— Você não me conhece tão bem assim!
Foi o que ela me disse aos gritos, logo depois que
lhe soprei vida, descrevendo-a como já existia na minha imaginação. Somente
depois que me decidi falar sobre como ela seria é que fui preenchendo as
lacunas que a imaginação necessariamente cria.
A imaginação é imperfeita para contextualizar uma
ideia não realizada, normalmente fica apenas na superfície, nos contornos
gerais que darão o “tom” do que será criado. Ainda mais quando a ideia em si é
extremamente complexa.
Thaís já nasceu complexa, como um paradoxo
existencial.
Imagine uma pessoa Nerd. Dessas que tem uma
inteligência rápida acima da média, que parecem ter todas as respostas do
mundo, ou que são capazes de criar todas as respostas necessárias como se
precisassem apenas expirar o conhecimento que já haviam inspirado em um momento
qualquer.
Essa
é a parte fácil.
Fica complicado quando se dá a essa pessoa o sexo
feminino. Sim, uma mulher nerd!
Já deu para perceber como a coisa fica complexa,
quando se pensa em nerds, pensa-se logicamente em um homem com pouca habilidade
social, tímido ou introvertido, mas por isso mesmo ou como subproduto da
estrutura neuronal, com uma habilidade de aprender acima do normal.
Quem
imaginaria uma mulher tendo essas características?
Se conseguir imagina-la, provavelmente será uma
baixinha, de óculos, cara sisuda, sem nenhum atributo físico ou recurso
cosmético que lhe permita produzir um encanto adicional. Normalmente associamos
a inteligência como uma compensação da natureza para aqueles que não nasceram
belos. Quem é bonito por natureza não precisa ser inteligente e, muitas vezes,
torna-se cruel, indiferente aos danos que sua beleza causa.
Mas Thais não é assim, ela tem seus encantos
femininos preservados apesar da inteligência acima da média. Mais ainda, tem
sua sensibilidade aguçada em relação ao outro, preocupa-se com a alegria ou a
dor do próximo, tem um senso de justiça que comunga perfeitamente com sua
capacidade de ser incisiva, com as palavras, tanto no juízo que faz dos outros,
quanto na hora em que decide defender aqueles que lhe parecem carecer de ajuda.
Alguém mais imaginativo até poderia conseguir criar
essa imagem mental de Thaís, apesar dos paradoxos que parecem flutuar a sua
volta, como satélites.
Um desses paradoxos fica evidente quando nos
aprofundamos mais, mergulhamos por trás da máscara social de uma pessoa forte e
destemida, com soluções práticas (embora isso pudesse contradizer a sua
feminilidade. Mulheres não nascem para serem práticas ou nascem?), mas acima de
tudo determinada em fazer o que acredita.
Ao ultrapassar essa camada superior (e não digo isso
como um defeito, mas como uma característica) encontramos uma frágil e dócil
menininha, com seus bichinhos de pelúcia, sua esperança feliz, seu carinho
tranquilo. Encontramos também a solidão
que a envolve em tons mais escuros e percebemos imediatamente que foi a luz
que, ao abrirmos um buraco durante a nossa passagem, conseguiu penetrar até
aquele lugar habitado pela melancolia e dar algumas, não muitas, cores.
E a deusa que até então estávamos imaginando,
torna-se algo superior ao se tornar humana, reconstruindo todo o entendimento
que havia em nossas mentes ao restringi-la simplesmente a algum arquétipo
arrancado do nosso inconsciente.
Só nesse momento é que nos afeiçoamos verdadeiramente
a Thaís. Ao lhe percebermos os defeitos para além das qualidades que se esforça
em nos mostrar, mas ao contrário do que esperava isso nos encanta muito mais do
que a fria aceitação objetiva que poderia haver ao desconsiderarmos sua
fragilidade.
— Você não me conhece tão bem assim.
Repete ela, desta vez em um tom mais melancólico, um
traço de medo escapando por entre um olhar e outro, cabisbaixo, na expectativa
do que poderemos fazer ao descobrir-lhe. Sente-se nua, mesmo vestida com tantos
traços, e ao perceber que não há qualquer movimento agressivo de nossa parte (na
verdade nenhum movimento de qualquer espécie), busca forças na sua própria
construção e deixa que a vejamos por inteiro.
Ergue o olhar em desafio, aceitando que, se
conseguimos romper qualquer obstáculo até ali não seriam suas delicadas mãos
que encobririam o pudor. Igualmente nos desafia com a sua nudez e aguarda a
nossa retórica.
Ao fazer isso nos desarma de todo preconceito, todas
as possibilidades de conjeturas e entendimentos que arrastamos até aqui... e
nos vence.
— Você não me conhece tão bem assim...
E desta vez há uma certeza delicada em suas palavras.
Ela sabe!
Percebeu que mesmo tendo sido inventada por mim a
partir de alguém ou de muitos outros; mesmo tendo sido o que a desvelou de
forma dramática (talvez) para você, ainda assim ela preserva algo
incognoscível, algo misteriosamente feminino que nos acolhe, mas também nos faz
ir embora, buscar o que nem sabíamos que não possuíamos.
Com um abraço indefinido, nos coloca para fora de si,
garantindo que na passagem que produzimos continue haver a janela pela qual
olhamos, para que se possa voltar a vê-la quando ela quiser se revelar a nós. Novamente
no controle de quem é e de quem deseja ser.
É desse personagem que inventamos; que nasceu durante
o nosso olhar e refletir sobre ele, nossas descobertas; é desse ser que descobrimos
o quanto podemos dizer para nós mesmos:
— Você não me conhece tão bem assim!
Agora é Thaís que nos inventa... enquanto a ouvimos
falar de nós.
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