(Publicado no E-book Natal Fantástico da Ed Infinitum - Organização Ademir Pascale e Gian Danton.
O mensageiro aproximou-se
do homem que bebia a cerveja distraidamente e puxou-lhe a manga da camisa estendendo
o cartão. O homem nem olhou, fez que não com a cabeça, a mão aberta recusando
qualquer coisa.
O outro repetiu o
movimento insistentemente, pouco ultrapassava o ombro do homem sentado que
finalmente pegou o cartão sem ver quem o entregava e leu contrariado “Nelson, precisamos
conversar. Nicolau”. O Homem virou-se
para perguntar ao mensageiro o que era aquilo, mas este havia desaparecido.
Nelson rasgou o
bilhete, pagou a conta e saiu do bar. Pouco depois esperava o semáforo liberar
a travessia quando sentiu puxarem sua camisa novamente, outro cartão lhe era
oferecido pelo mensageiro.
“Nelson, precisa me ajudar. Nicolau”.
— Mas que... —
parou ao ver que o mensageiro havia desaparecido novamente. Alguém daquele
tamanho poderia se misturar facilmente na multidão, mas não com aquelas roupas.
Nelson riu consigo mesmo, alguém deveria estar querendo lhe pregar uma peça.
— Alguém deveria
atender meus pedidos, para variar. — resmungou para si mesmo.
Odiava essa época
do ano, deixava-o de mau humor.
Jogou o papel na
lixeira mais próxima. Não conhecia nenhum Nicolau.
Ouviu um
resfolegar ao seu lado e assustou-se. Um
maluco havia resolvido se fantasiar de Papai Noel e sair com um trenó puxado a
renas em plena cidade. Dois anões abriram as portas do trenó e colocaram uma
escada enquanto o velho gordo sorria-lhe por entre a longa barba branca.
— Nelson, entre,
não temos muito tempo.
Atordoado não
pensou no que fazia, simplesmente sentou-se ao lado do velho gordo, seguido
pelos anões. As pessoas pareciam não dar importância ao espalhafatoso veículo,
mas o que mais o assustou foi quando alçaram voo, liberando o transito.
Pouco depois, não
sabia como, estava pousando em frente a uma modesta casinha encravada no alto
de uma encosta rodeada de arvores. Anões brotaram de vários lugares e cuidaram
do trenó e das renas.
Nelson não sentia
frio, embora usasse uma roupa leve.
Comeu dos biscoitos que lhe eram oferecidos por uma idosa senhora e
sentou-se em uma das cadeiras de encosto alto que cercavam a mesa de madeira. Sentia-se completamente à vontade no que,
parecia-lhe, ser um sonho.
— Noel, por que
demorou tantos anos para aparecer? — Não havia mal algum em ser grosseiro em um
sonho alcoólico qualquer.
— É uma longa
história, Nelson, mas vou ajuda-lo a realizar seu desejo, se você me ajudar com
o meu.
A senhora e os
duendes que fingiam se ocupar com outras coisas simplesmente pararam como
atingidos por um sopro enregelante, mas logo continuaram a fazer o que pareciam
estar fazendo.
— Isso é ridículo.
— riu Nelson, mas ao ver o rosto dos que o cercavam mudou de ideia — Estou
morto e isso é a punição pelos meus pecados contra o Natal?
— Não é nada
disso, meu filho. Preciso de sua ajuda
porque não há nada que eu possa fazer para mudar as coisas, mas acredito que a
solução possa estar em suas mãos.
— Está de
brincadeira? Gente, o Noel resolveu ME pedir ajuda? Escuta velho, não sei o que está
acontecendo com minha cabeça, mas é bom que saiba; se pudesse, acabava com o
Natal. Entende? Ainda quer minha ajuda?
— Realmente, e se
me ajudar posso lhe dar esse poder.
— Se pode fazer
algo assim, para quê precisa de mim? Faça-o você mesmo.
— Não entende, só
posso atender ou negar pedidos. É complicado. Nelson, ajude-me, por favor.
Nicolau deixou sua
cabeça pender sobre a longa barba que encobria a parte superior da barriga. A
senhora e os duendes vieram juntar-se a ele para fechar a cena trágica.
Nelson há muito
não se comovia com o Natal, as cenas ensaiadas e levadas a termo pela imensidão
de farsantes no mundo todo. Pensava que seu inconsciente lhe dava
justificativas para seu desejo de acabar com a farsa.
— Quer saber, não
sei para quê precisa de minha ajuda, mas o que deveria fazer era contar a
verdade para todos. Ora que se dane, eu ajudo você e depois acabamos com o
Natal.
Nicolau levantou o
olhar brilhante para Nelson, havia um largo sorriso no seu rosto.
— Eu sabia que
você seria a solução...
(...)
Nelson não era o
mesmo homem de dias atrás quando aceitara o seu encargo, mas, a menos que
revelasse, ninguém notaria diferença. A
apresentadora estava aterrorizada embaixo da sua bem construída máscara social.
Não era para menos.
Há apenas alguns
dias ninguém sabia quem era aquele homem, até que começara a falar publicamente
sobre a farsa que envolvia o Natal.
Convencera
tabloides locais a darem voz ao seu discurso. A Verdade abria portas que muitos
preferiam manter fechadas; por outro lado, sempre haveria os que queriam dar
vazão ao seu ressentimento, sua frustração, e o discurso de Nelson servia-lhes
bem.
A notícia se tornara viral na internet
chamando atenção até nos lugares mais remotos do mundo. Em vários idiomas, ele
discursara de forma contundente provocando reações diversas. Médicos tentaram
diagnosticar algum distúrbio psicológico que pudesse apresentar; não
conseguiram. Governos tentaram bloquear
os seus vídeos; só aumentaram o interesse. Empresas tentaram se apropriar de seus
discursos para lucrar mais; sofreram protestos do publico. Grupos extremistas
tentaram alicia-lo; tiveram suas ideologias desmascaradas.
A Verdade derrubava a todos impiedosamente.
Qualquer um que
tentasse aproveitar-se da situação via-se imediatamente compelido a falar a
verdade sem restrição. Segredos íntimos, comprometedores, firmemente guardados,
eram revelados pelos seus guardiões tão logo tentavam usar as palavras de Nelson em interesse próprio. A verdade rompia as barreiras e não parava mais.
Casamentos foram
perdidos, sociedades e pactos foram desfeitos, empresas faliram e carreiras
foram destruídas, assassinos se entregaram às autoridades de quem se escondiam, governos caíram.
Em qualquer lugar quem se posicionasse
contra o Mensageiro sucumbia diante dos próprios pecados auto revelados.
Em alguns dias Nelson
deixara o anonimato para se tornar a pessoa mais temida e menos comentada do
mundo. Ninguém se atrevia a contradizê-lo, ou apoia-lo.
Nelson suportava o
peso das verdades inconfessáveis sobre ombros magros. Quase não dormira ou se
alimentara naqueles últimos dias, que pareciam séculos para ele. Cada vez
falava menos, e menos lhe perguntavam.
Faltava apenas
dois dias para a véspera de Natal e ele convocou uma coletiva de imprensa. Um imenso anfiteatro foi equipado com os mais
sofisticados equipamentos de transmissão, ocupado plenamente por repórteres de
todos os lugares do mundo.
Independente de ideologias políticas e
religiosas, as pessoas aguardavam as palavras do “Homem que queria destruir o
Natal”, como já o chamavam.
Sentado em uma
confortável poltrona diante da repórter que escolhera para fazer a sua ultima
entrevista, reproduzido no imenso telão para que todos pudessem ver cada mínimo
detalhe de sua postura, Nelson exibia a mesma roupa simples que dias atrás
usara, quando sua vida mudara para sempre.
Depois das
desnecessárias apresentações a repórter deu início à entrevista com perguntas
feitas e selecionadas pelos repórteres presentes.
— A pergunta que mais
se repete é “por que o senhor quer destruir o Natal?”.
— O Natal não
existe mais, o que peço é que a farsa acabe. Assumam que estão interessados em
ganhar dinheiro vendendo coisas inúteis por preços exorbitantes. Necessitam de
uma boa desculpa para se drogarem, beberem e comerem além de qualquer limite? Podem
fazê-lo, mas não tornem isso um exemplo a ser seguido. Nunca foi preciso um dia
específico para perdoar os que lhe ofenderam, amar os que se distanciaram,
desejar o melhor para os que estão próximos. O que estão ensinando às suas
crianças? Quais valores desejam que elas tenham quando forem cuidar de vocês?
— Mas o senhor é
contra que haja um dia em que as pessoas tenham esperança de um futuro melhor?
— Alguma vez se
perguntou por que a Esperança estava na Caixa de Pandora junto com os maiores
males da humanidade? O futuro é feito hoje, nas relações que se constroem. A
superficialidade torna raso o futuro que estão construindo para vocês mesmos.
— Então o senhor
acredita que não há verdadeiramente o espírito de natal?
— Pelo contrário,
sei que há e muitos ainda o vivenciam. Mas a cada dia se rendem a restringir
essa vivencia a um único dia, como se houvessem perdido a batalha de salvar a
humanidade, mas nunca lhes foi pedido fazer mais que dar o melhor de si e
receber o que lhes era ofertado, com alegria. Presentear não é trocar valores, é
doar dádivas, e isso deve ser feito diariamente.
— Não compreendo. O
senhor diz que devemos todos parar de comemorar o natal, mas ao mesmo tempo diz que seria melhor se as pessoas vivenciassem o natal durante o ano todo? Não
é contraditório?
— Contraditório é promover
guerras em nome da Paz, promover a intolerância religiosa em nome de Deus,
promover a discriminação em nome da aceitação das diferenças. Contraditório é
ignorar uma pessoa durante o ano inteiro e no dia do seu aniversário, fazer uma
grandiosa festa. Contraditório é dizer que o espírito de natal só vive por um
dia e nada mais. Querem comemorar? Então o façam pelos motivos certos. O Espírito
de Natal não se importa de morrer pelo que acredita, mas não o usem como desculpa
para seus interesses pessoais. Querem um bom presente de Natal? Ofereçam a
verdade dos seus sentimentos, o valor dos seus atos, embrulhados nos laços do
seu relacionamento. Ou simplesmente deixem essa bobagem de lado.
— O senhor pode
nos dizer por que só agora decidiu apresentar para o mundo suas ideias sobre o
natal e como ele deveria ser conduzido?
O que pretende conseguir com tudo isso? Mudar a humanidade?
Nelson ficou
parado, mudo diante dos repórteres. Enquanto
todos aguardavam sua resposta ele desvaneceu-se lentamente até desaparecer para
nunca mais ser visto.
(...)
— Estava errado.
Achei que poderia fazer a diferença, deixei que minha revolta me guiasse e
acabei me defrontando com a minha verdade. Como fui tolo.
Nicolau deixou que
Nelson desabafasse antes de lhe passar uma xícara de chocolate quente e servir-se
de outra. Estavam sentados de frente para a janela, olhando os flocos de neve
caindo suavemente.
— Não se sinta
assim, Nelson. Já reparou que não existem dois flocos de neve iguais, embora
todos provenham da mesma fonte? Estou satisfeito com o seu trabalho. Obrigado.
— Queria que as
coisas tivessem mudado. Não podia suportar o que estão fazendo com o Natal. Uma
única pessoa não vai mudar tudo, não é?
Nicolau sorriu,
havia retomado ao seu antigo vigor nos últimos dias e naquela casa todos
creditavam o fato a Nelson, eram-lhe gratos por isso.
— Não, meu querido
amigo, as coisas não são tão simples assim. Mas uma pessoa pode fazer toda a
diferença quando aponta um caminho a seguir. Você fez com que as pessoas
parassem para refletir, ouvissem os seus corações e se confrontassem com a
verdade que há neles. Isso terá que servir por enquanto. Dê-lhes tempo,
acredite neles.
— Eles não
acreditam em você.
— Mas eu sempre
vou continuar acreditando neles, e em você, Nelson.
— Nunca mais vou
poder voltar a minha vida anterior.
— É verdade. Quando
se entra em contato com o verdadeiro Espírito do Natal, ele nunca mais nos
abandona. Sua vida anterior pertencia a outra pessoa que não é mais você, mas
posso dar um jeito nas coisas. O que deseja de presente de Natal? Peça qualquer
coisa.
— Bem, estive
pensando por todo esses dias...
— Diga, meu filho,
o que mais deseja?
— Você tem lugar
para mais um ajudante na sua fábrica?
Nicolau riu alto,
como há muito tempo não fazia, e sua alegria contagiou aos que vivem todos os
dias o Espírito de Natal.
E isso era tudo o
que precisava ser feito.
2 comentários:
Belo texto lindas ideias e verdades um grande abraço Pedro Pugliese
Pedro, meu Amigo,
sempre um abraço as suas participações, obrigado.
Que os seus dias sejam iluminados pelo Espírito de Natal
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