Quando se mora em uma cidade turística
litorânea, acostuma-se com a sazonalidade populacional que acomete determinadas
épocas como chuvas de verão. Costumam vir ruidosas, rápidas, transbordantes,
atrapalhando todos os planos e, depois, quando se vão, deixam muito lixo e
bagunça expostos.
Claro que para determinados tipos de pessoas, como políticos – que lucram com
os impostos e popularidade, comerciantes – que lucram com a venda de produtos
para pessoas que não estão preocupados com o dinheiro, e escritores – que
desconhecem a palavra lucro, mas acabam conhecendo novos personagens –,
sempre há algo de bom nesse fluxo humano.
Foi assim que conheci um personagem urbano inusitado, não há palavra que o
descreva melhor, chamado popularmente de Zé Bigode. Não que seja esse o nome
real, se é que ainda lembra de ter algum, seja pela embriaguez, seja pela
demência leve que demonstra, seja porque é difícil para uma pessoa em “situação
de rua” – sempre me intrigou esse eufemismo moderno para a arcaica palavra
mendigo – manter uma identidade. Situação de rua na minha opinião deveria ser
algo como assalto, manifestação, essas coisas, mas enfim, não vamos fugir ao
tema.
Um mendigo de bigode não é algo inusitado, a menos que os mantenha enrijecidos
e curvados à Salvador Dali, quase sem barba – me pergunto onde consegue laminas
para a fazer. Mas essa particularidade que lhe dá nome só é vista por último,
depois que se repara nos trajes: um paletó de terno a cobrir nada além da pele
curtida pelo tempo em seu duplo sentido e pelos brancos no peito, a servir de
leito para a gravata, uma calça que já viu tempos melhores – com um corte
lateral – e um pé de sapato – o outro leva uma garrafa pet amarrada com trapos
que podem ter sido a camisa ausente.
Zé Bigode é aquela espécie de turista que não agrada políticos ou comerciantes,
que tentam a todo custo mantê-lo longe, mas que de alguma forma acaba se
tornando mais uma exótica parte do espetáculo público, depois que se vence o
impacto inicial. Sempre limpo, apesar de sua situação restritiva, caminhando
pelo calçadão com ar majestoso como a verificar se os jardins e os equipamentos
de seu lar de verão estão em bom estado, escolhe ao acaso alguém e lhe pede,
sem qualquer apresentação prévia:
— Dez reais!
Não pede nada diferente disso, seja valor ou outras coisas. Sempre “dez reais”.
Também não aceita que alguém que não tenha sido solicitado lhe ofereça
donativos, apenas a pessoa – que pode até se tornar intermediário na transação –
pode contempla-lo com qualquer valor, até mesmo os dez reais solicitados.
Quando alguém o faz solta, em um tom de voz que não admite questionamentos,
alguma de suas frases emblemáticas que, junto com as vestes e o bigode, o
tornam tão popular. Feito o seu espetáculo retira-se como se nada houvesse
interrompido o seu passeio, deixando apenas o som do mar e o silêncio abismado
das pessoas.
Claro que para um escritor ser escolhido por uma figura assim, inusitada, é
como encontrar um dos personagens refugiados da ficção na curva de uma esquina
que se vira de forma automática. Mas como não adianta nada tentar impor à Zé
Bigode a sua presença, que será ignorada completamente, resta apenas aguardar
que a sua loucura seja identificada e atraia a atenção. Por isso sempre que Zé
Bigode está na cidade ando com dez reais no bolso, feito moedas para o
barqueiro.
E quando menos se espera, coisas acontecem. Projetando um raio de luz sobre as
divagações em um banco de jardim público, chega a voz imperativa que o coloca
no centro de um palco improvisado, no momento em que todos os roteiros
possíveis estão descansando em algum lugar distante.
— Dez reais!
Rapidamente se forma um pequeno público a observar o estranho, talvez um
turista que não conhece o costume. Diversos se preparam para fornecer
suprimentos para o estranho, apenas para poder participar como coadjuvantes
desse espetáculo popular sem hora marcada.
Saco da bolsa, onde carrego a leitura do momento, a oferenda exigida pelo
arauto dos novos tempos e tiro dos fones a trilha sonora que sempre me
acompanha, para dar vazão a ansiedade na audição do vaticínio do oráculo
moderno. Ele recolhe rápido, sem olhar, o valor ofertado que é displicentemente
jogado no bolso esquerdo e proclama:
— Fantasmas pertencem ao passado, só espíritos habitam o futuro.
Comungo, provavelmente com o pequeno público que poderia até aplaudir se não
estivessem tão ou mais aturdidos que eu, com as palavras. Vai-se o momento,
vai-se Zé Bigode, vão os dez reais, vão os expectadores; cada qual pegando seu
destino em direções opostas preenchidos por sentidos, fico sozinho com palavras
e percepções.
Reflito se as pessoas terão entendido o que disse aquele arauto do submundo, se
cheguei a alcança-las em sua profundidade. Caronte deve estar a sorrir sob o
capuz que lhe é peculiar. Olho para o horizonte e lá está a conversar animado
com flores do canteiro, ouvintes cativas que nada lhe devem, antes de descer a
rampa que conduz para o mar. Não o vi desde então, ainda calam em mim as
palavras que se justificaram pelo valor dado, e mais.
Teria Zaratrusta abandonado sua caverna e, rindo-se do escritor que tenta ver o
mundo com olhos críticos de esperança, atira-lhe ao rosto realidades tantas
vezes vivenciadas e não percebidas? Ao passado pertencem os fantasmas, só aos
espíritos permite-se almejar o futuro. Poderia facilmente escrever uma tese,
artigos, textos e peças teatrais a partir desse mote, mas logo sou invadido por
percepção amarga que rouba o ímpeto.
Jamais voltarei a ver Zé Bigode, ouvir sua louca
sabedoria. Terá se tornado fantasma que permanecerá no passado, zombando do
futuro e seus espíritos imaturos. Não podendo dividir direitos autorais com um
fantasma, resta-me apenas o registro que, talvez, avise os espíritos de que há
caminhos tortos no rosto da realidade – que nos assombra com sua síntese, e que
se vai sem ligar para o que fazemos com o que nos deixa.
Só valemos dez reais de sua
atenção, e nada mais.
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