Para quem ainda não assistiu ao filme Matrix, fique
preparado, contém spoilers. É inevitável porque vou fazer referência a um
personagem da trilogia cinematográfica como ponto de partida, porque se torna
um arquétipo da modernidade. Para entender melhor é necessário dizer que a
Matrix é um mundo virtual onde os humanos cultivados e escravizados por
máquinas (sistemas), vivem suas vidas em um sonho eterno (ideologias), enquanto
suas energias vitais são absorvidas para alimentar as máquinas (sistemas) que
os aprisionam.
Há muitas críticas possíveis a essa forma de roteirização,
devido à lógica que ela envolve em seu nível primário, mas isso não arranha a
trilogia de filmes porque a base em que se apoia segue o padrão de ação e
filosofia existencial que acaba por encantar boa parte do público de uma forma
ou de outra. Então vamos nos fixar nesta questão mais filosófica: A Utopia Humana
contra a Matrix.
Cypher é um dos humanos resgatados da prisão das máquinas
por um artifício usado dentro da virtualidade da Matrix. Ser resgatado da
escravidão é ser lançado no horrível mundo dominado por máquinas assassinas que
vão caça-lo e mata-lo implacavelmente, enquanto tenta derrubar o sistema de
dentro e de fora. É uma guerra dupla, constante, com resultados duvidosos, para
a qual não se está preparado, e da qual não há retorno.
Ou não havia, porque Cypher consegue fazer um acordo com o
seu captor, decide trair os guerrilheiros e voltar a ter uma vida de ilusão,
reinserido no sistema até a morte, vivendo em um mundo imaginário com vantagens
que não teria na sua vida anterior de escravo, ou na sua vida de guerrilheiro
liberto. E por isso é classificado como um dos vilões traidores da humanidade.
Uma outra questão interessante que segue na mesma linha é
dada pelo Arquiteto, uma entidade-programa que vive à parte da Matrix e é
responsável por criar a realidade virtual onde os humanos são cultivados até a
morte natural. O arquiteto revela que as primeiras versões da Matrix eram
projetadas para serem verdadeiros paraísos, as utopias humanas realizadas na
virtualidade. Mas não deram certo, os humanos as rejeitavam como real, não
aceitavam que a realidade pudesse ser tranquila, benéfica a todos. E, segundo o
Arquiteto, colheitas inteiras (de humanos) foram perdidas, até que se inseriu
um mundo em que as diferenças e os desafios criassem um estado constante de
conflito.
Como é possível juntar essas duas coisas? O ser humano
rejeita um sonho bom, mesmo quando lhe parece real, só porque todos estão bem,
basicamente no mesmo nível que si mesmo? Cypher decide voltar a Matrix desde
que tenha uma vida boa, mesmo sabendo que será um escravo até a morte, mas não
quer lembrar de nada do que viu na sua liberdade, quer esquecer de que um dia
foi livre, e voltar para um mundo onde as diferenças e conflitos existem, desde
que ele ocupe um lugar acima dos outros.
Essas duas questões se unem através do paradigma de que a
competitividade humana faz parte de sua essência e jamais aceitaria uma total
igualdade. Não estaríamos programados pela nossa própria essência humana a
aceitar um mundo em paz, onde a ordem absoluta desse a todos os bens que
desejavam. Necessitamos lutar para estar acima dos outros, necessitamos nos
sentir superiores, necessitamos nos sentir privilegiados, para a vida fazer
sentido?
Isso poderia explicar o motivo de por que inúmeras pessoas
desistem dos seus avanços nas lutas sociais, e passam a apoiar os algozes que
vão restringir os direitos. A identificação com o carrasco, na chamada “Síndrome
de Estocolmo”, estaria impressa na nossa essência. Amamos o predador que nos
abate, porque desejamos no mais íntimo, SER o predador. Aceitamos ser as presas
porque desejamos sempre abater nossas próprias presas. Essa seria a raiz animal
da nossa essência que nem mesmo o verniz cultural conseguiria vencer. Mas será
que isso é verdadeiro?
Será que somos programados pela natureza a viver de forma
hierárquica predatória, almejando subir na escala às custas de nossas vítimas,
e não mudaremos nunca isso? Estaria a escolha de Cypher determinada em nossos
genes? Seria o rebelde guerrilheiro o verdadeiro Messias da Humanidade, dizendo
para todos que devemos sim buscar o topo à custa de tudo e de todos que se
opuserem a isso, sem limites morais para alcançar o sucesso? Como ter certeza? Teríamos
que verdadeiramente criar uma Matrix, onde um mundo perfeito, uma Utopia, fosse
criada e vivenciada pelos seus integrantes. Mas tanto na filosofia, quanto na
literatura, as utopias estão fadadas ao fracasso. Sempre há uma “serpente”
disposta a nos banir do paraíso e nos lançar na dura e cruel luta pela
sobrevivência.
Em todos os milênios de nossa cultura, não conseguimos
conceber uma utopia que funcionasse de verdade, não conseguimos aceitar a
igualdade de direitos, a capacidade de existir sem que isso implique em tirar
do outro algo a mais para nós, que talvez nem precisemos, mas que faremos
porque “é a ordem natural das coisas”. Porém, um fator se levanta contra esse
paradigma. A cultura é herdada tanto quanto os genes que nos formam. A nossa
mente é formada pela sociedade que ajudamos a formar em conceitos e
preconceitos.
Dessa forma, sempre teremos como um ideal o paraíso, a
utopia que será alcançada quando nos tornarmos melhores do que somos, mas que
precisará ser conquistada através da eterna luta contra nós mesmos. Por isso
sempre teremos aqueles que demonstram superiores capacidades de deixar os
interesses pessoais pelo bem-estar de todos, sofrendo as penas por ir contra o
sistema, que é praticamente uma máquina implacável a destruir os opositores e
corromper os fracos. Nos almejamos Salvadores porque não nos sentimos capazes
de alcançar sozinhos esse ideal, e repudiamos os Cyphers como traidores da
humanidade embora, em nosso íntimo, desconfiamos que poderíamos facilmente
fazer a mesma escolha, se nos fosse dada oportunidade.
É por esse motivo que lançamos as utopias em outro mundo,
após a morte, depois de uma purificação do Ser e livre de sua parte animal,
mortal e resgatado em sua essência divina e imortal. Por isso que nosso repudio
aos que se unem ao sistema opressor se dá de forma raivosa, fruto do medo que
temos de que nos seja oferecida a mesma oportunidade e a aceitemos. Fruto do
medo de que, afinal, alguém está melhor que nós, a nossa custa. E isso, como
animais predadores, não podemos aceitar.
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