quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Xeque Mate - Danny Marks




“Na vida, diferente do xadrez, o jogo continua após o xeque-mate”
Isaac Asimov

             O João estava para voltar.
            Foi uma comoção, na empresa, essa notícia. Era o herói de todos.
            Nem sempre fora assim. Antes o João era apenas mais um cara legal, como tantos que iam e vinham.
            Um companheiro de bate-bola de vez em quando, um oi dado sem olhar de novo, no corredor ou no elevador, um favorzinho aqui ou ali, e algumas cervejas em festas e comemorações.
            O João bêbado era um caso a parte, quase um comediante transbordante de alegrias e brincadeiras para com todos, mesmo os que nem lembravam de tê-lo visto.
            Naquele dia o João estava bêbado, quando a arvore o atropelou a 150 km por hora.
            — Absurdo! Culpa dessa “lei seca” — dissera o Rômulo ao saber do caso — Se ele não tivesse pego carona no carro do Martins não tinha acontecido isso.
            Sim, o Martins, aquele que perdeu o carro, o respeito dos outros e de si mesmo. O que ganhara uma depressão crônica por causa do acidente, que acabou fazendo com que perdesse o casamento também.
            Todos afirmaram no inquérito policial que não era culpa do Martins. Fora escolhido o “motorista da vez” e estava completamente sóbrio naquela noite. A empresa exigia respeito às regras.
            Sorteado pelo carro novo, recém comprado, modelo potente, prestação cara. O João, entusiasta alcoolizado, incitara a pisar fundo na banheira na descida, logo depois do semáforo, resolveu mostrar como se faz para ligar o som do carro, se espremeu entre os bancos da frente acotovelando-se com o Martins, que apertou demais o acelerador.
Ai veio aquela arvore...
            O importante é que todos deram uma força para o João, menos o Martins.
            O intrépido carona virou um ídolo na empresa, afinal quantos já partiram do banco traseiro de um carro atravessando o vidro dianteiro para cabecear uma arvore e sobreviveram para contar a história? Um milagre, foi o laudo final.
            O que é uma cicatriz ao longo da coluna? Todo herói tem suas cicatrizes, não é mesmo?
            Um ano internado, oito meses de fisioterapia e estava feito novo. Precisava de uma festa, claro. O João era um exemplo de superação, de garra, alguém que ganhara um rosto dentro da empresa. Era um cara especial, agora.
            Reuniram-se para decidir como seriam as boas vindas.
            Uma festa no salão de reuniões era o melhor. Só precisavam tirar a mesa para um canto e por as cadeiras para fora e...
            Começou a complicação.
            — Todo mundo de pé e o cara sentado? Vai pegar mal.
            — E se arrumássemos cadeiras de rodas para todos? Pro cara se sentir igual à gente?
            Carlos passou o resto da reunião sem falar mais nada, trespassado e fulminado pelas setas envenenadas dos olhares. Pôxa, só queria ajudar. Gente insensível.
            — Podemos contratar aquele casal argentino de deficientes, sabem, aquela bailarina cega com o perneta, que dançam tango. Que acham? — disse a Patrícia, da comissão de licitações.
Se fosse homem tinha apanhado, mas mulher bonita, loira...Tinha desculpa.
Alguém ainda tentou corrigir.
            — Não se fala deficiente, é...Sei lá. Como é que chamam agora mesmo? — Foi ignorado, ninguém estava atento a isso no momento.
            Eram pessoas civilizadas, de mente aberta e pró-inclusão. Não possuíam preconceitos, todo mundo tem o seu valor, não é mesmo?
            Decidiram por um meio termo. Uma reunião comum, com umas bolinhas coloridas nas paredes, algumas cadeiras nos cantos para quem quisesse sentar e espaço livre para transitar sem esbarrar na mobília. Alguns salgadinhos, mas nada de bebida, para não lembrar...Talvez refrigerante, mas pouco.
           
(...)

            O João apareceu na sua cadeira nova, presente da empresa (com logotipo e tudo) em nome dos colegas. Aplauso geral, ou para ele ou para a morena que veio junto. Um Espetáculo de mulher, morena, olhos verdes, corpo de modelo embalado em um longo de costas de fora, decotadíssimo, empurrando a cadeira com certa dificuldade pelo carpete felpudo.
Como ninguém tinha pensado nisso? No carpete, não na mulher.
            No discurso que se fez necessário, o João falou de como o acidente mudara a sua vida para melhor.
            Com a indenização do seguro comprara um carro adaptado, desconto do governo e facilidade de pagamento e tudo embutido. Agora tinha até vaga garantida. Brincou.
            Aprendera a valorizar as pequenas coisas e descobrira outras tantas grandes, como o amor.
            Ficara noivo de Renata, sua fisioterapeuta, que era uma mulher especial (nenhum dos presentes teve dúvidas do quanto, diferiram apenas na modalidade da especialidade), e que lhe mostrara o valor da vida e do amor. Agora era um novo homem, cuidava mais da saúde, voltara a estudar, já tinha até planos formados para o futuro.
            Foi polidamente aplaudido. Pessoas civilizadas.
            Renata cuidava muito bem dele, que irradiava alegria de estar de volta. Fora logo colocado a um canto, como um santo no altar.
            Os colegas iniciaram a romaria de um ou dois minutos de proza, sorrindo polidamente e incluindo na conversa, delicadamente, a “noiva do João”, como ficou sendo conhecida a Renata nas rodas que não se prendiam no carpete do salão.
            — Você viu só? O que um mulherão daqueles faz com um cara que...bem, vocês sabem...
            Dizia um aqui.
            — O mundo está cheio de gente aproveitadora... sem escrúpulo algum. Eu conheço um caso de...
            Dizia outra ali.
            A cada palavra dita, mais se esqueciam do João e de suas novas vantagens e se sentiam mais e mais injustiçados pelos azares da vida.
            Até que alguém comentou que o Martins não tinha comparecido a festa.
            — Coitado do Martins, nunca mais foi o mesmo depois do acidente.
            — É verdade. Um cara incrível, suportou tudo sem reclamar. Cara admirável, homem de fibra aquele.
            Todos concordaram. O Martins era um exemplo de pessoa. Alguém realmente especial. Um grande amigo. Um homem de verdade, completo.
            Segunda Feira, quando o Martins chegou, não entendeu por que todos o tratavam com uma deferência que nunca tiveram.
            Chegou a ser aplaudido pelos colegas de sessão, na reunião depois do almoço, sem um motivo aparente, só pela presença mesmo.
            O João chegou atrasado. Perdera um tempo enorme tentando arrumar alguém que o ajudasse a escalar os dois degraus da entrada do prédio.
            A rampa de acesso ainda estava para ser comprada, havia outras prioridades mais imediatas.
            Os colegas passavam apressados, por ele, dando um oi rápido sem olhar para trás.
            Foi, afinal, o Martins, que conseguira ser liberado para ir ao banco negociar com o gerente as dívidas que tinha, que acabou ajudando o amigo a subir os últimos lances. 
            Dois heróis na contramão.
            Somos todos iguais em nossas diferenças, diriam uns poucos mais sábios. Mérito de gente civilizada.
           

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