Tem
aquela hora especial pouco antes do dia amanhecer, enquanto a noite
deliciosamente cochila, que sinto vontade de andar por ai.
Já
me disseram que não é uma boa hora de vagar pela insônia, hora de ladrão, roubada do sono da realidade como tantas coisas.
Como se fosse perigoso algo além de estar vivo.
Nesse
universo inventado, entre uma nota que ainda não se fez e outra que está deixando
de existir, há muita vida que escorre preguiçosa: O jornaleiro arrumando as
revistas com as manchetes que farão o dia, o pão assando o seu perfume no ar, a
circulação dos veículos carregando glóbulos vermelhos, a primeira limpeza...
São
poucos os que percebem o encanto luscofusco de fresta entreaberta.
Sou
interrompido violentamente pelo cano da arma, o metal cinzento gritando para
que passe os pertences que pertencerão a outro, em breve.
O
homem me olha com medo por traz da fúria que pretende improvisar como um músico
ruim de jazz. Seu instrumento desafinado se estendendo em círculos
concêntricos.
Os
seus lábios se movimentam em sons que quase não entendo, ordenando as
sequências aleatórias, estragando o meu momento com sua estúpida existência.
—
Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
O
pobre diabo caminhava em nossa direção com os cascos ferindo o calçamento em
staccato, a pele avermelhada e febril, os chifres apontando para algum lugar
que gostaria de estar, mas que abandonou por algum motivo há tempos.
O
maço salta da minha mão para a dele em movimento magnético, enquanto o ladino
habitante dos esgotos se encolhe como uma mola que se estendera para além do
limite.
—
Leve... leve tudo... nada disso me pertence.... leve... leve tudo, mas não me leve...
Eletrificado
em convulsivos movimentos o sujeito deixa cair a arma, o relógio arrancado ao
pulso novamente, as carteiras coletadas em becos, o casaco se seguindo a todas
as outras roupas. Nem mesmo os sapatos permaneceram em seus devidos lugares.
Como se despindo os pecados carregados pudesse santificar a sua nudez adiposa e
cinzenta, viciada diversidade.
Observo nádegas sujas se afastando rapidamente pela avenida, já ganhando traços
avermelhados para suas sombras. Todos fugimos de alguma coisa que, quando
muito, imaginamos ser nossa. Recolho o maço ao bolso com um a menos, sem me
importar em acender na boca do outro. Ele tem o seu próprio fogo.
Pego
a arma no amontoado de vidas furtadas e disparo cinco peças de chumbo
por entre a fumaça, a morte é azul metálica.
Alguns
dentes penetram-lhe na boca enquanto estranhamente o cigarro permanece intocado
nos lábios. Um sorriso a menos, talvez. Ou
algo que esperava não conseguir, obtido de forma inusitada.
Amanhã
tabloides vão estar cheios de histórias com justificativas para a tragédia inventada. Mentiras sempre vendem mais que qualquer realidade alternativa.
Estamos sempre dispostos a consumir aos bocados histórias alheias para
justificar insignificâncias próprias.
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