Que os brasileiros possuem uma
criatividade sem limites, isso ninguém no mundo dúvida. Que a “malandragem”
brasileira é sem precedentes, também não. Isso já foi cantado e difundido por
todos os cantos deste pequeno planeta e tem, desde sempre, sido seu maior
tesouro e pior veneno, afinal, a diferença é apenas uma questão moral e ética.
O “colorido”
brasileiro quebra a monotonia do “preto no branco” maniqueísta que está
impregnado nas diversas culturas pelo mundo e que dificulta olhar soluções
alternativas, criativas, para algum problema complexo. E muitas empresas ao
redor do mundo perceberam isso, tanto que investem em especialistas brasileiros
para achar soluções inéditas e inusitadas.
Nós temos,
provavelmente, os mais criativos geradores de narrativas do mundo todo. Então,
por que o mercado literário nacional não decola? Talvez porque o brasileiro
pense no curtíssimo prazo, no imediato, ao contrário de outros povos que tem
uma visão mais ampla e necessária de continuidade.
Veja, por
exemplo, a construção de uma narrativa complexa que supera facilmente qualquer
grande obra de Hollywood em termos de enredo (e podem até mesmo juntar vários
em um) que não seria tão inteligente, criativa e inusitada: A Distopia
Brasileira.
Imagine uma
distopia baseada em grupos políticos interessados em lucrar muito e rapidamente
em um esquema que levaria anos para ser descoberto, se fosse. Ok, isso seria um
péssimo plot se fosse montado do início. Seria necessária uma desconstrução a
partir de um evento que chocaria o público logo de início e prenderia sua
atenção chamando-o para a trama. Como fazer isso? Uma técnica simples deve
bastar. Um escândalo político é descoberto e levado à público pela instituição
responsável por investigar esses esquemas ilícitos.Nada melhor que a promessa
de uma grande reviravolta para fazer o público se interessar logo de início.
Tem que começar
com uma bomba política, abalando reputações de pessoas que estão no poder e que
possuem uma certa credibilidade entre os seus partidários. Ok, isso não é o
suficiente para compor uma boa história, afinal seria apenas mais um “bem
contra o mal” e no final todos esperariam que o bem triunfasse e pronto. O que
falta? Se estamos falando em distopias, é preciso que haja uma conspiração.
Conforme vão sendo levantados os fatos relevantes do escândalo, mais e mais
pessoas vão sendo envolvidas.
Que tal se
colocarmos alguns elementos socioeconômicos? As reputações abaladas são de
pessoas que representariam, ou deveriam, a parcela mais pobre da população que
consiste em um grande eleitorado, já que estamos falando de um país em
desenvolvimento. A parte econômica se daria pela inserção de empresas criadas
dentro do esquema, que se tornariam gigantescas com lucros obtidos através de
negócios escusos e propinas com o financiamento e aval dos membros do governo.
E isso seria descoberto e levado à opinião pública gerando uma grande revolta
entra e população. Ainda não está convincente? Então vamos acrescentar mais
elementos.
Para garantir que
conseguiria os privilégios desejados, esses “empresários do mal” teriam
financiado campanhas políticas de todos os partidos. Assim, não importando quem
entrasse, estariam nas suas mãos. Que tal se houvesse um esquema entre as
empresas “colaboradoras” do esquema, para que dividissem entre si as obras
financiadas pelo governo, superfaturadas para incluir mesadas (sim, propinas
mensais garantidas por anos) para os que aprovassem e outras para que não
fossem denunciadas. Inverossímil? Bem, estamos falando de um esquema que vai
crescendo durante anos e se infiltrando cada vez mais fundo. Que será desvelado
em flashbacks investigativos e em ações no tempo real.
Vamos colocar então algo que agite
essa trama, está tudo muito embolado, é preciso dinâmica. Que tal grupos
opositores, cientes do esquema todo, competindo entre si para serem os que
recebem os maiores lucros, e para isso montam esquemas dentro de esquemas para
construir um projeto de se manter no governo através de negociatas internas,
enquanto para os eleitores se apresentam como opositores ferrenhos?
Oito anos cada e
todos seriam servidos, certo? Errado, estamos falando de pessoas que não tem
escrúpulos e são gananciosas, viciadas em ganhar dinheiro fácil. Então começam
a planejar um esquema para derrubar os que estão no comando, e ficar ainda mais
tempo. Eliminar a concorrência ilícita, e assumir totalmente o controle com o
“combate à corrupção”, dos outros. Basta uma traição aqui e ali e muitos
sacrifícios pequenos, de membros não tão importantes assim “corrompidos” pelo
esquema alheio.
Mas o
contra-ataque também ocorre e as coisas ficam meio neutralizadas, só que uma
vez levantado o pano, outros elementos descobrem o esquema lucrativo e começam
a ficar ambiciosos também. Então as empresas que ganhavam rios de dinheiro de
forma fácil, passam a ser achacadas por todos os lados e resolvem revidar.
Basta que comecem a revelar em delações premiadas os esquemas e assim, pouco a
pouco, vão derrubando o esquema todo, enquanto conseguem vantagens legais pela
delação e ainda conseguem segurar boa parte dos lucros que obtiveram ao longo
do tempo (e aqui retornamos ao início com a operação já citada). Afinal, não é
preciso entregar tudo e os próprios delatados teriam interesse em se manter
calados, seja por vantagens adquiridas e posteriores ou por ameaça.
Agora é preciso um plot twist, uma
reviravolta. Que tal bagunçar ainda mais a coisa com outros elementos? Que tal
construir narrativas indignadas, divulgadas pelas mídias, gerando heróis
instantâneos (pessoas que fazem um trabalho honesto, e por isso se tornam um
exemplo contra a corrupção), e fazem uso daquela área sombria dos procedimentos
legais, jogando um lado corrupto contra o outro lado corrupto (afinal, isto é
uma distopia, e até heróis tem que ser sombrios) aliciando exércitos através de
fatos revelados sob um viés que os apresente para este ou aquele grupo, de
forma a se identificarem.
Mas espere, isso
vai acabar derrubando o país em uma crise sem precedentes, seja política, seja
econômica, seja social. Desencadear uma guerra civil gerando uma ditadura, o
que seria ruim para todos. Então o que é preciso é deixar muitas lacunas, de
forma a manter a tensão, mas também fazer com que as pessoas fiquem em dúvida
sobre o que está acontecendo. Isso permitiria que os esquemas continuassem
agindo em ambos os lados ocultos, ao mesmo tempo que “medidas saneadoras”
estivessem ocorrendo. Algo como um truque de mágica. Olhe para uma das mãos
enquanto a mágica acontece na outra. Narrativas convincentes com meias verdades
seriam divulgadas abertamente pela própria imprensa ou por algum dos envolvidos
em cadeia midiática nacional.
É preciso lembrar
que uma distopia tem que criar aquele clima de desesperança generalizada, de
que as coisas são assim e não podem mudar. Para isso é preciso que a corrupção
seja apresentada de forma tão generalizada que não há qualquer possibilidade de
uma solução, pacífica ou não, porque só haveria uma substituição do Status Quo
por outro semelhante, ou pior. Resta aos personagens escolher um lado e esperar
que seja o menos pior. Lutar para conseguir uma vaga no esquema. Garantir que
as coisas não mudem para algo muito mais estranho e ruim. Melhor ficar com os
demônios conhecidos.
Não, isso seria ridiculamente
maniqueista e comum; cadê a criatividade? O melhor é fazer com que as Empresas,
aquelas mesmas que se beneficiaram de todo o esquema e que entregaram os
corruptos que aliciaram para se livrar deles, também comandem as massas de
forma a que se crie um sentimento de que é possível se livrar dos bandidos (os
políticos) e gerar uma nova moral (das empresas). Assim, basta interromper
por algum tempo os esquemas de corrupção e o país volta a crescer normalmente
(o que estava sendo impedido pelo próprio esquema) devido (e essa será a
narrativa apresentada) aos heróis que criaram uma nova forma de governo,
reformaram as leis e fizeram um esquema mais justo onde todos (menos os
interessados) paguem um pouco pelo bem-estar comum. E a população, vendo
políticos poderosos presos, com bens confiscados, repudiados publicamente,
sentem-se com a alma lavada e voltam a fazer o que sempre fizeram, trabalhar
cegamente.
Claro que com o
tempo todo o esquema anterior será esquecido, os presos podem ser beneficiados
por algum outro acordo não divulgado e logo retornam aos seus lucros
escondidos. As Empresas que ficaram bilionárias com os esquemas entregam parte
dos lucros ilícitos, pagam multas vultosas aos olhos do público (mera parcela
do que lucraram), pedem desculpas, e voltam a empregar pessoas porque afinal,
não podemos parar a nação que já dá mostras de crescimento. E uma nova geração
de corruptos, em um novo modelo, pode ser aos poucos fomentado deixando para os
futuros livros de história as outras tramas.
Mas, pode ser que o
sucesso da primeira fase seja tão grandioso que seja necessário ter uma segunda
temporada. Que tal se o próprio poder judiciário estiver infiltrado por
corruptos que ocupem cargos significativos e que sejam obrigados a proteger com
manobras legais descaradas e imorais os corruptos presos aos quais estão
vinculados. Provocariam com isso uma guerra dentro das instituições, abalando
as estruturas, colocando a população estarrecida em um êxtase imóvel,
assistindo ao show de horrores que se tornaria o cenário político que
determinaria o seu futuro, sem saber o que fazer, apático. Quantas reviravoltas
seriam possíveis à partir daí? Juízes investigados? Ministros indiciados?
Aviões que caem misteriosamente com importantes figuras de destaque nessa
guerra? Acidentes vasculares imprevistos apesar dos anteriores quadros médicos
perfeitos? Inúmeras possibilidades de descer ainda mais o nível e aumentar
ainda mais a tensão da narrativa. Que tal um plot twist do tipo “O poder
econômico global, vendo que o modelo brasileiro poderia ser copiado por
políticos de outros países já envolvidos em corrupção, sentindo-se ameaçados,
resolvem interferir na guerra a favor dos que querem derrubar o esquema e
moralizar as coisas”? É preciso lembrar que é uma distopia, os interesses
comandam, não os sentimentos, e o Brasil não é um país deslocado do mundo. As
empresas que detém o controle dos políticos corruptos em outros países,
poderiam se sentir ameaçadas se o esquema brasileiro se invertesse e seriam
forçadas a agir com todo o poder que possuem. A Terceira Guerra Mundial não
seria necessariamente com armas, embora possa haver conflitos armados
localizados, mas seria no campo de batalha econômico, e o Brasil seria um dos
pivôs dela.
O sentimento de que a
humanidade possa descer tão baixo, que não haja realmente heróis altruístas,
que grupos de interesse possam se juntar com os supostos adversários para
lucrar ainda mais com uma suposta guerra entre si, matando milhões no processo
sem jamais serem incriminados de fato pelos seus atos, não é algo que o público
vai esperar em uma narrativa, mas trata-se de uma distopia, é feita para
apresentar o pior do pior possível. Pior que uma corrupção generalizada, é o
sentimento de que, nem mesmo nós faríamos melhor, se houvesse oportunidade.
Isso seria olhar para os nossos erros e ter que os admitir, exigindo uma
atitude madura de superação.
Por isso que não temos autores
brasileiros fazendo narrativas de sucesso. Ninguém acreditaria que essas coisas
poderiam ser reais e estar acontecendo em algum lugar do mundo. Nossas
fantasias mais inacreditáveis, são justamente isso, inacreditáveis. Mas, somos
os melhores em descobrir formas inusitadas de fazer as coisas, para o bem ou
para o mal, maniqueisticamente falando. E talvez seja apenas isso que nos
salve, afinal.
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