Este interessante artigo encontra-se publicado originalmente em http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/07/18/a-culpa-por-ser-pobre-e-nao-ter-estudado-e-totalmente-sua Nosso acesso foi efetuado em 20/07/2014.
O Retratos da Mente recomenda a leitura, divulgação e reflexão do texto. Assim como o Leonardo Sakamoto, não acreditamos em "milagres" ou em "messias salvadores da pátria", mas acreditamos em que cada um detém a capacidade de mudar a sua vida, para melhor ou não.
Sobre o autor
Leonardo Sakamoto é jornalista e
doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos
direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo
na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
A culpa por você ser pobre é totalmente sua.
A frase acima raramente
traduz a verdade. Mas é o que muita gente quer que você acredite.
Aí a gente liga a TV de
manhã para acompanhar os telejornais por conta do ofício e já se depara com
histórias inspiradoras de pessoas que não ficaram esperando o Maná cair do céu
e foram à luta. Pois a educação é a saída, o que concordo. E está ao alcance de
todos – o que é uma besteira. E as cotas por cor de pele, que foram
fundamentais para o personagem retratado na reportagem alcançar seu espaço e
mudar sua história, nem bem são citadas.
Pra quê? No Brasil, não
temos racismo, não é mesmo? Até porque o negro não existe. É uma construção
social…
Quando resgato a
história do Joãozinho, os meus leitores doutrinados para acreditar em tudo o
que vêem na TV ficam loucos. Joãozinho, aquele self-made man, que é o exemplo
de que professores e alunos podem vencer e, com esforço individual, apesar de
toda adversidade, “ser alguém na vida”.
(Sobe música triste ao
fundo ao som de violinos.)
Joãozinho comia
biscoitos de lama com insetos, tomava banho em rios fétidos e vendia ossos de
zebu para sobreviver. Quando pequeno, brincava de esconde-esconde nas carcaças
de zebus mortos por falta de brinquedos. Mas não ficou esperando o Estado, nem
seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou
(contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada, que lhe ensinou a
fazer lápis a partir de carvão das árvores queimadas da Amazônia), andando 73,5
quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de
bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional.
(Violinos são substituídos
por orquestra em êxtase.)
Ao ouvir um caso assim,
não dá vontade de cantar: Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito
amoooooooor?
Já participei de
comissões julgadoras de prêmios de jornalismo e posso dizer que esse tipo de
história faz a alegria de muitos jurados. Afinal, esse é o brasileiro que
muitos querem. Ou, melhor: é como muitos querem que seja o brasileiro.
Enfim, a moral da
história é:
“Se não consegue ser
como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade,
com professores bem capacitados, remunerados e respeitados, e de um contexto
social e econômico que te dê tranquilidade para estudar, você é um verme
nojento que merece nosso desprezo. A propósito, morra!''
Uma vez, recebi
reclamações da turma ligada a ações como “Amigos do Joãozinho”. Sabe, o pessoal
cheio de boa vontade genuína e sincera, mas que acredita que o problema da
escola é que falta gente para pintar as paredes. Um deles me disse que
acreditava na “força interior'' de cada um para superar as suas adversidades. E
que histórias de superação são exemplos a serem seguidos.
Críticas anotadas e
encaminhadas ao bispo, que me lembrou de que eu iria para o inferno – se o
inferno existisse, é claro.
O Brasil está
conseguindo universalizar o seu ensino fundamental, mas isso não está vindo
acompanhado de um aumento rápido na qualidade da educação. Mesmo que os dados
para a evolução dos primeiros anos de estudo estejam além do que o governo
esperava no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), grande parte
dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas
ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos.
Enquanto isso, o
magistério no Brasil continua sendo tratado como profissão de segunda
categoria. Todo mundo adora arrotar que professor precisa ser reconhecido, mas
adora chamar de vagabundo quando eles entram em greve para garantir esse
direito.
Ai, como eu detesto
aquele papinho-aranha de que é possível uma boa educação com poucos recursos,
usando apenas a imaginação. Aulas tipo MacGyver, sabe? “Agora eu pego essa ripa
de madeira de demolição, junto com esses potinhos de Yakult usados, coloco
esses dois pregadores de roupa, mais essa corda de sisal… Pronto! Eis um
laboratório para o ensino de química para o ensino médio!''
É possível ter boas aula
sem estrutura? Claro. Há professores que viajam o mundo com seus alunos embaixo
da copa de uma mangueira, com uma lousa e pouco giz. Por vezes, isso faz parte
do processo pedagógico. Em outras, contudo, é o que foi possível. Nesse caso,
transformar o jeitinho provisório em padrão consolidado é o ó do borogodó.
Pois, como sempre é bom
lembrar, quem gosta da estética da miséria é intelectual, porque são
preferíveis escolas que contem com um mínimo de estrutura. Para conectar o
aluno ao conhecimento. Para guiá-lo além dos limites de sua comunidade.
“Ah, mas Sakamoto, seu
chato! Eu achei linda a história da Ritinha, do Povoado To Decastigo, que passa
a madrugada encadernando sacos de papel de pão e apontando lascas de carvão,
que servirão de lápis, para seus alunos da manhã seguinte. Ela sozinha dá aula
para 176 pessoas de uma vez só, do primeiro ao nono ano, e perdeu peso porque
passa seu almoço para o Joãozinho, um dos alunos mais necessitados. Ritinha,
deu um depoimento emocionante ao Globo Repórter, dia desses, dizendo que,
apesar da parca luz de candeeiro de óleo de rato estar acabando com sua visão,
ela romperá quantas madrugadas for necessário porque acredita que cada um deve
fazer sua parte.''
Ritinha simboliza a
construção de um discurso que joga nas costas do professor a responsabilidade
pelo sucesso ou o fracasso das políticas públicas de educação. Esqueçam o
desvio do orçamento da educação para pagamento de juros da dívida, esqueçam a
incapacidade administrativa e gerencial, o sucateamento e a falta de formação
dos profissionais, os salários vergonhosamente pequenos e planos de carreira
risíveis, a ausência de infraestrutura, de material didático, de merenda
decente, de segurança para se trabalhar. Esqueçam o fato de que 10% do PIB para
a educação está longe de sair do papel.
Joãozinho e Ritinha são
alfa e ômega, os responsáveis por tudo. Pois, como todos sabemos, o Estado não
deveria ter responsabilidade pela qualidade de vida dos cidadãos.
Vocês acham sinceramente
que “a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou''?
Acreditam que basta
trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma
educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço?
E que todas as pessoas
ricas e de posses conquistaram o que têm de forma honesta?
Acham que todas as leis
foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação?
Não se perguntam quem
fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica?
Sabem de naaaaada,
inocentes!
Como já disse aqui, uma
das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e
contestadoras que possam colocar em risco a própria estrutura política e
econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode
significar libertar ou enquadrar – inclusive libertar para subverter.
Que tipo de educação estamos oferecendo?
Que tipo de educação precisamos ter?
Uma educação de baixa
qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das
demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida
de um povo?
O Joãozinho e a Ritinha
acham que sim. Mas eu duvido.
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