Ainda ontem não consegui sair da cama, não liguei a TV para
ver as últimas notícias desastrosas que vão abalar as economias e ameaçar a
forma como vivemos na sociedade do século... qual é mesmo este século? Não
entrei nas redes sociais, não dei parabéns, não deixei o meu amém, não prestei
condolências, não curti o vídeo familiar de alguém. Vão perceber que não
publiquei no meu blog, não acompanhei as estatísticas das minhas colunas na
internet, não me preocupei com o almoço, com o saldo bancário, com o clima, com
o meu estado de saúde.
Ontem não discuti sobre política, não olhei as pessoas na
rua, não cantei alguma música triste para me sentir solidário, ou alegre para
me animar, não assisti às séries que acumulo, não dirigi a palavra a ninguém,
nem a mim mesmo, como muitas vezes me faço só para ouvir alguém falando comigo,
nem que seja uma bronca a mais que vou ignorar.
Ontem não fiz meditação, não fumei todos os cigarros
disponíveis porque estavam disponíveis, não pensei em coisas elaboradas, não me
preocupei com a escassez de agua na terra ao tomar banho, não deixei a torneira
escorrendo quando escovei os dentes, não sorri para o espelho.
Ontem não li um livro de algum autor nacional para estudar
o que está acontecendo no mercado literário entre autores nacionais, não pensei
em um texto bacana para o próximo concurso, site, blog, coluna. Não me
interessei pelo crescimento das flores no meu jardim, ou das mudas de tomate
que finalmente resolveram aparecer, depois que havia descartado todas, crente
que estavam perdidas. Não atendi o telefone, não limpei a casa, não comi nada
diferente, não senti fome ao esquecer das horas que passavam.
Ontem não compareci a compromissos, não me senti culpado
por nada, não desejei intensamente um sabor especial, não dancei, não nadei,
não dei um passeio de bike pela orla da praia, não me interessei por estranhos
em seus modos estranhos de ser, não vi branca nuvem passar, não olhei para ver
quem batia a porta, nem me importei se não voltariam.
Ontem não tomei nenhuma decisão importante para o meu
futuro, não critiquei nenhum dos meus defeitos, não penteei os cabelos de uma
forma diferente, não olhei velhos registros em busca de algo que poderia estar
fazendo para ocupar as horas que não olhei. Estranhamente a Terra deu mais uma
volta sobre si mesma, e correu pelo vácuo espacial em torno do Sol, feito um
cachorro alegre a esperar que alguém lhe atire uma bola, para poder correr mais
ainda, sem motivo algum, apenas porque pode correr.
Mas isso foi ontem, e hoje voltei a minha velha rotina ao
acordar para um novo dia com o pensamento inquisitório da voz que me persegue
por todos os cantos e me faz ser cada vez mais, ou menos, em todos os momentos.
A voz que me cobrava sem ressalvas: O que você fez ontem?
Ontem eu fui feliz! Respondi sem raiva, apenas constatando
tardiamente o obvio de tudo o que acontecera. E estou rindo até agora da cara
que o meu inconsciente fez ao perceber que venci novamente. Nem quero saber o
que vai acontecer amanhã, depois que isso ficar evidente.
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