência, não a esposa. 
A Zenilda também estava usando as mesmas joias do casamento, porque como revelou a todos “há coisas que se relutam em esconder, mesmo nos piores momentos”. Felizmente mudara o vestido para um verde escuro, já que “Fico horrível de preto. Jamais usaria!”. Por sorte alguém deve ter-lhe dito que o vermelho decotado que pretendia usar também não causaria boa impressão naquele momento triste e resolveu guarda-lo para a missa de sétimo dia, na esperança de atrair olhares mais bondosos da assistência.
          Os filhos do Ambrósio deram uma passada rápida no velório, mas tiveram que sair logo por conta de compromissos inadiáveis de extrema importância. Deram um beijo na pobre viúva que se recusava a chorar porque não podia manchar a maquiagem que não era a prova d’água, culpa da falência de Ambrósio, e saíram com alguma moça qualquer que não as esposas, porque já estavam se separando novamente. Como leal amigo de Ambrósio, olhei para uma delas quando já entrava em um taxi e observei que o vestido branco lhe caia bem no corpo de modelo. A vida seguia seu curso e o taxi também, para longe do cemitério.
          Com poucos presentes à cerimônia, percebi que a situação exigia que vencesse as reservas que pudesse ter e me aproximasse da viúva inconsolável e, naquele momento sozinha, para prestar-lhe solidariedade e conforto. Amigos, mesmo que não sejam gênios ou que estejam falidos ou falecidos, merecem a nossa consideração até a despedida final e, segundo um código não escrito, isso se estende aos que lhe eram caros. Por duvidar que alguém fosse mais cara para o Ambrósio que a Zenilda, obriguei-me a oferecer-lhe um ombro amigo, ao que ela aceitou imediatamente, já incluindo por sua conta todo o restante que não fazia parte do pacote contratado.
       Agarrado em um abraço mais intimo que pude prever, Zenilda desabafou o que devia ter segurado muito até aquele momento propício e deu-me sua versão dos fatos entre lágrimas secas e soluços etéreos. Tenho certeza que teria dado mais se houvesse consentimento de minha parte, mas consegui conter os excessos com subterfúgios desesperados que pude arrumar entre um respirar sufocado e outro.
          — Não sei como o Ambrósio pode fazer uma coisa dessas!! Imagina nos deixar em uma situação assim? E agora, o que vamos fazer? Nem ir ao banco eu sei! E os meninos? Nunca trabalharam na vida, isso é coisa para gente pobre! Não sei ser pobre. Ele não poderia ter feito uma coisa dessas, não poderia. Estou inconsolável!
          Realmente, que coisa feia, não é Ambrósio? Como pode simplesmente ter sofrido um infarto sem antes ter resolvido a questão da falência? Um verdadeiro descaso com a família, que agora se via diante dessa situação de ter que trabalhar como um pobre. Um verdadeiro absurdo terem que se sujeitar a essa situação. O grande Ambrósio, gênio, se revelando como parte dessa gente horrível que só pensa em si mesma. E agora a coitada da Zenilda, desamparada, agarrada ao meu lenço de seda que usou para secar lágrimas tão diáfanas quanto o mesmo.
 Há situações que nos colocam a prova, exigindo o máximo de nossa capacidade de aceitação, mas sempre há algo divino na intervenção do destino e quando alguém disse que iam fechar o caixão, aproveitei para me afastar e corri para o primeiro táxi da fila que esperava pelos clientes vivos. Quando nos deparamos com algo tão trágico, perdemos qualquer senso, por isso tive que pedir para alguém buscar o carro que havia deixado no estacionamento do cemitério, ao qual pretendo não retornar tão cedo.  
Procurei não pensar mais no assunto e seguir a vida como deve, quando recebi uma ligação do crematório para saber se os familiares não iriam comparecer para resgatar a urna funerária ou se preferiam que se usasse o procedimento normal para quando os familiares demoram mais que trinta dias para retornar, que seria jogar as cinzas nas arvores que enfeitam a paisagem. Lembro-me de ter visto belos Ipês Amarelos com suas belas flores a cobrir o terreno acinzentado. Respondi que, se fosse o caso, que seguissem o protocolo, já que não havia uma vontade expressa de Ambrósio para o depois e creio que onde estiver não deve ter se importado por um detalhe insignificante desses, ainda mais tendo pago pelo serviço e legítimo detentor do espólio resultante.
O próprio sempre dizia que o principal é saber que a nossa importância está naquilo que deixamos para as pessoas que são caras enquanto vivas, não depois que viramos poeira em um planeta que nem é tão importante assim em relação a todo o Universo. De certa forma, creio que o Ipê seria mais generoso que qualquer outro com quem Ambrósio tenha feito alguma transação, ao cobri-lo com flores pela eternidade que durasse. Não pude deixar de sorrir ao pensar que em nenhum outro negócio o Ambrósio se entregou tão completamente quanto naquele. Deve haver alguma justiça no universo, afinal.
O que aconteceu com a Zenilda? Realmente não sei, não soube dela. Deve ter queimado meu contato da agenda e procurado outro benemérito mais promissor para lhe fornecer o conforto que necessitava e que a minha atitude havia demonstrado que não estava disposto a proporcionar. Dos filhos e netos que possa ter, creio que nem ela sabe, o que fizeram e onde estão.
 Quanto a mim, quando abraço os meus familiares, lembro-me do Ambrósio, que apesar de não ser nenhum gênio e estar falido, deu-me a melhor lição sobre valores. Aqueles que nunca nos levam à falência, e nos quais todos os dias faço grandes investimentos e tenho um excelente retorno. Grande Ambrósio, que os Ipês amarelos o tenham eternamente sob sua sombra generosa e o cubram de flores. Amém.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Para (de querer) ser escritor - Danny Marks


           Devo confessar-lhe, amigo, que fiz uso de suas palavras e recomendações, quando lhe expus a vontade que me assolava a alma desde tenra idade, que bons ventos a levem.
          Comecei, no intuito de capacitar-me completamente para a tarefa auto imposta, a colecionar as dicas que versejam em generosidade nestes tempos em que, praticamente todos, abusam de egoísmo.
          Juntei boa sorte de livros dos grandes mestres, alinhados de forma a poder devora-los, ao menos quatro por mês, de forma que a quantidade de páginas não ultrapassasse um total de vinte páginas por dia, tendo o cuidado de considerar os que tinham mais de trezentas páginas como sendo dois exemplares e não apenas um, porque é preciso parcimônia no planejamento.
          Reservei na casa um local em que pudesse ficar completamente tranquilo, longe de qualquer distração quando me dedicasse a escrever diariamente, ainda que nada significativo fosse produzido, e confesso que isso deu-me mais trabalho que imaginava.
          Pensei no que poderia me distrair ao escrever, e comprei tampões para os ouvidos. A fome e a sede poderiam ser aplacadas facilmente se instalasse um frigobar com algumas comidas rápidas e bebidas. Por uma questão de espaço tive que arrancar o box e o chuveiro para instalar também a mesa com o computador e a conexão de internet, mais a estante para os livros.
          Me inscrevi em várias redes sociais e baixei algumas horas com podcasts com entrevistas de vários autores, além de vídeo-aulas com os maiores gurus da atualidade. Instalei uma barra de exercícios e comprei dois pesos de dois quilos e uma esteira que ficou encravada na porta, mas que, quando desligada, permitia a passagem.
          Deixei algumas outras coisas de fora, afinal é preciso ir com calma no começo, e essa coisa de escrever profissionalmente é para ser levada a sério, como um projeto de vida. Tem que ter consciência das dificuldades e ir superando os obstáculos aos poucos. Em uma semana já estava fazendo exercícios físicos enquanto escutava as vídeo-aulas e podcasts e pensava nos comentários das redes sociais que iria escrever, antes de ler algumas páginas.
          Dentro de dois dias completo o primeiro mês nesse treinamento que vai garantir que o meu livro seja um Best Seller quando for lançado, já tenho até uma lista e um cronograma das editoras que vão receber o original para avaliação assim que ele estiver pronto.
          É uma experiência fantástica que estou vivendo, sabe? E não sei por que os meus familiares se mudaram, está ficando difícil conseguir alguém para abastecer o minibar e comprar um desodorizador de ambientes. Tudo bem que tenho pulado o banho, ultimamente, mas é que os comprimidos antidepressivos que roubei do médico que veio me visitar não estão mais funcionando, e o café com vodka também não.
          Já me expulsaram de quatro comunidades e denunciaram três vezes o meu perfil, mas tudo bem, eram apenas fakes e já criei outros que também foram denunciados. Esse pessoal não colabora, a inveja é terrível no mundo de hoje.
          Perdi um dos pesos que foi projetado pela janela quando caiu na esteira que estava em alta velocidade, mas não me atingiu porque estava fazendo umas flexões na barra antes de ler mais algumas páginas dos livros que já quase terminei.
          Estou só entrando em contato para saber se posso considerar como escrita os meus posts nas redes sociais que tenho colecionado para ver se algum dia tem algo que se aproveite para publicação. É que estou meio confuso quanto ao tempo que tenho que dormir para poder cumprir toda a rotina e já não sei mais se aquela história em que o Foucault atira em Cthulhu com o robô que estava em cima da lareira de Westeros, e se transforma no saci-pererê para fugir com a branca de neve para o país das maravilhas foi uma inspiração que tive em um sonho ou se realmente escrevi essas páginas.
          Mas de resto está tudo bem, não vejo a hora de começar a escrever o romance que vai revolucionar o mundo. Qual era mesmo o título?



domingo, 18 de setembro de 2016

A Terceira Idade de Adão – Danny Marks


(Pré-História)

Minha infância? Ah, o melhor tempo da minha vida, um paraíso. Aquilo sim era vida boa.
Todo dia, quando acordava, ia colher frutas e raízes. De vez em quando dava para pegar algum bicho para o almoço. Carne malpassada, cortada no dente ou na pedra. Naquele tempo era tudo na base do “pau, pau; pedra, pedra”, não tinha essas frescuras de hoje. Quando acabava as frutas ou vinha o frio, a gente se mudava. Ia para outro lugar melhor. Verdade! Sempre tinha um lugar melhor para ir.

(Extinção dos Neanderthais)

Fogo? Isso foi depois, sabe? Nem sei quem veio com essa novidade assim de repente. Teve um que disse que era coisa do céu, sei lá. Mas logo já era coisa nossa, até que gerou discussão. Tinha uns vizinhos que a gente não se dava bem, sabe? Uma gente meio rude, não que nós não tivéssemos boa vontade, mas sabe como é. Gente rude é fogo, se deixar se espalha e já era. Tivemos que dar um jeito neles, para pararem de incomodar, entende?

(Antiguidade)

Com o fogo deu para ficar mais tempo parado, comer melhor. Aí veio o metal, as plantações. Facilitou bastante as coisas, não precisava sair para conseguir comida boa. A mulherada deu para fazer roupa e fofoca, civilização é assim. Foi nessa época que inventei a escrita. Tinha que ir para a escola aprender, nada dessa coisa de pintar caverna o dia todo e tudo bem. Nem a caverna dava mais para acomodar tanta gente. E como tinha gente, meu pai! Tinha uns que trabalhavam e outros que ficavam pensando sobre as coisas, e sempre tinham coisa para pensar.

(Império Romano)

Então veio aquela turma que queria expandir os horizontes e mostrar que o nosso jeito de levar a vida era o melhor, quer dizer, o único que deveria haver, assim não dava problemas. Época boa essa, disciplina do exército que molda o caráter. De vez em quando a gente invadia um pais aqui e ali e colocava ordem na casa. Promovia a paz, nem que fosse na marra, sabe? Aqueles povos ignorantes que não sabiam o que era a paz, a gente ia lá e mostrava para eles. E as coisas ficavam em paz, de um jeito ou de outro. Depois era só cobrar uns impostos para manter as coisas certas.

(Povos Bárbaros, Cruzadas)

Teve um tempo que foi muito louco, sabe? Bateu aquela vontade de quebrar as regras. Tinha regra para tudo quanto é lado e ninguém aguentava mais. Pegamos os metais de novo e as coisas ficaram bem punk. Foi um tempo bárbaro, entende?
Briga? Ah, teve umas brigas danadas com uns caras que eram meio que esquisitos e moravam lá longe, onde não morava ninguém. Vizinhos, sabe? Sempre dá problema. Mas aqui entre nós, a gente já tinha aprendido a dar um jeito nos vizinhos. Ô se tinha...

(Idade Média)

Lembra daquela turma que gostava de ficar pensando? Então, teve uns que, sei lá, pensaram demais e começaram a escrever livro sobre isso. E resolveram ir além e escrever sobre coisa que ninguém viu. Cada ideia muito louca, mas sempre que tinha alguém que queria aparecer mais que os outros. Aí a gente faziam um churrasco, queimavam uma carne aqui e outra ali e no fim dava tudo certo. Mas com o tempo o mundo ficou meio que maluco. Uns queriam inovar tudo, outros queriam voltar tudo ao que era antes, outros nem sabiam o que queriam mas inventavam um monte de coisa diferente só pra encher o saco. Ficou tudo muito obscuro nesse tempo, mas na Média até que a gente se superou. A gente sempre se supera e faz história, entende?

(Idade Moderna, Reforma Protestante, Iluminismo, Rev. Francesa, Rev. Industrial).

Aí veio a coisa da modernidade, você nem imagina. Foi muito forte isso. Sabe o que é máquina? Então, era máquina sendo criada para fazer e desfazer coisa de gente. Era um tal de reforma para lá e reforma para cá, umas coisas de renascimento, de iluminar tudo, como se já não tivesse fogo suficiente. Só sei que teve muita gente que perdeu a cabeça nesse tempo, ô se teve. Eu não! Segui firme e forte, macaco velho não deita em galho podre, só vai no balanço, percebe?

(Independência das Américas)

Quando as coisas ficaram muito chatas pras bandas de lá, resolvi que o melhor era mudar de ares de novo. Sempre tive essa coisa de nômade, de querer ser livre. Aquela turma só pensava em castelos e além. Saudade da caverna? Não dá, né? Chega um momento que a gente tem que crescer, cuidar da família, arrumar um lugar para ficar, essas coisas. Terra tinha, nova, lá do outro lado do mundo. Mas é só ter uma boa ideia e logo junta gente querendo fazer igual, chamar aquele chão de seu. Sem falar que tinha uma gente rude por lá que, sabe como é, né? Ainda bem que as coisas que se aprende, não se esquece nunca mais.

(Primeira e Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, Movimento Hippie, Conquista do Espaço)

Foi uma guerra sabe? Por aí dizem até que foram duas, que quase viraram três, mas deram uma gelada na turma e a coisa sossegou. Não adianta nada você arrumar mais espaço se não pode fazer nada com ele porque está brigando com vizinho. O jeito foi fazer um acordo e dividir o que sobrou. Até parecia que ia funcionar, que ia dar para relaxar e aproveitar os bons tempos, curtir as flores, plantar o amor e o que mais desse. Curtir aquele som na paz e na alegria. Que nada. Foi só dar um tapa na pantera e já apareceu aquela gente rude enquadrando o universo. Tivemos que subir o tom.

(Internet)

Tem algo que acaba incomodando, cutucando a gente quando menos espera. O negócio é ficar de olho no que o vizinho esta fazendo. Veio aquela coisa de rede social, coisa inventada para pegar gente, e pegava mesmo. Tô falando. Quando você dava uma distraída, já estava lá discutindo qual vida é melhor ser vivida e quem deve ter direito a ela e como, o que as pessoas devem fazer, como devem falar, com quem devem falar, essas coisas. O vizinho entrava na sua casa e você na dele e ninguém estava onde devia, não podia dar certo essa coisa, não é?
Não deu mesmo. As coisas foram ficando cada vez mais feias. E cada vez tinha mais gente no seu quintal, e mais sol na sua cabeça. Então não teve jeito, tinha que dar um basta nessa gente rude.

(Utopia)

Acabei mudando pra Marte.
Isso sim que é vida boa.
Aqui tem pouca gente, e dá até para plantar e cuidar do almoço. Tem umas coisas diferentes que a gente precisa aprender a lidar ainda, mas não há problema. O negócio é seguir sempre em frente, colher o que planta e regar a vida. Isto aqui é o paraíso, sabe?

(Distopia)

Só tem um problema, aquele vizinho ali: a Terra. Vai por mim, gente muito rude aquela. Qualquer dia desses vou ter que dar um jeito neles. Ô se vou...


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Arca Literária - Danny Marks


Conhece o Arca Literária? Não? Então siga o link http://www.arcaliteraria.com.br e venha conhecer um ótimo site sobre literatura. Agora também tenho uma coluna por lá, junto com um monte de gente boa. Vai perder essa? Nos vemos no Arca Literária!

Uma Dose de Veneno e Dois Cubos de Gelo - Danny Marks


           A grande questão não é que santo de casa não faz milagres, mas o fato de que as vezes precisamos de outra coisa para solucionar as coisas que nem reza brava consegue dar jeito.
          É por esse motivo que tenho percorrido o mundo em busca de grandes gurus, pessoas iluminadas, e outras afins, na tentativa de alcançar um estado nirvânico, sem controle governamental ou coisas do tipo.
          Não é que não goste de governo, que todos sabem ser um mal necessário para que se possa ter alguém para culpar por todas as coisas erradas, feitas ou não por ele. Na verdade, não gosto de ficar mandando. Fico esperando que o bom senso prevaleça, que os acordos sejam cumpridos, que a inteligência dite as regras e, acima de tudo, que me deixem em paz para que possa cuidar do meu próprio caos interior.
          Os opostos se complementam, é a regra inflexível da existência que descobri há tempos, e culmina por me brindar com amigos caríssimos que me ajudam a ver as coisas de outra forma, e até a adquirir uma certa sabedoria alternativa aos milagres nunca alcançados.
          Uma dessas pessoas que me trazem a alegria de viver com sua simples presença, é a Juíza. Pessoa equilibradíssima, sempre generosa e de uma paz que faria inveja a muito santo de pau oco que se arroga milagroso nos tempos de hoje. Não por outro motivo que me apraz por demais ter longos diálogos com essa pessoa e, quando as complexidades das agendas permitem, sentamo-nos no mesmo restaurante para degustar a companhia e trocar experiências.
          Foi em um dia desses que a percebi triste, incomodada com algo, o que obviamente me perturbou mais ainda. Não poderia deixar que meu melhor exemplo de eixo do mundo se desestabilizasse sem, ao menos, tentar descobrir qual a tragédia que poderia acometer a humanidade, além de todas as outras.
          — Não é nada, bobagem. Apenas a minha empregada que pediu demissão e pediu para enviar pelo correio o acerto das contas.
          Eu, que já conhecia de outros carnavais as duas jararacas velhas que serviam de empregadas para a Juíza, estendi o assunto apenas por curiosidade. O que poderia ter acontecido de tão grave que a levara a demitir a peçonhenta criatura? E nem sabia qual das duas seria, pois embora de espécies diferentes, equivaliam em periculosidade ofídica.
          — Nossa, que coisa chata. O que houve? Pegaram dinheiro da sua carteira novamente? Tentaram afogar o cachorro na piscina? Botaram fogo na arvore de natal? — Arrisquei algumas opções que já haviam ocorrido anteriormente, sem que a Juíza tivesse perdido a sua postura equilibrada e generosa. Não conseguia conceber algo tão grave que pudesse provocar a demissão das colaboradoras centenárias.
          — Brigaram uma com a outra. E a Anaconde me ligou dizendo que não vai mais trabalhar lá. Imagina, depois de vinte e dois anos morando com a gente, pediu demissão por telefone e ainda quer o acerto pelo correio. Como se fosse possível isso. A Demoniana, claro, deve estar exultante. Há tempos que não se dão bem e sempre ficam fazendo intriga uma com a outra.
          — Sim, eu sei. Ainda acha que foi a Demoniana que sumiu com o dinheiro para jogar a culpa na outra?
          — Ah, vai ver que alguma delas estava precisando. Deixei para lá. Poderiam ter pedido, mas não vou ficar acusando ninguém, ainda mais que uma delas é inocente, coitada.
          — Sei, inocente. Como no caso do cachorro que caiu na piscina porque deixaram a porta aberta.
          — Anaconde já tinha dito que não gosta de cachorro, nem olha para ele. Vai ver que esqueceu de fechar a porta e como ele ainda é criança, escapou. Ainda bem que o seu Armando estava por perto. Por falar nisso, nem sei o que o seu Armando estava fazendo por ali, ele deveria ficar na portaria do condomínio. Enfim, não aconteceu nada. Mas as duas ficam jogando a culpa uma na outra, querendo que eu demita essa ou aquela. Não posso fazer isso, elas já estão comigo há anos, me ajudam a fazer as coisas. Não posso deixar alguém que não conheço entrar na minha casa.
          Acenei com a cabeça concordando abismado. Como desejava ter essa alma clonada de Gandhi. E essas nem eram as mais graves ofensas que aquelas duas “colaboradoras” já tinham feito. Eu apenas não queria deixar a minha amiga chateada com a minha postura que, comparativamente, seria crudelíssima.
          Me sentia arrasado por não conseguir alcançar essa tranquilidade de conviver com a adversidade e ainda ter uma paz iluminada e a tranquilidade equilibrada que a minha amiga Juíza tinha, quando percebi que o garçom se aproximou para receber o pedido. Ela olhou diretamente para ele com aquele olhar santificador e disse suavemente.
          — Você pode me trazer uma dose de veneno e dois cubos de gelo?
          Demorei algum tempo para processar o pedido, jamais teria conseguido ser garçom na vida, que apenas terminou de escrever e perguntou:
          — A senhora deseja que embale para viagem?
          Isso foi o fim. Parei de procurar pelo mundo a fonte da filosofia transcendental, ela estava o tempo todo bem aqui ao lado, ao alcance da mão. Bastava-me apenas erguer a venda que me tapava os olhos para ver. Quem precisa de juízo quando se conhece a Juíza? Que os deuses abençoem.

domingo, 11 de setembro de 2016

Dez Graças à Tragédia - Danny Marks


          Antes de iniciar, é preciso advertir.
          Se está vivendo uma tragédia pessoal, procure alguém que possa lhe ajudar de forma profissional ou, no mínimo, vá ler coisas que pintem o mundo de cor-de-rosa ou outra cor suave que gostar, não encontrará isso aqui.
          Se acredita que a verdade precisa ser empunhada como uma espada que vai golpear por todos os lados as mentiras que encontrar, sem se preocupar com os danos causados, não perca o seu tempo buscando a moralidade por aqui. Ela não aparecerá em momento algum, pode acreditar, é a verdade.
          Feitas as advertências necessárias, podemos prosseguir tranquilos com a nossa argumentação que demonstrará, sem deixar dúvidas, o quanto a Tragédia tem feito, e faz, pela humanidade. Sendo por esse motivo que podemos afirmar, sem qualquer constrangimento, que todos amam a tragédia alheia.
          Provavelmente não foram os Gregos que inventaram a Tragédia, ela já existia muito antes disso, mas não se pode contestar que foram estes que mais contribuíram para a sua visibilidade e sucesso. Quando vemos as ruinas do Partenon; quando lemos os clássicos gregos e suas contribuições na literatura moderna; quando pensamos nos filósofos que debulharam as certezas da vida e desconstruíram mundo; como não recordar das tragédias?
          Vejam as Olimpíadas, inspiradas nas histórias trágicas dos heróis gregos da mitologia, e que até hoje ressoam pelos quatro cantos do mundo. Quantos lembram dos recordes batidos? Quantos comentam sobre os feitos sobre-humanos? Mas, pergunte sobre o mais recente escândalo envolvendo atletas, ou sobre aquela derrapada quando a vitória estava quase garantida. Qual ganha mais importância nas mentes e nos corações? A tragédia, é claro.
          A tragédia inspirou Shakespeare, que inspirou tantos outros depois dele. Quantas carreiras de sucesso ganharam maior impulso depois de uma derrocada fenomenal? De empresários que faliram a bandas que se desfizeram. Quando pensam em Beatles, lembram mais do encontro com a Rainha ou a separação e o posterior assassinato de Lennon? E o Nirvana? Tudo bem, ainda temos o secular Rolling Stones, mas pode ver, estão todos apenas torcendo para ver qual música vai tocar quando cair o pano.
          As tragédias inspiram o melhor dos sentimentos, todos estão dispostos a se solidarizar com a tragédia alheia, quando ela é longe o suficiente para não os afetar. Ou então rir descontroladamente, quando é próxima o suficiente para ser presenciada e não tão grave que precise de uma intervenção imediata.
          Sim, tragédia boa é aquela que não está nem perto, nem longe, demais. Ninguém gosta de uma tragédia muito próxima, invadindo o espaço particular, exigindo providências. É preciso que ela fique em outro lugar, onde se possa ir até lá, quando se está disposto a se envolver, mas de onde possamos fugir, caso ela comece a nos alcançar.
          Só quando a história é trágica e está além da margem de segurança é que ela nos encanta, nos enternece. Deixa espaço para que possamos verificar a nossa preservação e demonstrar a generosidade. Desejamos por algum tempo o sucesso alheio, para poder usufruir junto, mas acima de tudo, desejamos que os bem-sucedidos abram espaço para que possamos ocupa-lo. E como são poucas as chances de sucesso, sempre podemos comemorar quando alguns fazem o favor de, depois de terem indicado o caminho, se afastarem dele.
          Enganam-se os que dizem que não há pessoas dispostas a se colocar no lugar do outro. A verdade é que há muito mais dessas pessoas do que se possa imaginar, só que a grande maioria pretende tirar o outro de lá antes de lhe ocupar o lugar, desde que seja um bom lugar para ficar por algum tempo, até surgir o próximo. Ah, como não amar o próximo?
          Tragédias criam carreiras promissoras, que o digam os psicólogos, advogados, humoristas, artistas, pintores, escritores, médicos, bombeiros, empreendedores, e por aí vai. Nem vou falar dos ilícitos, que a política aqui é outra.   Criamos a nossa sociedade na certeza que alguma tragédia a fará evoluir, ou será tragicamente exterminada e substituída por outra mais trágica ainda. Não há como negar, a tragédia está em nosso dia a dia, nos dando motivos para conversas, para não sermos alvos dela, para demonstrar que ainda podemos fazer mais no pior, basta haver a chance.

          Poderia discorrer infinitamente sobre as oportunidades que as tragédias criam, como aquelas inumeráveis palestras que não levam a lugar algum, mas não será necessário depois de um argumento incontestável. Foi uma trágica explosão que criou tudo no universo, que desde então caminha sempre para a entropia total, onde nada mais poderá existir, nem mesmo a tragédia de recomeçar tudo de novo.

sábado, 10 de setembro de 2016

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A Décima Volta do Parafuso - Danny Marks


           Existe ainda hoje uma milenar sociedade secreta de místicos que busca incansavelmente descobrir os segredos do universo na linguagem que, julgam, seja a única que o universo utiliza para construir e, portanto, revelar seus padrões implacáveis: a matemática.
          Segundo uma análise dessa filosofia com a qual tive contato há tempos, o padrão é uma forma de tautologia, é voltar a dizer o que já foi dito anteriormente com outras palavras; ou no caso do universo, fazer tudo novamente de forma cíclica, eternamente voltando ao começo. Descobrir os padrões sobrepostos seria poder controlar os padrões e as sobreposições, criando o novo padrão.
          Um outro mago e escritor já foi duramente criticado por usar uma tautologia ao afirmar que nascera “há 10.000 anos atrás”. Não por ter feito uma afirmação controversa acerca da sua idade, mas por ter feito uma tautologia. Se é “há 10.000 anos”, não tem como não ser “atrás” já que o verbo utilizado nessa forma indica semanticamente o tempo passado, não o futuro.
          O mesmo poderia ser dito de “voltar atrás”, uma redundância de termos que dizem a mesma coisa, se volta, tem que ser atrás, não há como voltar para à frente, já que voltar significa implicitamente que se estava alinhado com um sentido que será revertido. Mas e se atrás for utilizado no sentido de buscar?
          Ou seja, voltou para buscar algo que havia esquecido, e esqueceu de o dizer. Então voltar atrás (de algo) não seria uma tautologia, mas uma filosofia de retomar o que deveria estar presente.
          O padrão seria justamente uma volta atrás que avança em algum sentido resgatando algo que já havia. E nesse ponto a minha cabeça começa a dar voltas também, como um parafuso que fica solto pelo aperto excessivo, cheio de voltas a serem dadas, mas que não avançam sobre nada. “Procrastinação” gritam os enfurecidos usuários de tortuosos pensamentos, que ignoro para prosseguir em frente, rindo descaradamente só para complicar ainda mais os paradoxos léxicos.
          Seria a linguagem do universo um parafuso que retorna ao mesmo ponto para avançar em algum sentido desconhecido? O futuro repetindo o passado com apenas uma ligeira espiral a indicar um avanço que não passa de uma ilusão de presente?
          Quantas justificativas poderiam ser dadas, nesse caso, revelando o motivo de, ao avançarmos tanto, não tenhamos saído verdadeiramente do mesmo ponto, apenas aparentando um progresso ilusório, onde as questões que sempre nos moveram, permanecem as mesmas.
          Avançamos no combate ao preconceito, e permanecemos preconceituosos de outras formas semelhantes. Avançamos nas tentativas de paz e até criamos uma guerra, para promove-la. Elegemos velhos políticos para substituir os atuais e esperamos que as coisas mudem. Resgatamos velhas ideologias que não funcionaram (ou não estaríamos com problemas agora) na esperança de que resolvam (desta vez) os mesmos problemas. Estudamos novas tecnologias que nos libertarão do trabalho e nos devolverão a vida que merecemos e trabalhamos mais para obtê-las ao preço de nosso tempo de vida.
          Tudo parece dar voltas e permanecer praticamente igual. A espiral que deveria nos levar acima, nos afunda e nos prende cada vez mais fundo. Então para prever o futuro bastaria olhar para o passado e dar-lhe roupas novas e coloridos que antes não haviam, mas que não alteram os conteúdos que apresentam. A história se tornaria o objeto de estudo das cartomantes.
          Retornar ao mesmo, parece ser a constante universal humana. Desde a retórica inventada pela filosofia dos gregos para desvelar a verdade oculta, até a reinicialização da matrix que recicla toda a realidade ilusória em que estamos, na verdade, presos irremediavelmente. Ou será que apenas tentamos descobrir novas soluções partindo dos mesmos elementos?
          Onde estaria a criatividade se tudo fosse o mesmo? A criação seria apenas uma releitura de tudo o que já existe de alguma forma, e nada de novo surgiria nesse paraíso onde a serpente esperaria pacientemente com uma maçã.
          Por certo essa questão é o que nos move desde tempos imemoriais, e provavelmente a solução será simples e óbvia, assim que a descobrirmos. Provavelmente estaremos repetindo o passado por simples medo de tentar algo completamente novo e desconhecido que possa nos destruir, e avançamos seguros para uma destruição conhecida e repetida à exaustão.
          Para que arriscar ficar pior? Tolos são os místicos que buscam descobrir nas linguagens matemáticas os segredos milenares, ou os cientistas que fazem uso dos mesmos instrumentos lógicos para tentar decifrar a mesma coisa, mas de uma forma diferente, com resultados praticamente iguais. Tautologia é o padrão que parece reger o universo pelo prisma da mente humana.
          Ou então, temos que nos reinventar de uma forma completamente nova, abrindo espaço para a incerteza de não saber hoje mais do que sabíamos ontem e nos deslumbrarmos com algo completamente inédito, que será imediatamente copiado e reproduzido a exaustão por todos os lados até acrescentar mais uma volta a espiral desse parafuso que parece infinito, e do qual ainda só atingimos, talvez, a décima volta, seja lá em que sentido estiver sendo pressionado.
          Ao menos teremos a certeza de que a vida é o que sempre foi, e se renova a todo momento, tentando, desta vez, fazer a coisa certa.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Não acredito em Bruxas - Danny Marks


          Essa coisa de adivinhação é tudo uma tremenda bobagem. Uma milenar forma de enganar os bobos que não conseguem conviver com os seus medos e os transformam em superstição, de forma que se cria uma cultura ritualística em cima dos medos e, na devida proporção, consegue-se até exorcizar o terror individual tornando-o um terror coletivo chamado de religião.
          Se as pitonisas e cartomantes soubessem do futuro, teriam previsto a inquisição que levou as bruxas à fogueira e teriam se mantido quietas em seus cantos obscuros, adivinhando apenas os melhores caminhos da fortuna.
          Nem é preciso apontar o óbvio, que não se conhece uma sequer dessas sacerdotisas de Apolo que tenha enriquecido com os seus dons sobrenaturais. Desafiaria a qualquer um apontar quem seja a exceção a essa regra, apesar de haver Cassandras a predizer os infortúnios há milênios, antes que qualquer outro mundo tenha se consolidado nos altares, estes sim, cravejados e dourados.
          Apesar de minha ferrenha convicção, justificada como lhes apresentei por fatos incontestáveis da lógica, tenho que confessar que a curiosidade é um mal que nos faz ignorar até mesmo os medos mais pitorescos e nos atira em armadilhas das quais nos desviaríamos facilmente, se não fosse a dúvida lançada como uma isca ao nosso mais íntimo ser.
          Junte a isso a rotina constante de passar em frente ao covil da bruxa, com sua chamativa placa desgastada pelo próprio tempo que alega prever, e se tem a certeza de que a arapuca será eficaz no seu trabalho de capturar mais um desavisado e honesto cidadão, ao troco de só o libertar por malfadados cinquenta reais.
          É um absurdo que alguém pague essa importância para ser enganado, diz a consciência ao passar pela porta aberta, a caminho de gastar quatro ou cinco vezes mais essa importância em um almoço de qualidade duvidosa.
          Ao menos é mais barato que aqueles psicólogos que cobram três vezes mais por período, diz-lhe na segunda ou terceira vez que nota ainda aberta a tal porta.
          Está mais barato que um livro de renome, e ao menos é uma ficção da qual se participa inteiramente, reflete na sétima ou oitava olhada para o cartaz que insiste em manter-se surrado e sujo.
          Gasto mais com uma pizza no final de semana e talvez não a aproveite tanto quanto o que se pode conseguir por aqui. Justifica-se a consciência ao, finalmente, entrar pela porta e dar de cara com a mal iluminada escadaria que conduz para uma névoa que fede a algum tipo de incenso barato.
          No fim desse corredor ascendente, dá-se de cara com uma cortina de miçangas que produzem barulho de ossos minúsculos a chocar-se, ou pelo menos deve ser esse o som que ossos minúsculos produzem. E lá em algum canto está a mesa com uma toalha branca, uma vela que será acesa durante a sessão e uma daquelas bolas equipadas com uma bobina de Tesla que fica emitindo raios para a superfície interna.
          A Madame Shanta, cuja purificação deve ter retirado qualquer traço hindu do seu DNA, aparece com roupas folgadas e brilhantes, que refletem os efeitos luminosos do ambiente obscuro, e estende uma mão para indicar onde sentar e outra para receber o pagamento, adiantado, que o futuro se paga agora, não amanhã.
          Perguntas podem ser feitas a qualquer momento, enquanto os raios mágicos estiverem funcionando e transmitindo suas mensagens diretamente às mãos videntes que tocam a esfera do tempo. Como fica a situação financeira? Não se preocupe. O amor, continuará firme ou se perderá na convivência ou em trágica traição? Não se preocupe. E a saúde? O que dizer da saúde? Não se preocupe. Como não me preocupar se desconheço o futuro? Ah, o futuro, isso pode ser revelado, mas custa um pouco mais caro. Apenas vinte reais a mais.
          Ora, quem já chegou até o alto, como voltar sem saber do futuro, não é mesmo? Ir até a fonte e voltar com sede. Tome lá os vinte e dê-me a visão do futuro onde não me preocuparei com saúde, dinheiro ou amor.
          Vejo um avião. Opa, uma viagem? Para qual lugar? Não, um avião em queda, muitos mortos. Meu DEUS, vou morrer em um desastre de avião? Não, vejo uma chave de fenda. Uma chave de fenda? Vou ser morto por uma chave de fenda? Não, uma luz brilhante, muito forte, está me cegando. Vejo uma luz muito forte no seu futuro. Não posso falar mais.
          Claro que saio decepcionado com o futuro que se revelou, afinal de contas, brilhante. Mas não deu indicativo de como se daria. Por dias as peças não se juntam. Até que, estando a ver o noticiário na televisão, aparece o tal avião que caiu em algum lugar que não sei dizer, porque a imagem não estava boa. Saco logo uma chave de fenda para arrumar a conexão que está frouxa e restabelecer o sinal e ao tocar por engano o fio errado...ZAAAZZZZZZ
          — E o senhor morreu?!!
          Calma, pessoal, não se assustem. Claro que não morri, ou não poderia estar aqui falando com vocês. A própria Madame Shanta já havia dito que não me aconteceria nada. Só a luz brilhante que me cegou por vários dias e me levou a UTI onde fiquei por um fio, mas voltei.
          — OOOOHHHH... OOOHHH

          Voltei e posso lhes afirmar, tudo o que a Madame Shanta falou, se realizou na minha vida. E é por isso que estou aqui, sem ganhar nada, para organizar a fila dos atendimentos. Por favor, um atrás do outro e podem pagar diretamente comigo. Por tempo limitado estamos aceitando também débito em conta, mas não cartão de crédito que o futuro se paga agora. Por apenas cem reais vão poder ter uma grande mudança no seu entendimento sobre a vida. Aqui está, senhor, basta subir a escada que vão conduzi-lo. O próximo!

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Anteontem - Danny Marks




Anteontem morri, e ninguém ficou sabendo.
          Não fiz alarde algum nas redes sociais, nenhuma nota de falecimento previamente escrita, nem tarja preta, como nos remédios que sempre me causaram espanto. De quem será o luto que tais remédios carregam? Da mente ou da alma?
          Morri assim, silenciosamente, por achar que fiz por merecer mais que apenas um minuto de silêncio. Tantas coisas que calei e muitas mais que falei ao longo desse tempo. Algumas até foram ouvidas e causaram diferença na vida de outros que tenha encontrado por acaso ou sorte, e que se esvaíram no tempo.
          Morrer tem um sentido libertador, liberta a dor que insistimos em manter presa dentro de nós. Não mais sentir a angústia que seca nos olhos, por coisas que continuam a existir, apesar de nós.
          Aquele filme que tanto desejava ver, perde a cor. Aquela viagem que necessitava fugir, por outro será feita. Aquele livro interminável que alavancaria a carreira com suas exigências cada vez maiores, jamais será escrito novamente.
          Pode ser que ocorra um inesperado sucesso, ao descobrirem que o autor daquele romance que centenas disseram ter amado, embora a editora tenha faturado apenas dois exemplares, ganhe ares de um clássico e adquira um público que confessará, compungido, que conhecia o iluminado que o produziu.
          Pode até ser que gostem da obra fictícia, simulando a vida, que se apresenta nas redes sociais, como a pegar os peixes que nadam nesse mar de diversidades e semelhanças. Então, recordarão de postagens e palavras, reclamarão ensinamentos que possam ter ocorrido e se sentirão tocados pela santidade do além que a todos torna santos.
          Morrer no auge da saúde, que doença não manda aviso e quando chega não dá espaço para mais nada, reclamando a necessidade absoluta de decifrar o enigma da vida sob pena de devorar os que não o conseguirem.
          Nada é tão libertador quanto morrer, nem mesmo a descoberta daquele planeta que, se tornados luz, poderíamos alcançar em apenas quatro anos e viver outra vida, talvez. Quem sabe até refazer todos os erros na esperança que desta vez ocorresse algo inusitado.
          Não mandarão flores, não regarão os jardins, não lembrarão das gafes homéricas e das piadas engraçadas que só foram descobertas passado o momento de rir, mas vão rir mesmo assim, por educação.
          Enfim morto posso ler os livros acumulados de poeira, e se não gostar dos primeiros capítulos, descarta-los sem remorso. Não serão cobrados conhecimentos ou palavras gentis para obras horrendas. Não serão dados elogios merecidos também, basta-lhes apenas terem sido adquiridos.
          Números poderão ser abandonados displicentemente, datas, saldos bancários, quantidade de amigos, coisas relevantes que se superaram ou não. Apenas quantos por de sol e amanhecer que foram vistos. A Lua, assim maiúscula, naquela foto que não será enviada e permanecerá egoisticamente guardada na memória sem desbotar.
          Não causará tristeza as imagens de crianças violentadas pela burrice humana, ou as tentativas torpes de justificar cada erro e punir cada acerto, de acordo com as interpretações e vivências que os interesses delinearam em cada caráter, como tatuagem da vida, feita de cicatrizes imperceptíveis a olho ou à nu.
           Pode-se morrer todos os dias, na busca de descobrir o que realmente é importante na vida, ou permanecer morto por algum tempo, usufruindo da plácida tranquilidade que só se alcança com a percepção da finitude.
          Até que a vida nos puxe de volta ao seu redemoinho trágico, e nos cobre alegrias e atitudes que devemos inventar constantemente para satisfazer de alegria aqueles que nos querem felizes e produtivos. Que nos querem por perto, mas não tão junto que tenham que nos carregar consigo.
          Anteontem morri por breve período, apenas um ensaio a mais para o grande cair do pano que um dia virá, o retorno ao camarim para tirar a fantasia e limpar a máscara pintada no rosto e, quem sabe, no cantinho obscuro iluminado em frente ao espelho, ouvir os aplausos do público, ou vaias que possam ocorrer, mas que não alcançarão mais que a música que deixamos de ouvir.

          E, só então, pensarei em retornar.

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...