“Veja, olha outra vez
o rosto na multidão. A multidão é um monstro sem rosto e coração”
Negro Drama – Racionais MC’s
Os corpos estavam decapitados, esquartejados, corações
arrancados em uma fúria sangrenta. Não é uma cena de filme de terror, não é uma
cena de guerra de outro pais em conflito, é a realidade de um sistema
carcerário falido.
Mas o que mais horroriza, não é a dantesca cena e sim a
forma como é recebida e comentada pelas autodenominadas “pessoas de bem”, como
se houvesse “pessoas de mal” pela própria natureza e não monstros criados e
cultivados pelos horrores de uma guerra.
Em uma guerra o instinto do lobo é matar sempre mais e mais
rápido para garantir a sua sobrevivência, entrando em uma fúria assassina sem
limites até estar cercado de corpos mortos por todo lado. O instinto da ovelha
é ficar feliz de ter sobrevivido novamente enquanto o seu vizinho é que foi
morto, mas o que fazer? É a vida. E quando lobos matam lobos, até mesmo as
ovelhas se regozijam dessa carnificina, tiveram o que mereciam, deviam se
matar todos.
Essa histeria coletiva que toma conta das ovelhas em uma
fúria assassina que vê, na morte violenta dos violentos pelos violentos, a única
saída para se livrar do seu medo é que assusta mais ainda que a carnificina
generalizada. O que separa um povo de uma barbárie é justamente a capacidade de
se horrorizar contra atos de violência descontrolada. A multidão se torna uma
turba quando decide linchar o bandido, quando decide que a morte do outro é a
única saída para a sua vida, e que o outro tem que morrer de forma violenta. A
turba esquece que para a pessoa que está ao seu lado, na turba, você pode ser o
próximo a ser justiçado, você é o próximo a ser temido pelo seu ato violento e
covarde de todos contra um até a morte.
Nesta
semana o Brasil assistiu a pior chacina dentro dos muros da penitenciaria,
seguida de outra menor, na mesma semana. Muros em que se deveria erguer uma
ordem mais rígida e absoluta contra os que infringem a lei, que deveria
recuperar indivíduos para a sociedade, e que na verdade se torna apenas um
campo de treinamento para monstros insanos capazes de qualquer coisa,
eliminando os que não conseguiram passar nos testes do abismo.
O
governo diz que foi um acidente, talvez tenha sido. Talvez tenha sido um
acidente que pessoas incompetentes tenham assumido cargos de liderança e tenham
que se defrontar com situações desse tipo. Uma tragédia anunciada com nada
menos que um ano de antecedência, um caldeirão fervente onde se entope lugares com
quase quatro vezes mais pessoas do que caberiam, aumentando a pressão até que
exploda descontrolada. Foi um acidente ter acontecido esta semana e não daqui a
dois anos, quando outro assumisse acidentalmente o mesmo cargo. Como acidente,
pague-se a indenização e pronto, problema resolvido.
E a
população se revolta, a população quer mais é que os presidiários se matem
porque custam mais caro do que o trabalhador que os vigia, custam mais caro do
que o salário mínimo suado, que nem quando aposentados vão ganhar, se aposentarem. Bandido bom é
bandido morto, assim não comete mais crimes. A população não comete crimes. Não
bebe e dirige matando pessoas no transito mais violento do mundo. Não rouba no
preço, nos impostos que sonega, nos desvios que consegue aqui e ali. A
população não deixa de pagar pensão alimentícia para os filhos que nem queria
ter. Não agride em brigas de torcida organizada, não usa drogas, não faz
justiça com as próprias mãos.
A
população não bate em mulheres indefesas, não depreda patrimônio público em
manifestações controladas por facções organizadas e legalizadas aos olhos da
população. A população é contra o aborto, para salvar a vida de mais um miserável sem pai, abandonado a própria sorte, se ganhou a vida agora que a pague, se virar marginal, aí a gente manda matar, quem sabe. A população tem dinheiro para pagar bons advogados e sair livre
pelas brechas que a lei dá para quem pode pagar, mas não para pobre, preto,
vadio desempregado, traficado no comercio de escravos que todos os dias produz
milhões de desesperados, possível combustível para o circo carcerário.
A
população acredita que está acima da lei, está livre da lei, que há lei igual
para todos e que aquele bandido que foi morto, ladrão assassino, estuprador
violento, traficante da morte, nasceu assim, sem alma. Não foi um garoto
vivendo no meio das drogas e do sexo sem limites com “as novinhas” de plantão
no baile funk pancadão, financiado pelo tráfico para lavar dinheiro, não foi um
trabalhador desempregado e desesperado preso por roubo e esquecido no lento
sistema judiciário, tendo que assumir um papel na facção para sobreviver,
subindo de posto ao matar o adversário, tornando-se general ao comer o coração
ainda pulsante daquele que não foi tão rápido na arte de matar ou morrer.
A
população acredita que monstros não são forjados na sociedade, já nascem
prontos vindos de outras dimensões e das profundezas dos abismos abertos na
verdadeira e calma sociedade que atende a todos de forma igual e justa. E como
a população acredita, os magistrados acreditam, o legislativo acredita, o
governo acredita, e os bandidos passam a acreditar. E por saberem que não tem
mais retorno, avançam ainda mais para as sombras se tornando de fato aquilo que
a sociedade acreditava não ter, um câncer que matará até o ultimo que sobrar, por não ter sido prevenido, por não ter sido tratado a tempo, por não ter sido humanizado como
deveria.
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