Você já
deve ter ouvido essa história em algum outro momento, mas não exatamente desta
forma. Calma, não perdeu o início do texto, é assim mesmo, a questão está em
que as narrativas raramente são totalmente originais, isso porque desde tempo
pré-históricos elas são utilizadas – fazem parte de nossa trajetória
civilizatória – e fica difícil, depois de tanto tempo, criar coisas novas.
Um outro
fato interessante é que usamos narrativas para praticamente tudo, desde ensinar
valores morais que sejam úteis a sociedade, até comandar exércitos e seguidores
contra um determinado inimigo. As possibilidades de uso das Narrativas são
infinitas e a cada dia descobre-se mais modelos e usos que antes não haviam
sido investigados, embora as mais famosas sejam no meio artístico, como
expressão de sentimentos e concepções, retratando justamente as sociedades que
ajudaram a criar e a desenvolver.
Mas o que
é uma Narrativa afinal? Fugindo de todos os tecnicismos possíveis poderia
definir a narrativa como a exposição sequencial de fatos – reais ou imaginários
– sob um viés interpretativo que possui intencionalidades, expressas ou não,
nos conteúdos apresentados de forma a criar uma perspectiva parcial orientada.
Ainda muito complicado? Ok, vamos fugir um pouco mais das questões técnicas.
Uma Narrativa é uma forma de alinhavar fatos reais ou imaginários sob uma
perspectiva particular com a intenção de orientar a percepção do outro. É, não
melhorou muito, então vamos a um exemplo:
— Diz-me
com quem andas, que te direi quem és.
Essa
expressão extremamente popular está enraizada na base da nossa formação
psicológica e pode ser traduzida em infinitas possibilidades e usos. Basta que
pense em uma linguagem não formal, aquela que não usa palavras. Pense em, por
exemplo, cantores de Rap. Eles vão ter uma determinada “atitude”, um
determinado tipo de vestimenta, um determinado vocabulário, um determinado
estilo musical, tudo isso define os adeptos desse grupo. O mesmo vale para
surfistas, para empresários, para advogados, para políticos, para
donas-de-casa, para qualquer classe social, geográfica, racial, etc.
Nosso
cérebro evoluiu para identificar e usar padrões classificatórios, era uma
vantagem quando a velocidade que se identificava um predador ou um aliado
significava viver ou morrer. Portanto sempre buscamos nos mesclar com os grupos
que nos dão a sensação de segurança e absorvemos automaticamente padrões de
comportamento desse grupo em oposição a todos os outros. Ou seja, as pessoas com
quem me identifico, dizem muito sobre quem sou e onde quero chegar, ou “diz-me
com quem andas que te direi quem és”.
Mas o que
isso tem a ver com a Narrativa? Basicamente tudo. Da mesma forma que
identificamos padrões para sobreviver, criamos narrativas dentro desses padrões
interpretativos para auxiliar nessa identificação de aliados e predadores. Essa
tendência de seleção de fatos interpretados que permita a assimilação mais
fácil dos padrões é que criam as narrativas. Associamos determinadas atitudes a
determinados grupos e pressupomos que todos os integrantes assumam as mesmas
possibilidades de ação em situações semelhantes, em outras palavras, criamos
uma narrativa para cada conjunto de ações que determinam previamente uma
tendência quase que irrevogável.
Contra
fatos não há argumentos, certo? Errado. A narrativa é feita de fatos escolhidos
e alinhados dentro de um argumento que vai ser utilizado de forma a obter um
resultado objetivado. A forma como escolho os fatos que vou ressaltar ou omitir,
a sequência e velocidade que vou apresenta-los, são determinantes para
construir o meu argumento de forma que crie uma tendência de assimilação dos
mesmos como sendo a expressão da verdade que quero demonstrar. Portanto, fatos
interpretados são na verdade argumentos disfarçados em verdades incontestáveis
e totalmente convincentes de acordo com a habilidade utilizada na construção da
narrativa.
A forma mais
utilizada para impedir que uma narrativa nos conduza onde quiser e nos faça
agir sem refletir profundamente sobre os padrões é contrapor com uma narrativa
igualmente consistente – com fatos interpretados sob um viés contraditório de
forma a anular a assimilação automática da narrativa e obrigar uma reflexão
sobre os fatos sem interpretação que são a base da verdade.
Claro que
em tempos em que a internet aumenta a facilidade com que os fatos são
apresentados e versões sobre eles são divulgados aos borbotões isso não ocorre.
Estamos vacinados das narrativas por quantidades homéricas de fatos
apresentados por infinitas fontes e não vamos cair jamais em armadilhas
argumentativas das narrativas criadas exclusivamente para direcionar
pensamentos e ações, certo? Errado de novo. A internet tornou ainda mais fácil
a construção de narrativas justamente pela inundação de dados interpretados que
criam um caos interpretativo e a única solução para não enlouquecer com tantas
versões da mesma sequência narrativa é justamente apoiar-se em padrões
aglutinadores, a versão do grupo ao qual pertencemos.
Quando
observamos uma narrativa sendo elaborada, identificamos em primeiro lugar qual
a fonte, em que grupo ela foi criada – e, na atualidade, as narrativas mais
relevantes são criadas e desenvolvidas no meio de grupos amplamente
estruturados e, na maioria das vezes, opositores – antes de nos posicionarmos
contra ou a favor dela – sem precisar refletir muito sobre a narrativa, porque é
preciso estar livre para a infinidade de outras narrativas que estão sendo
produzidas a todo momento.
Assim, a
internet tem desenvolvido tipos de comportamento grupal que extrapolam os
limites geográficos e as tendências comportamentais locais. Aprendemos
constantemente a nos redefinir pelos grupos que possuem maior quantidade de
características semelhantes às nossas. Ainda buscamos pertencer a grupos, mas
atualmente os filtramos não pelo que podemos verificar em tempo real, mas pelas
narrativas que esses grupos produzem, pelo comportamento geral e específico de
seus indivíduos, que pressupomos serem livres em suas expressões, como nós
mesmos.
Cada vez
mais nos identificamos com o que as pessoas dizem ser – mesmo que não sejam –
do que com atitudes reais e concretas. Nos identificamos com as narrativas
chamadas de “discursivas”, ou apenas Discursos, que permeiam cada grupo como
uma regra consensada e não escrita ao qual nos filiamos ou nos posicionamos
contrários. A generalização e superficialidade necessárias desses discursos é
contida apenas pelas contribuições individuais daqueles que acabamos por
definir como representantes do grupo todo, e quanto maior o nível de influência
externa, maior o poder desse indivíduo na construção do Discurso do grupo ao qual
nos filiamos ou contra o qual combatemos.
Antes
havia sempre um único macho alfa e uma fêmea alfa no grupo – os chamados
líderes que poderiam ser contestados de tempos em tempos dentro das premissas
do próprio grupo – que seriam seguidos incontestes em casos onde a
sobrevivência grupal estivesse em jogo. Pertencer a um grupo quase que
automaticamente o excluía de todos os outros por uma questão puramente física –
a impossibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Atualmente as coisas são mais complexas
e podemos fazer parte de diversos grupos que não sejam completamente
antagônicos e seguir ou ser o macho/fêmea Alfa do momento, já que os papeis
grupais são mais líquidos e se moldam com a situação e o envolvimento.
O fato de
que é possível construir a própria narrativa virtual com base apenas em um
Discurso apresentado sem necessidade de provas concretas, torna ainda mais
evidente que podemos ser uma coisa e nos apresentar de outra forma, ou seja,
podemos pertencer a dois grupos antagônicos com discursos completamente opostos
e ainda ser aceitos por ambos como sendo verdadeiros, até que se prove o
contrário. A internet possibilitou a construção de narrativas que neguem os
fatos reais com fatos imaginários bastando para isso manter o Discurso certo nos
momentos em que é necessário.
Por isso a
confiabilidade individual e grupal se tornou mais essencial do que o próprio
discurso propagado pela narrativa. Vou seguir um Discurso enquanto ele for fiel
nos atos a si mesmo, e se em algum momento trair uma parte de si com atos ou
palavras ao que anteriormente – e existem registros disso, facilmente
acessíveis – ditos ou feitos, vou invalidar completamente o Discurso e o Grupo,
desconsiderando inclusive todo o histórico anterior que comungava com minhas
identificações, ainda que muitas dessas se mantenham. A integração ou
desintegração do Grupo não está ainda mais vinculada ao Discurso, mas ao seu
principal e atual fomentador.
Portanto,
na atualidade, não é preciso atacar diretamente todo o grupo, apenas o seu
líder mais influente na questão mais sensível do Discurso, a credibilidade de
sua narrativa. Com a mesma facilidade que se pode criar uma narrativa e aliciar
diversos grupos dentro de um Discurso que os englobe, também pode-se destruir
completamente o Discurso criando uma narrativa que ataque diretamente a
credibilidade de seu principal produtor, o “rosto” do Discurso.
Apesar de
ser simples na apresentação dada, a complexidade e a periculosidade desse tipo
de sociedade fundada em narrativas, vai além do que é normalmente divulgado,
até porque isso poderia criar um caos maior ainda se não houver algo que o
substitua de forma eficiente e rápida, e até o momento isso ainda não foi
desenvolvido. Para o bem ou para o mal a guerra de Narrativas está cada vez
mais forte no mundo atual e se desenvolvendo assustadoramente em complexidade.
Não é por acaso que se possa observar uma radicalização em vários segmentos
sociais, é apenas um efeito subliminar desse retorno a estratégia de “diga-me
com quem andas que te direi quem és”.
Quanto
mais avançamos nas construções narrativas dos Discursos veiculados ao longe,
mais nos afundamos no “regionalismo concreto” que nos define, porque podemos ao
menos vivenciar os fatos – por mais aberrantes que nos pareçam, são reais o
suficiente para que possamos comprovar sua existência concreta em contraposição
a virtualidade confusa de infinidade de “versões” – e nos posicionar diante
deles.
A crise de confiança que permeia os
Discursos - cada vez mais elaborados e esquematizados para produzir efeitos
significativos dentro de esquemas psicológicos pré-definidos – nos empurra na
desconstrução da identidade grupal em direção ao individualismo concreto e a
construção de uma máscara social que serve como escudo e que tem sua
confiabilidade construída não por bases reais, mas de acordo com as
necessidades de sobrevivência grupal.
Assim nos dividimos entre o concreto e “real”
que vivenciamos e o “virtual” onde testamos a nossa narrativa pessoal antes de
a apresentar no mundo real, ou apesar de não o fazer. No virtual podemos até
ser outra persona que na verdade não somos, mas gostaríamos de ser e que se
contrapõe ao que de fato somos enquanto agentes da realidade em que vivemos.
Essa ruptura de identidades pode gerar sérias crises existenciais e até a perda
de uma auto definição que leva a consequências imprevisíveis.
Obviamente
é possível combater essa guerra de Narrativas Discursivas de forma eficiente,
mas para isso seria necessário a construção de um novo tipo de conhecimento que
a cada dia – de forma intencional ou não – vem sendo minado em suas bases e
desconsiderado em sua importância. Esse conhecimento tem suas raizes justamente
na mesma área que cria as Narrativas, é a Análise Discursiva. Não é
interessante que na mesma velocidade e intensidade que se criam Narrativas
Globais que determinam os rumos de toda uma sociedade, cada vez mais se busca
diminuir a importância da interpretação de textos, do estudo das construções
narrativas, da análise discursiva nas obras clássicas?
Isso
ocorre porque quanto mais as pessoas conseguirem observar e separar os fatos
das suas interpretações, mais complexas terão que ser as narrativas para
conduzir os pensamentos e interpretações e mais sólidos e reais terão que ser
os Discursos para que permaneçam com a credibilidade que lhes dá força. Em um
tempo em que qualquer um pode escrever um livro e publicar conteúdo sem o
mínimo conhecimento técnico necessário, banalizando algo essencial a construção
da sociedade, cria-se o envenenamento da única ferramenta que pode construir
uma sociedade forte e saudável onde os seus indivíduos podem se sentir seguros
e se identificar no contexto.
Não sou
contrário que haja um aumento de publicações e uma diversidade de narrativas
ficcionais, pelo contrário, isso permite uma ampliação de leitores de novos
modelos narrativos, o que é fundamental é que haja a capacitação desses novos
autores para que possam, eles mesmos, serem críticos em seu olhar acerca dos
fatos e não passem apenas a reproduzir narrativas infundadas validando-as até
que sejam desmontadas e desapareçam completamente. Reveja, se necessário, a
parte em que comento sobre o risco de se destruir uma narrativa complexa apenas
destruindo a credibilidade do “rosto” do discurso, que pode ser apenas um autor
inexperiente que o reproduziu sem aprofundamento necessário. Não apenas a
carreira desse novo autor, mas todo o discurso que apoiava em suas narrativas,
passa a ser invalidado, apesar de poder conter coisas importantes e
verdadeiras, junto com outras inverossímeis que serão apontadas e generalizadas
na sua destruição.
Antes
queimava-se ou proibia-se livros para que não houvesse “contaminação” da
Narrativa Oficial, atualmente com a internet isso seria impensável e
impraticável, então faz-se o caminho oposto. Cria-se tantas narrativas
superficiais ou complexas que possam ser desmontadas dentro de um plano
estratégico que invalide todo um conjunto ao qual tenham se vinculado mantendo
apenas a Narrativa Oficial que passa a ser a única confiável dentro da
interpretação que se quer dar. Não é mais necessário – ou possível – destruir
uma obra literária relevante, mas tornou-se fácil criar uma enxurrada de obras
irrelevantes e banais de forma que aquela significativa se afogue no mar de
possibilidades e apenas a que se mantem artificialmente pela força da
divulgação constante é que sobrevive, e – como todos sabemos – quem detém a
capacidade de divulgação, detém o poder de determinar a narrativa.
Pelo que
foi apresentado, pode-se afirmar que o mundo do futuro depende não de novos
líderes que orientem seus grupos, já que estes podem ser desenvolvidos
artificialmente, mas da capacidade individual de interpretar textos para
identificar os verdadeiros líderes e as intencionalidades escondidas em seus
discursos para poder se posicionar a favor ou contra. É na busca pelos fatos reais
e na capacidade de interpreta-los por si mesmo que se consegue a sobrevivência na
era dos discursos enganosos.
E, então,
qual é a sua Narrativa?
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