Posso lhe contar uma história? Será algo criado
especialmente para você e lhe fará refletir de uma forma muito simples e
direcionada sobre questões complexas que todos estão discutindo no momento.
Como vou fazer isso? Na verdade, de uma forma bem simples, usando todas as
informações que forneceu voluntariamente através das suas redes sociais,
compiladas através de um algoritmo que me fornece um mapa do seu perfil
psicológico e os pontos em que posso atuar influenciando as suas opiniões e
comportamentos, mas relaxe, você não vai nem perceber. Mais provavelmente vai
acreditar que todas as suas constatações são apenas suas e que está muito bem
fundamentado na sua opinião a respeito de um assunto que, anteriormente, não
estaria tão atento assim, mas para o qual foi despertado pelo insight que teve
de sua importância, tornando-se um militante da temática apresentada.
Parece coisa de ficção científica, não é mesmo? Aquelas
coisas inventadas por escritores com imaginação fértil que servem para nos
assustar de uma forma agradável e nos fazer sair da nossa realidade e dar uma
relaxada em um mundo alternativo que, por pior que possa ser, não vai nos
afetar de verdade. Afinal a verdade é algo concreto e sólido, consistente e
facilmente verificável, que sempre dará um jeito de emergir das sombras da
mentira e iluminar a todos com seu poder de diluir os conflitos e nos conduzir
no rumo do Bem Maior, com a ajuda de Deus e o apoio dos Homens e da Ciência.
Tem sido assim desde os primórdios da nossa civilização, quando os pensadores e
filósofos se debruçaram sobre as questões universais, entre elas a busca da
verdade e de como alcança-la. E essa busca tem se mantido até hoje, com
resultados diversos.
A Filosofia, mãe de todas as ciências, chegou a ter cinco
formas de descrever a verdade. A verdade como correspondência, originária em
Platão, diz que a verdade é o que garante a realidade, ou seja, o objeto falado
(discurso) é apresentado como ele é. Já o empirismo, a metafísica e a teologia
apresentam a verdade como uma concepção de revelação, ou seja, algo que se
revelou ao homem por meio das sensações ou pela intervenção de um Ser Supremo
que evidência a essência das coisas. Platão e Santo Agostinho retornam com uma
outra perspectiva em que a verdade deve se apresentar no sentido da
conformidade e adequar-se a uma regra ou conceito, para ser verdadeira. Já no
movimento idealista inglês, por volta da metade do século XIX, o filósofo
Bradley alega que “o princípio de que o que é contraditório, não pode ser real”,
portanto “a verdade é a coerência perfeita”, e assim apresenta-se a verdade
como Coerência. Mas há aqueles mais pragmáticos, como Nietzche, que acreditam
que a verdade deve ser funcional, ter uma utilidade. Para ele “Verdadeiro não
significa em geral senão o que é apto à conservação da humanidade. O que me
deixa sem vida quando acredito nele não é a verdade para mim, é uma relação
arbitrária e ilegítima do meu ser com as coisas externas”. Portanto, tudo o que
não colabora para a conservação do bem para toda a humanidade, poderíamos dizer
que é verdade?
Mas as coisas complicam de verdade, com o perdão do
trocadilho, quando a tecnologia recria a realidade em uma forma diferente, seja
pela ampliação dos sentidos, seja pela virtualização do que é real, criando uma
realidade alternativa sensível à nossa interferência e interação, ampliando e
torcendo todos os conceitos de realidade e de verdade que se poderia imaginar
ou intuir. Como então buscar uma base razoavelmente sólida e confiável,
verificável em seus efeitos sob todos os aspectos práticos, passível de ser
reproduzida e que mantenha uma coerência com as revelações que forem produzidas
a partir dela ou nela em si mesma? Surge então a perspectiva de que os fatos
não mentem, e levantados os fatos e alinhados de forma correta e coerente
teremos, por fim, a revelação da verdade de forma incontestável. Só que não é
bem assim. Platão também foi o precursor da análise discursiva que investiga os
fatos através de técnicas de desconstrução dialética que revelam as suas
estruturas elementares e as intencionalidades por trás dos discursos. Ou seja,
os discursos são capazes de alinhar os fatos de forma lógica e coerente,
revelando uma verdade particular, mas também podem ser usados para selecionar e
alinhar fatos de forma a produzir uma verdade alternativa que apenas se parece
com a realidade, embora seja consistente de alguma forma com as
intencionalidades que lhe foram impressas e sustentada pela verificação dos
fatos de forma individualizada e parcial.
Uma verdade alternativa não é uma mentira, como não é uma
mentira um mundo virtual, ou o que é dito em uma rede social, ou a alucinação
de um psicótico, porque produz um efeito significativo e concreto naqueles que
acreditam nas revelações que traz gerando, por consequência, outras verdades
irrefutáveis e não alternativas. Quando a tecnologia permitiu que diversas
realidades, concretas ou construídas, inundasse o paradigmático mundo da
virtualidade recriando e manipulando narrativas através de um realinhamento de
fatos comprováveis que justificariam, de certa forma, as conclusões
apresentadas pelas verdades alternativas e flexíveis, criou-se uma crise
conceitual do que seria, afinal, uma verdade. Na atualidade vemos os efeitos
significativos dessas verdades alternativas construídas com base em fatos
fornecidos de forma espontânea ou não, haja vista a ação direcionada de hackers
que invadem as privacidades em busca de fatos ocultos para compor as narrativas
que lhes servem, temos cada vez menos confiança na verdade como uma coisa
libertadora, como até então era vista, grosso modo.
A verdade líquida dos tempos tecnológicos, nos obriga a
repensar as bases sólidas em que se apoiava a concepção de verdade e nos cobra
muito mais atenção e flexibilidade na forma de lidar com os conceitos
fundamentais da realidade. A realidade, bem como a verdade, tornou-se relativa
e é preciso aprender a lidar com essa relatividade de forma eficiente, usando
os conceitos padrões e estabelecidos como ponto de partida, não como um fim em
si mesmo. A busca pela verdade começa quando buscamos o ponto de partida para
iniciar a jornada, demolindo padrões e limitações anteriormente dados como
verdadeiros. Embora seja um terreno pantanoso devido à nossa inexperiência em
lidar com ele, pode se tornar um terreno fértil para a construção de uma
sociedade melhor, mais líquida em seus conceitos. Podemos repensar a
sexualidade, os papeis sociais, as responsabilidades individuais, a ética, a
moral, etc, incluindo a pluralidade como parte da verdade e não como uma
aberração que foge ao que havíamos definido como normalidade.
Mas é claro que para que o pântano se torne fértil, é
preciso também levar em consideração os seus perigos e armadilhas, sua função
transformadora que recolhe e transforma o lixo, digerindo-o e tornando-o uma
reserva vital importante para a existência. Assim também a verdade líquida deve
ser capaz de absorver todo o lixo produzido pelo radicalismo e separatismo e
recicla-lo em conceitos mais eficientes e vivos, que preservem o que há de bom
e decomponham o que há de ruim, obrigando a todos nós, que navegamos por sua
diversidade estranha e sombria, a lidar com o inusitado para encontrar as
belezas que produz, evitando as armadilhas pelo conhecimento dos seus
mecanismos necessários. Não é negando a verdade líquida dos tempos de revolução
tecnológica que poderemos aprender a lidar com ela, e sim mergulhando em seus
mistérios e descobrindo os seus tesouros e possibilidades de forma tão real
quanto descobrimos suas armadilhas e perigos. Só assim poderemos sobreviver
como uma sociedade e construir um futuro cheio de narrativas, reais ou
imaginárias, que nos atenda em nossos mais íntimos desejos e nos torne
melhores.
E então, posso lhe contar uma história?
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