(Texto concorrente do Concurso Os Retratos da Mente)
-Boa noite meu bem. Ainda trabalhando na decoração de natal?Acho que não cabem mais laços vermelhos nessa casa, o Tony já chegou?
-Boa noite meu bem. Ainda trabalhando na decoração de natal?Acho que não cabem mais laços vermelhos nessa casa, o Tony já chegou?
-Já, discutiu de novo com o irmão.
Tá trancado no quarto com enxaqueca, disse que não
vai jantar! Todo ano é a mesma coisa, é
só chegar dezembro pra esse menino ficar
de mal com a vida. Enquanto o Paul
todo feliz, vê beleza em todos os cantos, parece que ao Tony
essa euforia natalina é veneno!
-Calma querida, questão de
personalidade! Eles discutem porque se gostam. Irmãos são assim mesmo, daqui há pouco esquecem mais essa
discussão, que deve ter acontecido como
das outras vezes, por algum motivo
banal.
-O motivo não entendi, agora o Tony
estava transtornado. Parecia outra pessoa!
-Como sempre exagerada! Continue
trabalhando nos seus laços cintilantes enquanto
tomo um banho. O trânsito hoje estava infernal. Ah estava brincando meu bem,
seus laços a cada ano ficam mais perfeitos!
(….)
Que
fosse pro inferno o irmão com todas as conjecturas vazias, que fosse pro
inferno as falsas convenções da
sociedade moderna que não impõe regras,
aceita comportamentos e crenças inúteis. Queria mesmo era mergulhar na penumbra
que o envolve e atravessar para outro tempo, outra dimensão onde imperasse a
verdade e não a hipocrisia desse bando de falsos cristãos, mergulhados em suas
impurezas de costumes.
Como
nos filmes de ficção, ou nas estórias
fantásticas que o avô contava, gostaria
mesmo é de viajar para o passado, viver nas antigas
cortes da monarquia inglesa, onde
os lordes realmente mereciam os títulos de nobreza e as mulheres,
ah as mulheres cobertas em trajes vitorianos podiam ser admiradas e sonhadas em
todas as suas possibilidades.
Que falta
faz o avô, velho professor de história, que além das verdadeiras ensinadas nos
bancos da escola, tinha tantas estórias para contar. Descrevia os séculos
passados como se neles tivesse vivido. Falava da monarquia, das tradições e
valores onde havia uma linha divisória muito clara: pobres e ricos, cultos e ignorantes,
mulheres para amar e mulheres para usar, que as putas sempre existiram no
mundo, mas houve tempo em que era muito fácil diferenciá-las das demais.
Seria
maravilhoso amar as mulheres pudicas,
com corpos guardados em longos vestidos de imensas golas de renda,
que davam ao amante a possibilidade de sonhar, conquistar,
desvendar deliciosamente aos poucos, cada um dos mistérios daqueles templos de
recato.
Não como
esse bando de vadias moderninhas espalhadas por todo canto, rebolando
traseiros avantajados, sacudindo peitos
de silicone com sorrisos
libidinosos, vendendo de tudo, como a
loirinha de shorts curtíssimo e justo, os seios quase explodindo pra fora do
decote, entrando porta a dentro da
pequena gráfica da família, para fazer orçamento de uns panfletos
promocionais.
-Por
favor, pode me informar quanto fica o milheiro de um panfleto com essas
palavras? Estou fazendo propaganda de natal para uma clínica, pensei até no slogan: -“Faça
deste um natal fantástico para seu corpo”.- Olha os preços, não são ótimos? Lipoaspiração, redução de medidas, cirurgias plásticas,
colocação de silicone, tudo parcelado em dez vezes!
Fora por causa dessa jovem a violenta discussão com Paul o irmão mais
novo, e a crise de enxaqueca que o está
enlouquecendo. Para piorar a dor, as malditas luzinhas nas árvores da
avenida invadem a penumbra do quarto, piscando, piscando, piscando.
Precisa do escuro total, esse acender e apagar
acontece no mesmo ritmo do latejar das suas têmporas. A cor
vermelha da iluminação do imenso papai
Noel no out dor da esquina, invade o
conforto escuro da sua cama. É do mesmo
tom do batom da loirinha descarada de
boca carnuda, se rebolando inteira, cara de safadeza explicita, e o
pior fantasiada de “papai” Noel com
a minúscula roupa de tecido vermelho, gorro na cabeça, botas
pretas de cano alto.
Quando
saiu da gráfica deixou o rastro de perfume doce enjoativo que deflagrou a crise de enxaqueca, agravada depois pela
discussão com o irmão.
Ao
comentar sobre a figura extravagante e vulgar, ouviu o monte de baboseiras de
sempre: que ele não tem apego a nada, que não vê nada bonito na cidade
enfeitada, nem o quanto é belo o
espírito de natal em todos os cantos
nessa época do ano, que papai Noel é símbolo de alegria e confraternização, bla, bla, bla….
Comemoração
por que? Quase ninguém de verdade
conhece aniversariante. Essa
falsa alegria acontece porque lá pelo ano 280 depois do
nascimento do tal menino, um bispo da Turquia chamado Nicolau, começou a
distribuir saquinhos com moeda para os mais necessitados. Depois de morto o bispo virou santo e
inspirou a invenção desse velhinho safado que só serve mesmo para encher
os cofres dos comerciantes. A tradição
de dar presentes não tem nada a ver com nascimento nenhum, só ocorre
em dezembro porque um comerciante, muitos séculos depois de
Nicolau, com um estoque de meias encalhado resolveu inventar uma propaganda, promovendo o desencalhe da mercadoria, que
pelo jeito deu muito certo.
Quanto
mais pensa, mais a cabeça lateja de dor. Precisa dormir, desesperadamente
precisa dormir, vai tomar três
analgésicos, não apenas um.
Talvez
ao acordar a crise tenha
ido embora. Quem sabe colocando um pano escuro na janela, o tal pisca
pisca das malditas luzinhas e o jato de
luz vermelha do Noel ridículo
lá de fora, não incomode tanto. E
esse perfume enjoativo que ainda permanece intenso? Já tomou banho, limpou as narinas com
soro fisiológico e nada. O cheiro está ali, invasivo como a loirinha
vulgar que entrou rebolando na recepção
da gráfica balançando os seios falsos.
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-Tony…
Tony acorde. Já dormiu o bastante. Você tem um prazo a cumprir, vamos rápido levante dessa cama. A missão espera, não se esqueça que a
Rainha Vitória pessoalmente escreveu a ordem nesse pergaminho.
Dizendo isso a figura altiva aponta para a mesa
de cabeceira, onde ao lado do estojo com o antigo punhal que pertencera ao avo,
está o documento manuscrito,
identificado pelo brasão da
corte, com as instruções:
1.
Você teve
seu desejo atendido. Viverá faustamente como lorde na corte da rainha
Vitória o resto dos seus dias. Terá prestígio e admiração de muitos.
2.
Para que
isso se concretize você só precisa cumprir fielmente sua missão. A figura que
deturpou a história tem que ser destruída.
3.
Ao sair
dos seus aposentos você começara a regredir no tempo até chegar ao ano 270 D.C. Não deixe que nada o interrompa. Talvez
precise caminhar um pouco até alcançar a data onde encontrará o jovem Nicolau.
Será a chance de impedi-lo seguir a vocação religiosa. Leve-o a uma taberna e
faça-o ingerir vinho, ficará mais fácil incentivá-lo a entregar-se ao prazeres
da carne, afastando-o da sua vocação, assim São Nicolau nunca existirá.
E você terá mudado o rumo da
história.
4.
Pode ser
que tentem impedi-lo. Você terá dez horas para cumprir sua tarefa, nem um
minuto a mais. Como arma só poderá
utilizar o punhal centenário que
pertenceu a seu avô. Ele veio parar nas suas mãos justamente para
facilitar sua missão.
(….)
Precisa vestir-se sem fazer barulho. Se a mãe
que tem sono leve ouvir qualquer ruído
certamente tentará impedi-lo de sair, ainda é madrugada. Ela tem medo de tudo,
vê perigo em qualquer situação, quer existam de fato ou não.
O pai anda contaminado convivendo com a
insegurança dela durante anos, o irmão mais novo é um imbecil. Ao contrário dos
pais só vê bondade, boas intenções ao seu redor.Não
enxerga um palmo adiante do nariz no quesito mundo real. Pra ele não existe
maldade ou pecado. O idiota chegou a achar infantil o traje minúsculo da
loirinha de boca carmim travestida de Noel.
Cuidadosamente sem fazer ruídos, apanha no
maleiro a caixa onde está a fantasia do
último baile de mascaras que usara na faculdade. É um traje inspirado naqueles usados em
festas nos grandes castelos da Europa nos séculos passados, bem apropriado para
a tal missão. É certo que há detalhes exagerados, como as franjas das
botas. Talvez cortando-as fiquem adequadas. Optou por dispensar o
chapéu, tem adereços demais. Basta a roupa em tons sóbrios para fazer com
relativa segurança sua viagem ao
passado, mudar os planos de Nicolau.
Não ingressando na vida
religiosa, não dará inicio a tradição de dar moedas aos pobres,
consequentemente abortando a figura
ridícula do tal Noel some todo esse inferno em que se transformou o mês de dezembro no terceiro
milênio.
Olhando-se no espelho fica satisfeito com o que
vê. Só falta um detalhe, colocar no bolso o pergaminho assinado pela própria
rainha Vitória. Quando viajar de volta
até 1840 com a missão cumprida, vai
apresentar-lhe o pergaminho e relatar o sucesso da sua empreitada.
(….)
-Coisa
pavorosa esse caso. Conseguiram encontrar explicação pra tanta violência?
-Nada!
Ninguém compreende a loucura do rapaz. Deve ter sofrido um
surto psicótico.
-Mas esse
Tony tinha problema de cabeça? Usava
drogas, bebia? Ninguém percebeu
nada que indicasse que estava saindo
do controle?
-Conseguimos
poucas informações junto a pessoas próximas.
Desde criança sempre foi muito quieto, não era de se enturmar. Tinha uma
grande afeição pelo avô, um professor de História da Civilização, talvez a morte do velho tenha colaborado pra
essa a crise de loucura.
-Pode
ser. Um vizinho afirmou que a arma com a
qual cometeu a chacina, pertencia ao
avô.
-É.
Parece que desde pequeno sofria de enxaquecas terríveis que vinham piorando
muito nos últimos tempos. Uma amiga da família
informou que a mãe desanimada por não encontrar solução na medicina,
recentemente o tinha levado a uma benzedeira.
-Vai ver isso acabou piorando
as coisas. Veja esse pobre homem,
morreu dormindo! Não
há sinais de defesa. A mãe deve ter acordado na hora
do ataque, os braços e mãos
estão bastante machucados. Lutou muito
pra
não morrer!
-O que
deve ter despertado o irmão mais novo coitado. Morreu no corredor esvaindo-se
em sangue, com os genitais quase decepados pelo punhal.
-O que
não dá pra entender é a fúria com o qual esse tal de Tony foi atacando todo mundo pela frente. O que
significa as tirinhas de couro cortadas
ao lado da cama dele?
-Mais um
mistério, eram enfeites da bota que
estava usando. Sabe-se lá porque cortou antes de cometer essas
barbaridades. Depois de matar a família, feriu gravemente um pobre velhinho vestido de
papai Noel indo pro trabalho no comércio, matou o segurança que tentou
impedi-lo de destruir uma arvore de natal na vitrine do shopping. Foi atacando com golpes violentos quem encontrasse pelo caminho.
-O que
não dá pra entender é como chegou tão longe, do outro lado da cidade pra matar
a pobre criança indefesa.
-O
garotinho fantasiado de papai Noel indo para a festa de encerramento de
ano na escolinha.
-Isso, de
nome Nicolau Henrique da Silva, cinco anos o pobrezinho! Teve a cabeça decepada. Definitivamente não
dá pra entender uma tragédia dessa proporção. Se o policial não tivesse
estourado a cabeça desse doido, sabe-se lá quanta gente mais teria matado.
-Não há
carta, bilhete, ao algum recado no meio das coisas desse maluco?
-Nada.
Apenas um papel enrolado dentro do bolso da fantasia que usava. Tem um desenho
que parece de um santo, e algumas
palavras escritas a lápis, parece uma
reza. Deve ser da tal benzedeira
pra onde foi levado pela mãe por conta das enxaquecas. Leia você mesmo:
…..abra-lhe os caminhos pra cumprir sua missão nessa vida, livra-o dos maus
pensamentos, perdoa os pecados da carne e do espírito…assim seja!
Mãe Vitória
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