Eu sou fã de Ray Bradbury desde que li O Homem Tatuado na
infância, uma edição pocket emprestada da biblioteca volante. Devolvi o livro,
mas não as histórias que continuaram comigo até hoje. Li outros livros dele,
com histórias até mais sombrias e fascinantes. Acho que meu demônio pessoal
gosta desses contos sombrios.
A questão é que, em
muitos momentos, histórias antigas parecem sair dos livros e ganhar a
realidade, fantasmas e monstros se tornam mais reais e assustadores que as
imaginações, ou a generosidade dos autores, permitiram que fossem descritas. E
o mundo se torna sombrio, frio e implacável.
Tenho escrito muito sobre literatura, sobre política, sobre
o mercado de nichos literários brasileiro e suas crises. Nas redes sociais
recentemente comentei sobre minha decepção com mais um filme adaptado dos
quadrinhos, a Mulher Maravilha, que me pareceu uma visão machista de como seria
uma “mulher forte”, com estereótipos em vários níveis.
É possível para um homem entender o Feminino. Um homem, Freud,
foi quem cunhou o termo e o descreveu inicialmente em sua conferência XXIII. Escrevi
sobre o termo destacando-o na obra poética de Carlos Drummond de Andrade, outro
homem. Então, posso afirmar com toda convicção de que é possível para um homem
entender um personagem complexo como a Mulher Maravilha, princesa das Amazonas,
na ilha fictícia de Themyscira, a “Ilha Paraíso”. Por que isso não foi feito?
Ok, não vou entrar no mérito de adaptar um personagem
antigo e complexo de uma mídia HQ para outra, a tela do cinema, ainda mais
quando há inúmeras controvérsias a respeito das características do personagem,
mas uma coisa não pode ser deixada de lado em nenhum tipo de história,
independente da mídia onde se apresenta: a coerência. Se vamos falar de uma
princesa guerreira, de um lugar onde foi a única criança em séculos, governado
por mulheres guerreiras, o mínimo que se pode ter como base argumentativa é um
profundo conhecimento do que é o Feminino, suas fraquezas e forças. E isso foi
realmente desconsiderado, na minha opinião.
Mas, antes de me considerar definitivamente um homem velho
e chato que escreve histórias e tem uma visão pessoal crítica sobre todas as
coisas, tenho que dizer que, dentro do cenário global, há uma boa justificativa
para coisas ruins, ou não tão boas quanto o esperado, como o filme, o mercado
literário e até mesmo (por que não dizer) a política.
O que essas coisas todas têm em comum? Ora, me perdoe se não
entendeu ainda, mas tratam-se de construções da mente humana. A política é, por
definição, a arte de conviver em grupos (humanos) e nasceu da necessidade de
criar regras de mediação para evitar que os indivíduos se exterminassem em
guerras (outra criação humana) sem fim. O mercado literário é a forma criada
para propagar com rapidez e eficiência as histórias desenvolvidas a partir da
realidade e ampliadas por conceitos morais e filosóficos pela lente da
imaginação. As adaptações das mídias só permitem que mais pessoas tenham acesso
aos conteúdos criados para orientar e divertir as pessoas.
Portanto, por serem criações humanas, possuem toda a
grandiosidade bipolar que a mente humana pode alcançar através das suas
construções. Tanto o luminoso raiar da esperança e da bondade, quanto o sombrio
exaltar da guerra e da crueldade. Humanos podem criar em suas mentes e
realidades, tanto deuses sábios e generosos, quanto demônios inteligentes e cruéis.
E isso tem o seu lugar no mundo porque são visões interpretativas da vida, que
não é sábia nem generosa, ou cruel e ardilosa. A vida é apenas um fato complexo
que se extingue para o indivíduo quando sua trajetória termina, mas não para os
que assistem a esse fim e o temem acima de tudo.
Recentemente vi uma crítica ao meu livro O Jogo, de que era
para nerds, que era para pessoas “cabeça” e coisas do tipo. Me surpreendeu essa
visão, talvez provocada pela minha própria exposição do trabalho, onde falo das
elaboradas técnicas utilizadas para permitir uma experiência sem par no leitor
que pode ler em diversas camadas os conteúdos que estão lá, mas se fecham
realmente nos conhecimentos e vivências do leitor. Não há uma “leitura” final
do livro, a história se adapta ao leitor e busca satisfaze-lo (ou seria uma
péssima história) dentro do que ele almeja encontrar. Portanto, não há como
errar na interpretação, ela é totalmente pessoal e válida. As técnicas
elaboradas são justamente usadas para tornar a leitura fácil, divertida e
eficiente.
Aparentemente não fiz um bom trabalho nisso ou não teria
uma crítica do tipo. Ou, mais provavelmente, a pessoa não quis se aventurar
porque se sentiu intimidada a ler algo “complexo”. Estranho? Não,
absolutamente, pelo contrário, mais comum do que se possa imaginar.
Subestimamos nossa capacidade de compreensão e a ajustamos ao que acreditamos
ter, não o inverso, que seria mais eficiente e verdadeiro. Reduzir ao mínimo
denominador comum é uma prática que, fora do universo da matemática, se torna
perigosa.
O perigo consiste em tentar incluir a todos esquecendo que
há um percurso para retornar, ou o que poderia ser enriquecedor e resolver a
equação, se torna uma decadência. Imagine se as empresas de tecnologia
resolvessem que deveriam fazer as coisas tão mais simples que qualquer pessoa,
em qualquer idade pudesse entender. Há dois caminhos possíveis aqui.
Em um deles, teríamos o decréscimo da tecnologia aos níveis
pré-históricos, compreensíveis tanto aos que viveram e usaram essas tecnologias
na sua nascente, quanto todos os outros que vieram depois. Outro seria fazer
com que as pessoas aprendam ao menos o funcionamento elementar para então
descobrirem as possibilidades maiores. Assim vemos idosos dominando smartphones
e internet, melhor que muitos jovens, e não as pessoas se reunindo em cavernas
ao redor de fogueiras enquanto alguns pintam paredes.
Calma, não me perdi na minha argumentação. Estou apenas
citando exemplos que a embasam para demonstrar que a generalização é boa, se o
objetivo dela for encontrar um ponto de partida para algo melhor, ou péssima
quando a colocamos como um ponto final, reducionista, que é o que tem se
tornado um padrão cada vez mais estabelecido e perigoso.
Reduzimos o nível do ensino porque nem todos alunos estão
acompanhando e é preciso inclui-los. Mas não fazemos com que esses alunos
inclusivos possam alcançar o seu melhor potencial, porque é mais fácil para
todos se as coisas forem simplificadas. Mais fácil, porém não o melhor.
Reduzimos as expectativas para atender a todos, e cada vez temos menos
expectativas, porque ninguém quer se aventurar no difícil se basta o fácil. Até
que não basta mais.
Um filme para vender tem que ser bem raso, para atender a todos
os públicos e conseguir maior proporção do público. Mas perde público porque as
pessoas ficam entediadas e passam a não querer ir assistir filmes tolos com
personagens rasos. Mas isso ajudaria um monte de gente! Gritam os defensores da
inclusão. Mais pessoas poderiam assistir, entender, escrever e produzir esses
filmes. Ok, para isso é que existem as classificações, os segmentos. Uma escada
não é feita de um único degrau e até mesmo rampas tem que ter em sua ideia
básica a de que haverá um esforço na ascensão e isso deve ser levado em
consideração em seu projeto. Do contrário, teríamos que reduzir tudo ao mesmo
plano, acessível a todos com facilidade.
Quando eliminamos pela generalização a possibilidade de
começar de algum lugar para chegar acima do estado anterior, extinguimos
perigosamente o motor da evolução, o desafio sustentável, aquele que nos
permite ser melhores e maiores do que quando iniciamos a jornada. A vida exige
um crescimento antes da decadência, que virá com toda certeza, mas que
produzirá um efeito benéfico nas próximas gerações. Do contrário seriamos
imortais e eternos, porque o que já somos nos bastaria, no entanto, a vida nos
ensina que os progressos de uma geração devem necessariamente ser superados pela
geração seguinte que se apoia nos progressos anteriores para ir mais além e
garantir a sobrevivência da espécie e a evolução, sob pena de decairmos até a
extinção.
Dizer que todos os políticos são iguais, é negar que haja
uma possibilidade de progresso, que a corrupção é imbatível e estamos todos
fadados a morrer em uma guerra bárbara que se torna inevitável, porque não há
políticos capazes de mediar os conflitos. Dizer que o mercado literário tem que
atender a todos de uma forma igual é negar ao público algo melhor, apresentar
como iguais tanto os autores que se especializam no seu trabalho, com os que
apenas sabem juntar palavras e convencer as pessoas de que escrevem.
Acredito que se Ray Bradbury, entre outros gênios da literatura mundial, tivessem nascido hoje, jamais conseguiriam o sucesso, porque são difíceis demais para entender, não tinham público, e não teriam porque ninguém falaria deles para não ofender os que não conseguiam compreender a profundidade dos seus textos. Reduziríamos os mercados de nichos ao grupo em torno da fogueira, e adaptaríamos as histórias ao grupo, como bardos da idade média.
Isso até que uma guerra global, provocada por interesses
particulares, reduzisse a civilização a um nível geral de entendimento: o de
que somos todos animais selvagens com uma capa civilizatória que se baseia na
sobrevivência pessoal e apenas nisso. E quando o último homem tombasse, poderíamos
retornar ao pó comum com a certeza de que fomos apenas uma sombra que teria
passado por aqui sem deixar qualquer rastro ou lastro.Acredito que se Ray Bradbury, entre outros gênios da literatura mundial, tivessem nascido hoje, jamais conseguiriam o sucesso, porque são difíceis demais para entender, não tinham público, e não teriam porque ninguém falaria deles para não ofender os que não conseguiam compreender a profundidade dos seus textos. Reduziríamos os mercados de nichos ao grupo em torno da fogueira, e adaptaríamos as histórias ao grupo, como bardos da idade média.
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