Ainda na infância ouvi uma história sobre um padre
que, preocupado com a sua comunidade, solicitou aos fiéis que assistiam à missa
lessem o capitulo dezessete do evangelho de São Marcos para que estivessem
preparados para o sermão do outro domingo.
Na data marcada, antes de iniciar o sermão, o
padre pediu para aqueles que não tivessem lido o capitulo dezessete de São
Marcos se retirassem da igreja pois a estes não interessaria o sermão do dia.
Como ninguém saiu ele disse:
— Ótimo! O sermão de hoje vai ser sobre a mentira.
O Evangelho de São Marcos só tem dezesseis capítulos.
Esta história acompanhou-me por longos anos, e
sempre achei interessante o fato do personagem ter usado um subterfúgio de
retórica. Ao mentir o padre automaticamente se colocou como um dos necessitados
em ouvir o sermão sobre a mentira, e como todos os outros mentiram que haviam
lido um capitulo inexistente, então se igualavam.
A mentira é, provavelmente, a coisa mais
democrática que as sociedades inventaram, depois da própria democracia, obviamente.
Ao contrário da verdade ou véritas ou alethéia,
conforme o caso, que necessita de atributos morais elevados e uma liberdade (ou
poder, autonomia, segurança) para ser exercida abertamente; a mentira é
exequível por qualquer pessoa sem qualquer requisito básico necessário e,
normalmente, tem um objetivo único que é o de proporcionar um lucro pessoal
ainda que possa servir como linimento para outros.
Falar a verdade é algo mais complicado. Dependendo
da sociedade em que é apresentada, só pode vir de Deus (Alethéia), embora,
digam alguns, este seja uma mentira inventada pelos homens.
Existe também a verdade imutável (Véritas) que
está além de qualquer forma de interpretação possível da mesma. A interpretação
da verdade universal (Véritas), também chamada verdade dos fatos, gera a
corrupção da verdade pelo filtro pessoal tornando-se a verdade humana, falível
e tendenciosa, o que a aproxima bastante da mentira, em ultima análise.
Obviamente que uma verdade humana que é aceita por
consenso como Verdade, ganha ares de Universal e até ser questionada, segue
incólume em seu curso.
A mentira também pode ser utilizada desta forma,
quando aceita e difundida por um grupo suficientemente forte ou com
respeitabilidade, ganha a força de uma Verdade Humana, interpretada a luz das
convicções e necessidades de cada grupo e seus seguidores.
O mais interessante é que ninguém pede provas de
uma mentira, ela se basta a si mesma de tal forma que até prolifera
independente de quem a criou, expandindo-se com uma velocidade tão grande
quanto a comunicação permitir. Já a verdade é logo de cara questionada, como
uma falsa mentira, da qual se percebe, logo de cara, as intenções desveladas .
A verdade é
confusa, a princípio; fraca, precisa se apoiar em inúmeros fatos para
tentar manter-se e, mesmo assim, não
convence de forma categórica sendo volta e meia questionada sobre sua
aplicabilidade, profundidade e amplitude.
Só a muito custo é que uma verdade consegue
vingar, crescer e se tornar autônoma para ser, na maioria dos casos, esquecida
logo a seguir, incorporada a imensa quantidade de coisas que não se para duas
vezes para pensar as motivações ou repercussões.
Convenhamos, é um fato que ninguém lembra-se
espontaneamente de uma grande verdade que foi dita a, digamos, dois dias atrás;
mas todos hão lembrar indefinidamente e com imensa quantidade de detalhes,
muitas vezes acrescidos posteriormente de forma totalmente autônoma, de uma
grande mentira contada ha vinte, trinta anos ou mais.
A mentira fascina a humanidade de tal forma que
quando há uma ausência dela em seu meio, gera-se imediatamente vários movimentos
para estimular o seu surgimento e difusão. Independente de qual seja a formação
social, psicológica, moral, religiosa ou política de uma sociedade, a mentira é
vastamente estimulada por uma necessidade ou outra que possa ocorrer, seja
relativa aos que comandam, seja relativa aos que são comandados.
Hermes trimegistos, o Deus da comunicação é também
considerado como o Deus da Mentira, porém até este fato é questionável pois o
mesmo título é dado a Loki – Deus nórdico da trapaça e da travessura; a Satanás
– contraparte cristã do Deus da verdade; a Maia – Deusa hindu da Ilusão; e a
tantas outras figuras proeminentes que provavelmente cada uma delas deve ter
parte nesse engodo, afinal a mentira , por ser democrática, não deve pertencer
a ninguém e servir a todos.
Engana-se quem acredita que a mentira é inútil e
desnecessária. Sem a sua existência não haveria a ficção, que é uma invenção completamente
aceita em sua natureza mentirosa; não haveria a imaginação, que é o engano
criativo; não haveria nem mesmo a sociedade, que não passa de uma ficção
desenvolvida na imaginação de alguns e abençoada por um deus qualquer que em
ultima análise não passa de uma farsa criada pelo mesmo grupo a quem a
sociedade serve.
Considerando-se friamente, a verdade pode ser tão
danosa e agressiva quanto a mentira pode ser doce e aprazível, ambas podem
trazer frutos doces ou amargos, ambas se sustentam por seus próprios meios e
com fins determinados na sua divulgação e abrangência.
O que distingue, basicamente, a Verdade da Mentira
é que a primeira sempre será coberta por uma aura incorruptível de virtude,
dificilmente atingida e sustentada por seres humanos; já a Mentira tem seu
papel mais próximo da humanidade, gerando conceitos falíveis e reversíveis,
gerando possibilidades criativas e extrapolativas da realidade que nos cerca a
níveis que, muitas vezes, permitem que se descubram verdades ocultas.
Não que se deva estimular uma ou outra em maior
grau, cada qual como parte complementar do plano humano e suas concepções, tem
sua importância e suas consequências que nem sempre são compreendidas
completamente, a menos que se analise cada qual individualmente, o que as
corromperá de forma inexorável em seus princípios básicos.
Então, verdade seja dita, por mais danosa que seja
a mentira, não podemos sobreviver, enquanto humanos, sem ela. Por outro lado,
quando a mentira for absoluta, estaremos fadados a perecer de verdade.
Danny Marks
29/07/2010
2 comentários:
O fato é que ninguém quer ouvir uma verdade. A verdade não tem muito o que se contar, não tem graça.
Às vezes é até mais complicado de se entender e aceitar.
Quando contamos uma mentira, temos a liberdade de criar fatos novos. Dependendo da imaginação fica uma "história e tanto".
Eu mesma tenho uma coleção de pratos antiga que se eu disser que fui na rua e comprei não tem graça nem uma. Então eu digo que meu avô foi piloto na segunda grande guerra e comprou este conjunto de porcelanas quando foi salvar um amigo de guerra na china. Valorizei meus pratos sem prejudicar ninguém.
rsrsrsrs
Beijos!!!
Janice,
Se o tema for tratado maniqueistamente é claro que fica complicado e provavelmente a maioria vai ser a favor da "verdade a qualquer custo".
O texto trabalha justamente com essa impossibilidade de se separar "preto no branco" o que seria uma mentira de uma interpretação da verdade, entre outras coisas.
Dá margem para reflexões (e é esse o objetivo real dele).
Um tema abrangente com possibilidades infinitas, como por exemplo a questão das verdades ditas de forma cruel, seria correto e ético apresenta-las assim?
Obrigado pela participação.
Beijos
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