O elemento mais fundamental, e muitas vezes o menos
considerado na análise ou na construção, de uma narrativa é o Ponto de Vista do
Autor. Consideremos que quando um autor produz a sua obra, parte de si mesmo
passa a impregnar a mesma. Sua visão de mundo, seus valores, sua construção
psicológica e idealização dos personagens e cenas, seu desejo de desvelar,
revelar ou encobrir verdades, etc.
Algo como na mecânica quântica, onde a simples
observação do fenômeno, altera o seu resultado, ocorre na leitura e na produção
textual de autoria. O ponto de vista do autor, pode alterar significativamente
a trama a ser elaborada, pode fornecer pistas ou ocultar eventos, pode impor
ritmos, condicionar ideias, criar interpretações e, até mesmo, originar uma
narrativa extratexto, que se fecha no leitor e não na observação direta das
palavras narradas.
É preciso considerar também que o autor, embora
presente na sua obra, não é a pessoa real, imediata, que a produziu. Ele se
transforma em uma construção própria de si mesmo, transposta diretamente ou
indiretamente para o texto através da criação do Eu-Lírico, que pode ou não
estar diretamente envolvido com os fatos narrados, mas que se presentifica
sempre na “voz” narrativa intermediando a real personalidade do autor e a
Personificação criada para ser o narrador.
Portanto é fundamental que se dedique alguns momentos
a análise desse elemento narrativo para que a produção ou análise seja o mais
correta possível, desvelando não apenas a trama narrada, mas também o autor que
está por trás dessa narrativa.
Quando se fala em Ponto de Vista, considera-se o
elemento da narração que compreende a perspectiva através da qual se conta a
história. Basicamente é a posição da qual o narrador articula a narrativa.
Embora existam diferentes possibilidades de Ponto de Vista em uma narrativa, e
até mesmo algumas intersecções e entrelaçamentos entre eles, considera-se dois
pontos de vista como fundamentais: O narrador-observador e o
narrador-personagem.
Narrador-Observador
é aquele que conta a história através de uma perspectiva externa da história,
não se confunde com os personagens. É aquele que conta o que foi observado por
ele, fora dele, portanto possui o foco narrativo predominantemente em terceira
pessoa (de quem se fala). Pode ser dividido em duas formas padrão:
NARRADOR-OBSERVADOR ONISCIENTE – que, como o nome já
diz, tem a capacidade de saber tudo sobre o enredo, os personagens e seus
pensamentos e sentimentos, e sobre o enredo. Essa onisciência pode se estender
a todos os personagens ou se limitar apenas a um na história. Sua principal
função é revelar ao leitor fatos ou interpretações que de outra forma ficariam
complexas demais para serem desenvolvidas na narrativa. Apesar disso, por
manter sempre o foco unilateral do Observador, pode, ao mesmo tempo que revela
fatos obscuros, encobrir outros, condicionando o olhar do leitor, dirigindo as
suas interpretações e descobertas.
NARRADOR-OBSERVADOR CÂMERA – Neste aspecto o narrador
não tem ciência do que se passa nas mentes dos personagens da história, mas
conhece qualquer fato sobre o enredo, em qualquer tempo e lugar da narrativa,
desde que não sejam informações que sejam intimas da psique dos personagens.
Sua principal função é desvelar para o leitor fatos que estão ocorrendo de
forma simultânea, paralela, ou em qualquer sequência anterior ou posterior na
narrativa, antecipando ou resgatando informações que podem alterar, para o
leitor, a sua interpretação do que está sendo narrado. Oferece, desta forma,
uma maior liberdade interpretativa para o leitor dos fatos que está
acompanhando, sem limita-lo a um evento em particular, mas dando um panorama
mais amplo e complexo. Porém, esse artifício pode ser utilizado pelo autor para
surpreender o leitor ao revelar eventos que questionam a sua interpretação
inicial, ou ampliam ainda mais o seu envolvimento com os personagens.
Narrador-Personagem
– é aquele que conta a história através de uma perspectiva interna, isto é,
de alguma forma ele participa do enredo sendo personagem da própria narrativa,
portanto usa a primeira pessoa (aquele que fala) para contar os eventos. Usa-se
a classificação de:
NARRADOR-PERSONAGEM PROTAGONISTA – quando o narrador
é a personagem principal da história, narrando-a de um ponto de vista fixo, o
seu. Todos os eventos são filtrados pelos olhos e interpretações do
narrador-personagem protagonista, portanto, sempre deverá estar presente aos
eventos e somente serão transmitidas as suas percepções, eventos anteriores
estarão ainda condicionados à sua memória. Embora crie um efeito de intimidade
com o leitor, produzindo um efeito de que é o próprio leitor quem está
vivenciando os fatos através da mente de um dos personagens, há um
condicionamento da perspectiva que pode alterar significativamente a narrativa,
de acordo com as revelações que vão sendo feitas. Não há deslocamentos
antecipatórios, a não ser os que sejam extrapolação das conclusões do próprio
narrador personagem; não há possibilidade de alterar-se a cena a menos que o
narrador esteja presente a ela.
NARRADOR-PERSONAGEM TESTEMUNHA – neste caso o
narrador vivencia os acontecimentos como personagem secundária, seu ponto de
vista é o mais limitado de todos, só consegue levantar os aspectos narrativos a
partir de uma visão periférica dos eventos centrais, suas interpretações são
sempre secundárias aos eventos centrais e não tem conhecimento do que se passa
na mente dos outros personagens. Esse modelo narrativo é muito utilizado em histórias
de mistério e em narrativas míticas onde se pode valorizar os feitos do
personagem principal e acompanhar seus progressos ao longo da história como um
leitor interno e semi participativo.
Em ambos os casos de foco narrativo, há a
possibilidade de o narrador comentar temas paralelos, como a sua própria vida,
sua interpretação do enredo, a vida dos personagens, o cenário, etc. Quando
isso é feito, considera-se que o narrador é INTRUSO, na narrativa, acrescendo
elementos que podem modificar as interpretações do leitor. Quando isso não
ocorre o narrador é NEUTRO, e todos os elementos secundários à narrativa tem
que ser identificados e/ou inseridos pelo próprio leitor.
Dois casos clássicos de como um narrador pode alterar
a forma com que uma narrativa se desenvolve estão presentes na obra de Machado
de Assis.
Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” o narrador é um cadáver que resolve contar a sua história e apresenta-se como
um anacronismo: não um autor defunto, já que em vida nunca se dedicou a
escrever; mas como um defunto autor, haja vista que após a morte resolveu
fazê-lo e já de partida condiciona tudo o que será narrado à sua condição
futura (de morto) na narrativa. Essa perspectiva “atualizada” dos eventos que
são rememorados, dão o “tom” da narrativa, permitindo ao NARRADOR-PERSONAGEM
PROTAGONISTA, a capacidade de ser mais crítico em relação a tudo e a todos, já
que se coloca além de qualquer julgamento dos envolvidos, porém, condiciona a
perspectiva à visão pessoal, da forma como ficou fixada na memória e como foi
reinterpretada diante de fatos que, então, não haviam ocorrido.
Outro exemplo é de “Dom Casmurro” em que o NARRADOR-PERSONAGEM
PROTAGONISTA se apresenta como alguém extremamente ciumento e nitidamente,
através da forma como narra os fatos, paranoico e através da forma como se apresenta (Casmurro) alguém extremamente difícil de se lidar pela sua obstinação, teimosia, irredutibilidade, ensimesmado, desconfiado. Isso permite ao autor
desenvolver um dos mais intrigantes mistérios literários, a traição ou não, da
personagem Capitu com o melhor amigo de Bentinho (narrador), Escobar. Embora
esta seja a parte que mais salta a vista nesta história, através da
particularidade narrativa do texto, Machado de Assis, consegue dar vazão a sua
habilidade de questionar de forma inflexível os valores morais e sociais da
época sem, diretamente, fazer julgamentos de valor (atribuídos no máximo aos
seus personagens, não ao próprio Eu-Lirico presente) desenvolvendo uma estilística
genial conhecida como Ironia Machadiana.
Desta forma pode-se perceber que, dentro de uma
narrativa, algo que pode inicialmente parecer supérfluo e até mesmo superficial,
pode na verdade se revelar a parte fundamental, a chave de leitura, que revela
toda a intencionalidade oculta pelo autor e demonstra que para a habilidade
criativa, não há limites ou caminhos pré definidos, embora pareçam estar perfeitamente
delimitados.
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