sexta-feira, 3 de junho de 2016

Brilliant Performance – Danny Marks (Análise de Vídeo)

       
          Fazer humor é algo difícil, todo humorista sabe disso. Se for um humor crítico, com uma ironia fina, mais complexo ainda. Mas o “Sr X” (infelizmente não consegui descobrir o nome dele) tem a habilidade e a inteligência para provocar o público sem criar uma rejeição. Esse primeiro instante é que demonstra para o profissional se conseguiu conquistar ou não o público.
          Observe que ele já provoca uma obrigatória percepção do público na escolha das roupas, uma camiseta listrada, blazer e calças de um tom neutro, ligeiramente folgadas, mas não deselegante. Para completar, tênis, um toque anárquico na relaxada sobriedade das vestes. Essas roupas folgadas e destoantes, que lembram um relaxamento e uma formalidade em algum nível mais inconsciente, estão diretamente vinculadas ao tipo de vestimenta que um palhaço de circo usaria. Essa tradição de vestuário que satiriza a sobriedade está vinculada aos primórdios da arte circense que buscava ganhar a vida ironizando justamente o público que pagava pela apresentação, os nobres das cortes.
          Os olhos destacados por delineador que realçam-lhe as expressões também remetem a esta tradição circense, mas avançam pelo arquétipo do mímico, que tenta transmitir o seu texto apenas com as expressões faciais e corporais. Estabelece-se dessa forma uma cadeia de memórias primordiais do humor que, impactada pelo primeiro momento de estranhamento, busca nas memórias mais primordiais o reconhecimento do padrão. O choque inicial é reforçado pelo inusitado uso de uma fita preta servindo de mordaça.
          A fita preta adesiva da mordaça é emblemática por si só, simboliza a impossibilidade de falar, a censura, a coerção sofrida. Mas o fato de estar com as mãos livres e a mordaça não ser removida, torna mais emblemáticos e assume diversos papeis, de acordo com o contexto, para além do impacto inicial. Em nenhum momento será removida e, portanto, obriga o leitor a prestar atenção a todos os outros sinais codificados pelo corpo e pelo olhar. Note que uma simples fita preta sobre a boca em tamanho suficiente para parecer uma tarja preta (e isso já nos levaria por outros caminhos de análise) de censura, ultrapassa o efeito do impacto inicial, da primeira visão, e por não ser removida nem mesmo para responder a perguntas que são feitas pelos jurados (as autoridades instituídas) passam a representar mais simbolismos.
          Ao não responder aos jurados devido a tarja preta, a censura passa a ser uma crítica, inverte a função do que é proibido pelo outro para o que não se permite dar ao outro, "pensem o que quiserem", gestos e olhares dão indicação dessa postura. A questão é reforçada pelo ato de testar o microfone com a mão e, percebendo que está ligado, afastá-lo com um gesto de inconformidade.
          Entra a música e o Sr X veste luvas de cozinha, a música inicial decresce em desafino e se inicia uma trilha sonora romântica enquanto as luvas são erguidas até a altura do olhar e se transformam em toscas marionetes com o simples fato de voltar as mãos para fora e expor a face interna das luvas, ornadas com olhos estilizados. Os polegares tornam-se as bocas que cantam a canção.
          Novamente vemos uma referência circense aliada ao teatro de marionetes. O “manipulador” observa o boneco junto com a plateia, mas reage como se cada boneco tivesse uma individualidade e até se “espanta” com os mesmos. O simbolismo resgatado pela música é o do romantismo moderno, detalhes como os punhos de bolinhas coloridas reforçam esse simbolismo de “amor de arco-íris”. Mas o manipulador parece não gostar do que está acontecendo, seu olhar assustado e os gestos faciais de repúdio são contraditórios com o público que entra no clima romântico e balança os braços no alto ao sabor do romance. A crítica sutil se dá por um breve instante em que a “marionete masculina” volta a ser brevemente uma mão enluvada a coçar a virilha do artista, mas retorna o seu papel a tempo de cantar o dueto e esboçar o “beijo” que finaliza a apresentação do primeiro quadro. O artista vai afastando sutilmente para um dos lados as marionetes improvisadas ao mesmo tempo que desvia o rosto do ato final como a demonstrar repúdio ao “beijo” das marionetes. Nesse momento é possível ver um toque sutil, o cabelo bem penteado na frente, tem um estudado ar punk, espetado, na parte de trás.
          A plateia vibra, a música volta a ter um toque circense enquanto o Sr X guarda as luvas em uma bolsa e retira o seu próximo “personagem” iniciando uma outra modalidade de dueto com marionete, em que o artista se apresenta metade no papel masculino e metade no papel feminino.
          Mas desta vez nota-se que a “mulher” não tem cabeça, apenas o par masculino a possui. A música circense desafina e é substituída por um outro dueto, mas o tom desta vez é sensual, o que combina com o “vestido” vermelho da “dama”.
          O “casal” passa a dançar, mas o “cavalheiro” passa a se interessar por outro alguém, e é “repreendido” pela “dama”, obrigando-o a olhar apenas para ela que continua a acaricia-lo durante a dança.
          O “cavalheiro” desliza as mãos pelas costas da moça em direção às suas nádegas, mas esta imediatamente o repreende, forçando a “mão boba” a subir. Ele insiste, ela volta a reprimir. Ele a engana com um blefe e ela acaba colocando a mão dele onde este queria. Vencida a resistência inicial, ele avança e tira o sutiã vermelho da “moça” e simulam um deitar-se terminando a apresentação.
          O público e os jurados vão ao delírio.
          Meus leitores também. Ora bolas, isso não era uma análise? Então, é preciso destacar os elementos analisados para que se perceba qual o raciocínio utilizado para a “leitura” analítica. Essa foi a primeira parte.
          A segunda parte consiste em estruturar o argumento já ensejado na própria apresentação dos elementos estudados. Quando apresentei o texto já introduzi a ideia de que o trabalho do artista é na linha do humor crítico, com o uso de ironia fina. Como se justifica isso?
          Primeiramente pela mordaça que brinca com a questão da censura, do interdito, como diria Foucault. Se há algo que não pode ser expresso de forma direta a comunicação fica interrompida, a mensagem fica suspensa entre o emissor e o receptor, o interdito. Porém, não significa que é extinta, apenas que assume no receptor uma função de reverberação, ou seja, o receptor passa a “produzir” a mensagem que recebe e isso cria um outro modo de comunicação que é mais interno. Algo como um diapasão que faz vibrar uma taça de cristal pela sintonia vibracional. Neste caso são os arquétipos, os conceitos internalizados, que reverberam como cristal ao serem provocados.
          Portanto, não há como repudiar o que não foi “dito”, mas foi “interpretado” e, por não ser socialmente aceito, não pode ser “acusado”, sob pena de revelar o acusador, mais que o acusado.
          Essa linha de humor lida com os conceitos e preconceitos mais estruturais da sociedade, aquilo que não é dito, mas está presente e cria raízes profundas alterando as percepções. Somente uma sutileza e habilidade extrema conseguem “brincar” com sentimentos profundos sem provocar uma explosão, ao contrário, fazendo com que transbordem e permitam um relaxamento da repressão que sofrem. Esse relaxamento é o humor conciliatório provocado.
          Mas, dirão alguns, como o artista pode expressar sua opinião se apenas o outro vai “produzir” a mensagem. Simples, pelo discurso indireto, subliminar. As expressões de repúdio ao amor romântico do primeiro quadro são substituídas pelo envolvimento no amor sensual do segundo quadro. A mordaça assume o seu papel primordial no contexto transformando o artista na representação da sociedade que repudia uma faceta do amor e valoriza a outra, mas não de forma aberta, apenas fingindo aceitar as duas. Essa é a crítica sutil, a condenação não dita, a aceitação não formal, o interdito provocativo que, embora se expresse abertamente de uma forma, no íntimo se revela totalmente oposto.
          O fato de que as “marionetes”, a “dama” e o artista são apenas aspectos da mesma coisa e da mesma representação nos dá a leitura direta da crítica social que apresenta, pela ironia fina, aquilo que de outra forma nos pareceria agressivo e deveria ser repudiado firmemente, mas pela obra artística passa a ser aceito permitindo que seja reinterpretado e, portanto, analisado.
          Obviamente esta é uma análise superficial, com poucos elementos de interconexão, mas o objetivo é justamente esse, demonstrar que o aprofundamento de uma obra de arte se estende ao limite que o leitor quiser dar e sempre haverá algo que possamos aprender, e nos divertir no processo. Quer um exemplo? Por que luvas de cozinha? E abrem-se novas possibilidades interpretativas. Até a próxima.

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