“Na vida, diferente do xadrez, o
jogo continua após o xeque-mate”
Isaac Asimov
Foi uma
comoção, na empresa, essa notícia. Era o herói de todos.
Nem sempre
fora assim. Antes o João era apenas mais um cara legal, como tantos que iam e
vinham.
Um
companheiro de bate-bola de vez em quando, um oi dado sem olhar de novo, no
corredor ou no elevador, um favorzinho aqui ou ali, e algumas cervejas em
festas e comemorações.
O João bêbado
era um caso a parte, quase um comediante transbordante de alegrias e
brincadeiras para com todos, mesmo os que nem lembravam de tê-lo visto.
Naquele dia
o João estava bêbado, quando a arvore o atropelou a 150 km por hora.
— Absurdo!
Culpa dessa “lei seca” — dissera o Rômulo ao saber do caso — Se ele não tivesse
pego carona no carro do Martins não tinha acontecido isso.
Sim, o Martins,
aquele que perdeu o carro, o respeito dos outros e de si mesmo. O que ganhara
uma depressão crônica por causa do acidente, que acabou fazendo com que
perdesse o casamento também.
Todos afirmaram
no inquérito policial que não era culpa do Martins. Fora escolhido o “motorista
da vez” e estava completamente sóbrio naquela noite. A empresa exigia respeito
às regras.
Sorteado pelo carro novo, recém comprado, modelo potente, prestação cara. O João, entusiasta alcoolizado,
incitara a pisar fundo na banheira na descida, logo depois do semáforo, resolveu mostrar como se faz para ligar o som do carro, se espremeu entre
os bancos da frente acotovelando-se com o Martins, que apertou demais o
acelerador.
Ai veio aquela arvore...
Ai veio aquela arvore...
O
importante é que todos deram uma força para o João, menos o Martins.
O intrépido
carona virou um ídolo na empresa, afinal quantos já partiram do banco traseiro
de um carro atravessando o vidro dianteiro para cabecear uma arvore e sobreviveram para contar a história? Um milagre, foi o laudo final.
O que é uma
cicatriz ao longo da coluna? Todo herói tem suas cicatrizes, não é mesmo?
Um ano
internado, oito meses de fisioterapia e estava feito novo. Precisava de uma
festa, claro. O João era um exemplo de superação, de garra, alguém que ganhara
um rosto dentro da empresa. Era um cara especial, agora.
Reuniram-se
para decidir como seriam as boas vindas.
Uma festa
no salão de reuniões era o melhor. Só precisavam tirar a mesa para um canto e
por as cadeiras para fora e...
Começou a
complicação.
— Todo
mundo de pé e o cara sentado? Vai pegar mal.
— E se
arrumássemos cadeiras de rodas para todos? Pro cara se sentir igual à gente?
Carlos
passou o resto da reunião sem falar mais nada, trespassado e fulminado pelas setas envenenadas dos olhares. Pôxa, só queria ajudar. Gente
insensível.
— Podemos
contratar aquele casal argentino de deficientes, sabem, aquela bailarina cega
com o perneta, que dançam tango. Que acham? — disse a Patrícia, da comissão de licitações.
Se fosse homem tinha apanhado, mas mulher bonita, loira...Tinha desculpa.
Alguém ainda tentou corrigir.
Alguém ainda tentou corrigir.
— Não se
fala deficiente, é...Sei lá. Como é que chamam agora mesmo? — Foi ignorado,
ninguém estava atento a isso no momento.
Eram pessoas
civilizadas, de mente aberta e pró-inclusão. Não possuíam preconceitos, todo
mundo tem o seu valor, não é mesmo?
Decidiram
por um meio termo. Uma reunião comum, com umas bolinhas coloridas nas paredes,
algumas cadeiras nos cantos para quem quisesse sentar e espaço livre para
transitar sem esbarrar na mobília. Alguns salgadinhos, mas nada de bebida, para
não lembrar...Talvez refrigerante, mas pouco.
(...)
O João
apareceu na sua cadeira nova, presente da empresa (com logotipo e tudo) em nome
dos colegas. Aplauso geral, ou para ele ou para a morena que
veio junto. Um Espetáculo de mulher, morena, olhos verdes, corpo de modelo
embalado em um longo de costas de fora, decotadíssimo, empurrando a cadeira com
certa dificuldade pelo carpete felpudo.
Como ninguém tinha pensado nisso?
No carpete, não na mulher.
No
discurso que se fez necessário, o João falou de como o acidente mudara a sua
vida para melhor.
Com a
indenização do seguro comprara um carro adaptado, desconto do governo e
facilidade de pagamento e tudo embutido. Agora tinha até vaga garantida. Brincou.
Aprendera a
valorizar as pequenas coisas e descobrira outras tantas grandes, como o amor.
Ficara
noivo de Renata, sua fisioterapeuta, que era uma mulher especial (nenhum dos
presentes teve dúvidas do quanto, diferiram apenas na modalidade da especialidade), e que lhe mostrara o valor
da vida e do amor. Agora era um novo homem, cuidava mais da saúde, voltara a
estudar, já tinha até planos formados para o futuro.
Foi polidamente aplaudido. Pessoas civilizadas.
Renata
cuidava muito bem dele, que irradiava alegria de estar de volta. Fora logo colocado
a um canto, como um santo no altar.
Os colegas
iniciaram a romaria de um ou dois minutos de proza, sorrindo polidamente e
incluindo na conversa, delicadamente, a “noiva do João”, como ficou sendo
conhecida a Renata nas rodas que não se prendiam no carpete do salão.
— Você viu
só? O que um mulherão daqueles faz com um cara que...bem, vocês sabem...
Dizia um
aqui.
— O mundo
está cheio de gente aproveitadora... sem escrúpulo algum. Eu conheço um caso
de...
Dizia outra
ali.
A cada palavra
dita, mais se esqueciam do João e de suas novas vantagens e se sentiam mais e
mais injustiçados pelos azares da vida.
Até que
alguém comentou que o Martins não tinha comparecido a festa.
— Coitado
do Martins, nunca mais foi o mesmo depois do acidente.
— É
verdade. Um cara incrível, suportou tudo sem reclamar. Cara admirável, homem de
fibra aquele.
Todos
concordaram. O Martins era um exemplo de pessoa. Alguém realmente
especial. Um grande amigo. Um homem de verdade, completo.
Segunda
Feira, quando o Martins chegou, não entendeu por que todos o tratavam com uma
deferência que nunca tiveram.
Chegou a
ser aplaudido pelos colegas de sessão, na reunião depois do almoço, sem um
motivo aparente, só pela presença mesmo.
O João
chegou atrasado. Perdera um tempo enorme tentando arrumar alguém que o ajudasse
a escalar os dois degraus da entrada do prédio.
A rampa de
acesso ainda estava para ser comprada, havia outras prioridades mais imediatas.
Foi,
afinal, o Martins, que conseguira ser liberado para ir ao banco negociar com o
gerente as dívidas que tinha, que acabou ajudando o amigo a subir os últimos lances.
Dois
heróis na contramão.
Somos todos
iguais em nossas diferenças, diriam uns poucos mais sábios. Mérito de gente civilizada.
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