Este
texto é baseado nas palestras que ofereci na UNIBR-SV, nos dias 09 e 10 de maio
de 2016. Agradeço à Instituição a oportunidade e aos assistentes pelo prazer do
encontro. Divido com os meus leitores alguns conceitos básicos da leitura e
escrita que podem contribuir para uma melhor compreensão do fazer literário,
entre outros. Não há a intenção de aprofundar demasiadamente qualquer conceito
apresentado, apenas apresentar alguns elementos básicos e caminhos possíveis
para que qualquer pessoa possa melhorar sua qualidade de leitura e produção
textual, indicando caminhos possíveis para esse aprofundamento. Ler e Escrever
são atividades importantes na sociedade letrada, mas nem por isso necessitam
ser desagradáveis, ao contrário, podem ser atividades fontes de prazer, de
lazer e aprimoramento.
QUEM LÊ MAIS, ESCREVE
MELHOR.
A frase acima é um dito popular muito utilizado,
principalmente no mundo acadêmico, mas normalmente acaba induzindo ao erro por
estabelecer uma relação direta entre o ato de ler e o ato de escrever, quando na
verdade trata-se de uma relação indireta. O ato de ler pressupõe a capacidade
de interpretar uma mensagem inserida em algum código coerente, já o ato de
escrever pressupõe uma vontade de comunicar algo de forma coerente, dentro de
um padrão letrado.
O correto seria dizer que quem lê mais se torna um leitor
melhor. Claro que um bom escritor necessita de ser um bom leitor para exercer o
seu ofício, mas o fato de ser um leitor não significa necessariamente uma
relação causal com ser um bom escritor. Portanto o erro está em se tentar unir
dois conceitos que tem uma relação indireta (quem lê, o faz sobre algo que foi
codificado sobre o padrão letrado; quem escreve, pressupõe que há pessoas habilitadas
pelo padrão letrado que o compreendam, mesmo que não esteja presente). O risco é de que se crie uma aversão à leitura e à escrita, porque, apesar de ler muito, a pessoa não consegue "escrever" como gostaria; além do fato de que muitos que escrevem já se consideram excelentes leitores, apenas porque escrevem, e isso não é um fato. A leitura e a escrita necessitam de técnicas para que sejam desenvolvidas em um nível mais aprofundado, embora, na sua superfície, podem ser efetuadas de maneira simples.
Na mesma linha de engano induzido está outra frase que diz
que “Um escritor já nasce pronto”. Essa talvez seja mais perigosa ainda porque
apresenta diversas incorreções.
O talento para a escrita auxilia no processo de se tornar
um escritor, mas nem todo escritor necessita ser talentoso. Aprende-se a
escrever na infância, aproveitando a plasticidade do cérebro nessa idade,
através de técnicas, porque a nossa sociedade é letrada e, portanto, se torna
cada vez mais uma necessidade para sobrevivência.
Escrever,
no caso, assemelha-se a habilidade de cantar, todos podem aprender a cantar,
mas nem todos se tornarão Cantores, embora sempre possam fazer uso dessa
habilidade de outras formas.
O
problema está no fato do “endeusamento” da escrita, criando uma tensão nos
necessários escritores de uma sociedade letrada, que não se consideram com
talento suficiente para o fazer e, muitas vezes, acabam por abominar qualquer
ato que tenha relação “direta” com a sua “inabilidade”, como a leitura.
É fato consagrado que quanto mais uma pessoa escreve e se
dedica a aprender técnicas de escrita, mais facilmente ela consegue produzir
textos. Da mesma forma que um cantor necessita exercitar a voz através de
exercícios de canto, um escritor necessita exercitar a sua “voz” interna
através da escrita constante. Quanto mais se escreve, melhor se escreve, embora
nem tudo que se escreva tenha que ser de teor significativo, serve apenas como
um exercício.
Um escritor profissional necessita, da mesma forma que
outras pessoas, aprender técnicas específicas que lhe auxiliam na sua arte, é
um trabalho longo e contínuo como em qualquer outra área do conhecimento
humano, ainda que haja um talento prévio a ser desenvolvido. Aprender a ler
melhor auxilia na construção de um vocabulário maior, na apreensão de técnicas
textuais, na ampliação da percepção de ritmo e planificação do texto, na
compreensão da coesão e da coerência. Ler, portanto, é uma necessidade de uma sociedade
letrada, não apenas para escritores profissionais, mas para todos os tipos de
escritores que uma sociedade letrada demanda.
Mesmo um cantor necessita aprender a ler melhor, necessita
aprender a escrever melhor, os conhecimentos humanos são interconectados e os
talentos individuais apenas fazem com que indivíduos se destaquem a partir do
aprimoramento do seu talento, através do aprendizado de técnicas específicas.
O talento inato, que já nasce com o indivíduo, seja qual
for (e segundo algumas correntes do conhecimento, todos nós temos vários
talentos inatos) ajuda no sentido de que conseguimos encarar as dificuldades
comuns a todos, de forma mais fácil. Portanto o chamado “talento” seria mais
uma “afinidade” que nos auxilia a superar as dificuldades de aprender a
técnica, nos ajuda a não desistir diante do que, a princípio, parece
impossível, nos auxilia a sentir prazer em cada vitória e nos estimula a ir
cada vez mais longe e aprender sempre mais.
Outro ditado popular que tem a ver com isso é “aquilo que se faz com amor, faz-se melhor”. Claro que sim, quando nos sentimos envolvidos no que
fazemos, nos sentimos mais fortes, mas isso não significa que as coisas ficam
mais fáceis apenas por isso, outrossim, nos sentimos dispostos a enfrentar por
mais tempo as dificuldades e a investir mais, e isso sim, é uma receita que
pode dar certo. Ou não.
ABSORVER O MUNDO PARA
DESCREVE-LO MELHOR.
Ninguém pode dar o que não possui, isso é uma lógica
básica. Na escrita também é assim. Para que se possa criar textos é necessário
absorver textos em quantidades imensas, elabora-los e, então, produzir novos
textos. Isso quer dizer que, necessitamos introjetar o conhecimento, traze-lo
para dentro. A leitura de mundo é a ferramenta mais básica para poder escrever
acerca do mundo e do conhecimento. É o que fazemos constantemente, ao acordar
para o dia e observar as condições do ambiente, ao viver as nossas vidas, ao
nos comunicarmos com o Outro, ao buscarmos outras visões que possam nos
acrescentar conhecimentos que não possuíamos e rever os que já existiam.
Essa habilidade de “ler” o mundo, em maior ou menor grau é
uma característica evolutiva do ser humano. Desenvolvemos nossa sociedade
apoiados em conhecimentos ancestrais que são passados para as próximas gerações
e determinam ainda mais as características destas gerações se desenvolverem. Já nascemos
com a capacidade de ampliar os mínimos conhecimentos necessários para
sobreviver e, salvo se houver algum problema congênito ou de percurso, é isso
que fazemos ao longo da vida. A mãe sabe quando o choro da criança é de fome,
de sono, de incomodo ou apenas para chamar a atenção. A criança já sabe quando
os pais estão nervosos, ou quando estão amorosos. Isso é uma leitura de mundo
pré-tipográfica e se ampliará ao longo do desenvolvimento.
E como desenvolver as melhores técnicas para escrita se não
possuímos talento inato? Da mesma forma que aprendemos a produzir os signos
gráficos de nossa linguagem. Aprendemos as letras desenhando as letras,
copiando e imprimindo o nosso traçado próprio. Aprendemos a identificar imagens
com os seus respectivos signos estabelecendo uma correlação entre ambos. A
palavra Casa pode ser representada por um desenho de uma casa e vice e versa.
Essa técnica é chamada de Reescrita, quando nos apropriamos
de algo que já existe e revisamos com a nossa característica, não estamos
desenvolvendo algo inédito, apenas adaptando algo existente a nossa
necessidade. No mundo acadêmico essa vertente é muito utilizada em citações
indiretas, aquelas em que retransmitimos com nossas palavras os conceitos que
foram desenvolvidos por outra pessoa que já possui uma credibilidade pelo seu trabalho. Mas pode-se ir além na arte, podemos
construir algo novo a partir de uma visão especifica de algo que já existia.
Shakespeare se baseou no teatro grego para criar Romeu e Julieta, muitos outros
autores modernos se basearam em Shakespeare para criar obras que vão de
“Malhação” até “Jogos Vorazes”. Nas universidades americanas que ensinam a arte
de escrever essa técnica é amplamente utilizada, por isso podemos ver obras
como Código da Vinci de Dan Brown que tem a mesma estrutura central de Romeu e
Julieta, por exemplo.
O UNIVERSO ABOMINA O
VÁCUO
Essa é uma lei da física, mas também é válida para a
psicologia. O cérebro humano se desenvolveu para identificar padrões, ainda que
estes não existam de fato, nesse caso a mente humana utiliza-se de artifícios
para preencher as lacunas e “criar” um padrão. Essa é a base da Gestalt, uma
teoria psicológica muito interessante que não vamos poder aprofundar aqui, mas
que vale a pena ser estudada.
Pela Gestalt podemos “enganar” o cérebro através de
padrões, podemos criar conexões que não existem de fato, podemos fazer junções
para criar algo novo ou desmembrar figuras em suas partes e reconstruir um novo
quadro.
Essa habilidade de reconhecer padrões a partir de um
conjunto de memórias e estabelecer pré-julgamentos, permitiu que o ser humano
sobrevivesse em uma época em que o ambiente era hostil e não havia muito tempo
para analisar se algum vulto era um predador, um amigo, ou apenas uma sombra
qualquer. A mesma habilidade ainda é importante para a nossa sociedade porque
permite, entre outras coisas, a construção das extrapolações, está na base do
pensamento projetivo que vem a ser aquele modelo mental que consegue, a partir
de dados iniciais, projetar mentalmente como se darão eventos futuros.
Por outro lado, a mesma “ferramenta” mental pode induzir ao
erro, “colar” um padrão incorreto que depois acaba criando uma tendência de
fixação e indução ao erro. É o que acontece, por exemplo, quando escrevemos um
texto e, por mais que o revisemos, não conseguimos “ver” os erros que estão
presentes, simplesmente porque ainda temos o “modelo” que o produziu “colado”
na mente. Por isso é importante em toda produção textual que haja um processo
de “distanciamento”. Normalmente um autor guarda o seu texto e espera até haver
“esquecido” dele para poder fazer a revisão, porém esse método não é
completamente eficiente porque podemos resgatar com facilidade memórias
recentes. Então, um outro método é enviar para um leitor habilitado para que
este aponte as incorreções e falhas de forma que possam ficar evidenciadas.
Dizendo dessa forma, parece complexo todo o processo, mas
através de imagens fica mais fácil entender o raciocínio
A figura
1 apresenta um rosto feminino facilmente reconhecido, porém, pode-se perceber
pela figura 2 e 3 que há na mesma imagem um outro padrão oculto, que quando
realçado, apresenta-se como outra figura.
Duas
coisas podem ser percebidas a partir destas imagens. A “textura” (a forma como
se cria um padrão de fundo) altera a percepção do que é visto, porque
modifica-se a informação que o nosso cérebro recebe. Também fica evidente que,
quando fixamos a primeira imagem, ela se torna “residual e mesmo
quando alteramos o foco para a segunda imagem, a primeira ainda nos parece
presente. Se a sequência fosse invertida, o efeito seria o mesmo. Isso indica
que a primeira percepção é sempre mais intensa e duradoura, e modela as
percepções futuras, ainda que se limite o foco informativo.
Isso
fica evidente na sequência de imagens que apresento a seguir, na “transformação”
de um rosto masculino em um corpo feminino e vice e versa, basta inverter a
ordem.
O
contexto onde o padrão é inserido também altera a percepção do padrão, como
pode ser percebido nestas imagens em que se destaca o padrão e depois o coloco
em contextos diferentes. Assim a figura que nos lembra um pão de forma se
transforma em uma caixa de correios.
Esse destaque nos permite perceber, por exemplo, o motivo
de uma palavra ou frase deslocada do seu contexto original assumir outro
sentido diferente quando inserida em um novo contexto que se diferencia de onde
foi deslocada. Daí a importância de, ao usar partes de um discurso, cuidar para
que as mesmas sejam inseridas em discursos que contenham elementos semelhantes,
para não descaracterizar completamente a intenção original e induzir ao erro
interpretativo. Também explica, basicamente, porque muitas vezes há falhas
comunicativas ao se transmitir mensagens que não provoquem a contextualização
da informação.
O contexto também pode interferir
diretamente na percepção do padrão utilizado, ainda que este se mantenha
constante, como pode ser verificado nas figuras a seguir. Observe que as
esferas centrais da figura 1 parecem ser de diferentes tamanhos, mas quando
traçamos uma linha reta sobre elas, desmontamos a ilusão criada pelo contexto e
passamos a percepção de que na verdade são ambas do mesmo tamanho. Apesar
disso, é possível que nossa racionalidade entre em conflito com a informação
recebida pela visão e tenhamos dificuldade para aceitar imediatamente que ambas
esferas centrais são iguais, apesar do fato comprovado.
Fica mais complexa a interpretação e a alteração do foco
quando trabalhamos com composições e sobreposições.
Na
primeira imagem pode-se perceber de imediato um homem de sombreiro em cima de
um cavalo, uma pessoa deitada no chão coberta por um pano, e um rio ao fundo.
Mas as figuras acabam compondo a imagem de um homem idoso, de cabelos, bigodes
e barba brancos, que muitas vezes nos escapa ao olhar porque os elementos
principais se destacam.
Na
segunda figura o foco é mais disperso e equilibrado, então é possivel que o
primeiro foco se dê sobre a moça que olha por cima do ombro, vestida com um
casaco de pele e um lenço branco. Ou pode ser que o nosso foco inicial seja o
de uma senhora idosa, e percebe-se que o “colar” da moça, é na verdade a “boca”
da idosa.
A
terceira imagem é mais marcante ainda, também nela podemos focar em primeiro
lugar uma pessoa curvada agarrando os cabelos em uma situação que nos parece de
desespero, ou nosso foco inicial pode ser a “caveira” deformada que se forma
com os contornos do corpo e das sombras produzidas por este. Em ambos os casos,
há um “discurso” que remete a uma situação de desespero e medo. A
intencionalidade dessa imagem fica clara pelos elementos destacados e se
harmoniza com a informação externa de que a série “Penny Dreadful” trabalha com
o lado sombrio da literatura fantástica.
Por fim, uma composição criativa em cima da frase de Neil
Armstrong, em que ele relata uma situação vivenciada em sua viagem à Lua. Escolhi essa pequena sequência de imagem
aliada a discurso para demonstrar como o contexto é importante.
Em uma análise simples do discurso oferecido, percebemos
uma dicotomia: “Não me senti um gigante” (capaz de, com apenas o dedão, anular
completamente a Terra), “Na Verdade me senti muito, muito pequeno”.
Se utilizarmos o viés de análise com base no foco informativo
e na alteração do padrão diante do contexto, como foi demonstrado
anteriormente, podemos perceber racionalmente a emoção do astronauta na
situação por ele criada.
Se o foco contextual for ele em relação a Terra, cuja
imagem residual na sua mente é a de um planeta imenso, o fato dele poder
encobrir toda a superfície desta com apenas o dedão, torna-o gigantesco.
Porém, ao fazer esse gesto, o que ficou destacado para o
astronauta foi justamente a imensidão do universo. A referência de “grandeza”
da Terra, sumiu por alguns momentos de sua mente e ficou apenas o imenso céu
cheio de estrelas, sem nenhuma humanidade além do próprio astronauta.
Pode-se perceber imediatamente o sentimento de solidão
diante daquela “noite” imensa, e como isso fez com que o astronauta se sentisse
infinitamente pequeno, apenas pela percepção alterada do foco e do contexto.
Com isso, encerramos esta breve exposição, na esperança de
que tenha ficado claro a importância da leitura de mundo, da mudança de perspectiva
ao se analisar fatos comprováveis, e as possibilidades e dificuldades ao se
trabalhar padrões em contextos diversos.
Espero que tenha ficado claro que, ler e escrever são
atividades distintas e complementares, mas que ambas podem ser exercidas de
forma simples e nos auxiliarem a Ler o Mundo de outras formas e Escrever nossa
história com um Final Feliz.
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