O Ser peludo colocou delicadamente a
pequena flauta feita de osso, que sempre o acompanhara, no oco da arvore que
esculpira cuidadosamente para armazenar os seus tesouros. Sentiu a terra tremer
mais violentamente e apressou-se. Colocou o couro onde havia desenhado por
longo tempo e cortou com a faca de pedra um tufo comprido do próprio cabelo
para colocar junto aos outros objetos antes de cobrir a entrada com uma grossa
camada protetora de lama e folhas.
Sentiu a garganta arder e caiu cobrindo
com o próprio corpo o artefato que criara. Quando o rio de rocha derretida e
cinzas cobriu a paisagem já não estava mais em seu corpo.
(....)
A mulher ajeitou o dispositivo leitor na
caixa metálica ao lado do sintetizador-modulador. As placas com as amostras de
tecido cristalizado já estavam nos devidos receptáculos. Fechou o lacre à vácuo
e já ia acionar o dispositivo que colocaria a caixa no centro protetor da
coluna de concreto com enrijecimento nuclear, mas mudou de idéia. Rapidamente
abriu a caixa e adicionou a pequena flauta de osso que mudara completamente a
sua concepção sobre tantas coisas. O Alarme soou mais forte, ela apressou-se a
concluir sua tarefa imbuída de uma certeza que poucos da sua espécie ainda
conservavam.
Seu olhar recaiu com reverência sobre a
estranha pedra oca cortada à laser, em que havia consumido boa parte da sua
vida e que lhe trouxera tantas respostas e muito mais perguntas. O couro que
havia dentro já se misturara em um amalgama com os pelos, apenas a flauta
petrificada estranhamente havia sobrevivido. Ainda assim trouxera uma nova
visão sobre muitas coisas, como um sinal de que...
Suas reflexões foram interrompidas pelos
cogumelos atômicos que alcançaram as nuvens dissolvendo o ar com línguas de
chamas vorazes.
(....)
O Ser estendeu os três dedos com ventosas
e desativou o dispositivo eletromagnético que o protegia e observou que todos
já estavam recolhidos no êxtase que tornaria os momentos finais uma transição
pacífica. Voltou ao seu laboratório e abriu a cápsula em que havia trabalhado
desde que suas observações haviam apontado o futuro. Decepou o dedo longo da
sua mão esquerda com cuidado, e observou que seu corpo já iniciara a
reconstrução da parte faltante, se tivesse tempo logo estaria novamente
perfeito para os padrões implantados nas nanomáquinas que cuidavam da sua saúde.
Sorriu ao pensar que haveria tempo suficiente, ou não haveria mais nada.
Cuidadosamente trabalhou no dedo
amputado usando o cubo transfigurador e o sonorizador molecular reproduzindo o
objeto que vira em uma visão ainda na infância e que não conseguira explicar, e
que somente agora compreendia de alguma forma o seu objetivo. O objeto
esculpido com precisão pelas maquinas era algo estranho aos seus olhos.
Colocou-o na boca sem lábios e soprou com força produzindo um som agudo. Tentou
novamente desta vez com menos força e deixando um dos furos superiores
descobertos. O som foi incrivelmente perfeito, tocou-o como nada antes havia
feito. Manipulou seguindo uma escala matemática o som e a sequência de furos
abertos ou tampados pelos dedos e se emocionou com o resultado. Era isso que
ouvira na sua infância e não lembrava. Não apenas o objeto, também o som lhe
viera na visão, mas de alguma forma não lembrava.
Apressou-se em colocar o objeto ao lado
do cubo transfigurador e do sonorizador molecular orgânico nos compartimentos
necessários completando o equipamento. O novo dedo já dava sinais de
regeneração, como um sinal de que as coisas deveriam ser feitas daquela forma,
contrariando aqueles que já se recolhiam em êxtase. Acomodou os objetos na
capsula e acionou a catapulta quântica.
Quando o halo Solar devorou o planeta, uma
chuva de íons colidiu com a aura protetora da cápsula que tremeu ligeiramente abrindo
uma microfissura na sua carcaça e desviando o seu ângulo de entrada no buraco
de minhoca que fora criado pelo poderoso mecanismo da catapulta quântica que se
desfez junto com tudo a volta assim que a capsula penetrou nele.
(....)
O objeto apareceu quase fora da
influência gravitacional do terceiro planeta. Um pouco além e teria seguido
viagem em direção ao sol onde seria consumido completamente. Mas o pequeno
impulso que ainda conservava fez com que fosse capturado pelos campos
gravitacionais e em pouco tempo estava sendo projetado como uma bola de fogo na
superfície do planeta.
A fissura que tinha na carcaça se
ampliou e pouco antes de colidir com o solo as peças que a capsula continha
foram lançadas para fora espalhando-se ao longo do breve percurso antes que o
poderoso impacto reduzisse o involucro a uma massa disforme de material
alienígena.
O dispositivo foi acionado ao perceber
os elementos químicos necessários no ar e fez uma varredura nas suas funções
promovendo os reparos necessários para que concluísse a tarefa que lhe fora
destinada. Procurou no entorno, dentro do limite de seu raio de ação, o objeto
que lhe permitiria a matriz necessária para a reconstrução. Não encontrou a
referência que necessitava, embora houvesse material genético suficiente para
uma adaptação. Registrou automaticamente a posição das estrelas e calculou o seu
percurso espaço-tempo percebendo que houvera um significativo desvio angular
que o levara além do período objetivado. Recalculou as possibilidades de
sucesso e recriou o planejamento necessário para a execução. Começou a
trabalhar com as criaturas que se aproximavam implantando uma codificação
genética que poderia atingir o necessário estágio evolutivo para que pudesse
dar continuidade a sua programação.
Quando conseguira os progressos
necessários para a primeira fase, colocou-se em estado de hibernação e protegeu-se
com um campo protetor. A paisagem mudou e a cada ano que se passava afundava
ainda mais no solo, distanciando-se da luz que lhe reabastecia as baterias.
(....)
O ser peludo se aproximou furtivamente
do animal que pastava, estava quase pronto para abatê-lo quando seu pé foi
espetado por um objeto pontudo fazendo-o urrar de dor. O animal que pastava
fugiu e o ser peludo ficou furioso. Pôs-se a cavar para desenterrar a coisa que
o fizera perder a comida e sentiu um estranhamento ao perceber que se tratava dos
ossos de um dedo de alguma criatura. Limpou a coisa batendo a terra e soprando
para tirar os restos que ficavam aderidos. Então ouviu um som como nunca ouvira
antes. Soprou de novo e um novo som aconteceu. Notou que havia buracos que
quando tampados mudavam o som que era produzido quando soprava no miolo oco.
Esqueceu da fome e da dor, brincando com aquela coisa. Em pouco tempo já
testara várias possibilidades de som, combinando assopros com furos tampados e
abertos. Voltou para o acampamento com a certeza de que se tornara alguém
importante, fora tocado por algo que mais ninguém conhecia ainda. No seu DNA uma
sequência determinada de genes foi acionada pelo sutil vibrar do som daquele
objeto, disparando uma corrida contra o tempo.
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