sexta-feira, 16 de junho de 2017

Uma Sombra Passou por Aqui – Danny Marks


          Eu sou fã de Ray Bradbury desde que li O Homem Tatuado na infância, uma edição pocket emprestada da biblioteca volante. Devolvi o livro, mas não as histórias que continuaram comigo até hoje. Li outros livros dele, com histórias até mais sombrias e fascinantes. Acho que meu demônio pessoal gosta desses contos sombrios.
           A questão é que, em muitos momentos, histórias antigas parecem sair dos livros e ganhar a realidade, fantasmas e monstros se tornam mais reais e assustadores que as imaginações, ou a generosidade dos autores, permitiram que fossem descritas. E o mundo se torna sombrio, frio e implacável.
          Tenho escrito muito sobre literatura, sobre política, sobre o mercado de nichos literários brasileiro e suas crises. Nas redes sociais recentemente comentei sobre minha decepção com mais um filme adaptado dos quadrinhos, a Mulher Maravilha, que me pareceu uma visão machista de como seria uma “mulher forte”, com estereótipos em vários níveis.
          É possível para um homem entender o Feminino. Um homem, Freud, foi quem cunhou o termo e o descreveu inicialmente em sua conferência XXIII. Escrevi sobre o termo destacando-o na obra poética de Carlos Drummond de Andrade, outro homem. Então, posso afirmar com toda convicção de que é possível para um homem entender um personagem complexo como a Mulher Maravilha, princesa das Amazonas, na ilha fictícia de Themyscira, a “Ilha Paraíso”. Por que isso não foi feito?
          Ok, não vou entrar no mérito de adaptar um personagem antigo e complexo de uma mídia HQ para outra, a tela do cinema, ainda mais quando há inúmeras controvérsias a respeito das características do personagem, mas uma coisa não pode ser deixada de lado em nenhum tipo de história, independente da mídia onde se apresenta: a coerência. Se vamos falar de uma princesa guerreira, de um lugar onde foi a única criança em séculos, governado por mulheres guerreiras, o mínimo que se pode ter como base argumentativa é um profundo conhecimento do que é o Feminino, suas fraquezas e forças. E isso foi realmente desconsiderado, na minha opinião.
          Mas, antes de me considerar definitivamente um homem velho e chato que escreve histórias e tem uma visão pessoal crítica sobre todas as coisas, tenho que dizer que, dentro do cenário global, há uma boa justificativa para coisas ruins, ou não tão boas quanto o esperado, como o filme, o mercado literário e até mesmo (por que não dizer) a política.
          O que essas coisas todas têm em comum? Ora, me perdoe se não entendeu ainda, mas tratam-se de construções da mente humana. A política é, por definição, a arte de conviver em grupos (humanos) e nasceu da necessidade de criar regras de mediação para evitar que os indivíduos se exterminassem em guerras (outra criação humana) sem fim. O mercado literário é a forma criada para propagar com rapidez e eficiência as histórias desenvolvidas a partir da realidade e ampliadas por conceitos morais e filosóficos pela lente da imaginação. As adaptações das mídias só permitem que mais pessoas tenham acesso aos conteúdos criados para orientar e divertir as pessoas.
          Portanto, por serem criações humanas, possuem toda a grandiosidade bipolar que a mente humana pode alcançar através das suas construções. Tanto o luminoso raiar da esperança e da bondade, quanto o sombrio exaltar da guerra e da crueldade. Humanos podem criar em suas mentes e realidades, tanto deuses sábios e generosos, quanto demônios inteligentes e cruéis. E isso tem o seu lugar no mundo porque são visões interpretativas da vida, que não é sábia nem generosa, ou cruel e ardilosa. A vida é apenas um fato complexo que se extingue para o indivíduo quando sua trajetória termina, mas não para os que assistem a esse fim e o temem acima de tudo.
          Recentemente vi uma crítica ao meu livro O Jogo, de que era para nerds, que era para pessoas “cabeça” e coisas do tipo. Me surpreendeu essa visão, talvez provocada pela minha própria exposição do trabalho, onde falo das elaboradas técnicas utilizadas para permitir uma experiência sem par no leitor que pode ler em diversas camadas os conteúdos que estão lá, mas se fecham realmente nos conhecimentos e vivências do leitor. Não há uma “leitura” final do livro, a história se adapta ao leitor e busca satisfaze-lo (ou seria uma péssima história) dentro do que ele almeja encontrar. Portanto, não há como errar na interpretação, ela é totalmente pessoal e válida. As técnicas elaboradas são justamente usadas para tornar a leitura fácil, divertida e eficiente.
          Aparentemente não fiz um bom trabalho nisso ou não teria uma crítica do tipo. Ou, mais provavelmente, a pessoa não quis se aventurar porque se sentiu intimidada a ler algo “complexo”. Estranho? Não, absolutamente, pelo contrário, mais comum do que se possa imaginar. Subestimamos nossa capacidade de compreensão e a ajustamos ao que acreditamos ter, não o inverso, que seria mais eficiente e verdadeiro. Reduzir ao mínimo denominador comum é uma prática que, fora do universo da matemática, se torna perigosa.
          O perigo consiste em tentar incluir a todos esquecendo que há um percurso para retornar, ou o que poderia ser enriquecedor e resolver a equação, se torna uma decadência. Imagine se as empresas de tecnologia resolvessem que deveriam fazer as coisas tão mais simples que qualquer pessoa, em qualquer idade pudesse entender. Há dois caminhos possíveis aqui.
          Em um deles, teríamos o decréscimo da tecnologia aos níveis pré-históricos, compreensíveis tanto aos que viveram e usaram essas tecnologias na sua nascente, quanto todos os outros que vieram depois. Outro seria fazer com que as pessoas aprendam ao menos o funcionamento elementar para então descobrirem as possibilidades maiores. Assim vemos idosos dominando smartphones e internet, melhor que muitos jovens, e não as pessoas se reunindo em cavernas ao redor de fogueiras enquanto alguns pintam paredes.
          Calma, não me perdi na minha argumentação. Estou apenas citando exemplos que a embasam para demonstrar que a generalização é boa, se o objetivo dela for encontrar um ponto de partida para algo melhor, ou péssima quando a colocamos como um ponto final, reducionista, que é o que tem se tornado um padrão cada vez mais estabelecido e perigoso.
          Reduzimos o nível do ensino porque nem todos alunos estão acompanhando e é preciso inclui-los. Mas não fazemos com que esses alunos inclusivos possam alcançar o seu melhor potencial, porque é mais fácil para todos se as coisas forem simplificadas. Mais fácil, porém não o melhor. Reduzimos as expectativas para atender a todos, e cada vez temos menos expectativas, porque ninguém quer se aventurar no difícil se basta o fácil. Até que não basta mais.
          Um filme para vender tem que ser bem raso, para atender a todos os públicos e conseguir maior proporção do público. Mas perde público porque as pessoas ficam entediadas e passam a não querer ir assistir filmes tolos com personagens rasos. Mas isso ajudaria um monte de gente! Gritam os defensores da inclusão. Mais pessoas poderiam assistir, entender, escrever e produzir esses filmes. Ok, para isso é que existem as classificações, os segmentos. Uma escada não é feita de um único degrau e até mesmo rampas tem que ter em sua ideia básica a de que haverá um esforço na ascensão e isso deve ser levado em consideração em seu projeto. Do contrário, teríamos que reduzir tudo ao mesmo plano, acessível a todos com facilidade.
          Quando eliminamos pela generalização a possibilidade de começar de algum lugar para chegar acima do estado anterior, extinguimos perigosamente o motor da evolução, o desafio sustentável, aquele que nos permite ser melhores e maiores do que quando iniciamos a jornada. A vida exige um crescimento antes da decadência, que virá com toda certeza, mas que produzirá um efeito benéfico nas próximas gerações. Do contrário seriamos imortais e eternos, porque o que já somos nos bastaria, no entanto, a vida nos ensina que os progressos de uma geração devem necessariamente ser superados pela geração seguinte que se apoia nos progressos anteriores para ir mais além e garantir a sobrevivência da espécie e a evolução, sob pena de decairmos até a extinção.
          Dizer que todos os políticos são iguais, é negar que haja uma possibilidade de progresso, que a corrupção é imbatível e estamos todos fadados a morrer em uma guerra bárbara que se torna inevitável, porque não há políticos capazes de mediar os conflitos. Dizer que o mercado literário tem que atender a todos de uma forma igual é negar ao público algo melhor, apresentar como iguais tanto os autores que se especializam no seu trabalho, com os que apenas sabem juntar palavras e convencer as pessoas de que escrevem.
          Acredito que se Ray Bradbury, entre outros gênios da literatura mundial, tivessem nascido hoje, jamais conseguiriam o sucesso, porque são difíceis demais para entender, não tinham público, e não teriam porque ninguém falaria deles para não ofender os que não conseguiam compreender a profundidade dos seus textos. Reduziríamos os mercados de nichos ao grupo em torno da fogueira, e adaptaríamos as histórias ao grupo, como bardos da idade média.
          Isso até que uma guerra global, provocada por interesses particulares, reduzisse a civilização a um nível geral de entendimento: o de que somos todos animais selvagens com uma capa civilizatória que se baseia na sobrevivência pessoal e apenas nisso. E quando o último homem tombasse, poderíamos retornar ao pó comum com a certeza de que fomos apenas uma sombra que teria passado por aqui sem deixar qualquer rastro ou lastro.

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