quarta-feira, 11 de março de 2015

A Menina Dali - Danny Marks

                O lugar onde morei por quase toda a vida se parece com uma pequena cidade. Os vizinhos de anos de convivência se tornam parte extensiva da família, como que expandida à força das necessidades, das confissões, das esperanças e frustrações trocadas em encontros de abelha indicando caminhos para o mel dos dias.
                Quando se cresce em um ambiente assim, não há como o caráter não adquirir a flexibilidade e o frescor dos ramos vigorosamente novos a brotar por entre as brechas em busca de sol, desafiando os espaços.  As casas empilhadas da modernidade roubaram essa intimidade das casas enfileiradas em suas particularidades restringindo os mundos às paredes e corredores e não mais às veias nevrálgicas a se estender pelo tecido urbano.
                Hoje seria impossível dizer-se que conhecia a menina Dali, que importava o nome de alguém que ocasionalmente se via a correr por todos os caminhos, a incomodar com perguntas que nem esperava respostas inteiras, mas que as cobrava quando não ditas, em intensidades de vitalidade infantil. Dali era mais um indicativo de origem que um nome, mas de apelido virou identidade. Quem não conhecia a menina Dali? De onde vinha e para onde voltava sempre que lhe parecia conveniente, ainda que interrompendo qualquer coisa que fizesse com extrema importância.
                Dali também vinham os ares de pobreza extrema, de dificuldades nascidas das esperanças perdidas que vieram na bagagem de outros lugares mas não encontraram solo fértil para prosperar. Como que brotando de alguma névoa obscura e deprimente que os mais corajosos olhares se recusavam a encarar, a menina Dali ganhava vida ao sol e corpo nas ruas que percorria descalça, sempre a correr como se lhe faltasse tempo para viver tudo o que ansiava, com suas roupas amarrotadas e gastas.
                Se fosse boneca que tivesse engolido pílulas da fala ganharia a notoriedade dos contos de fada, mas os cabelos emaranhados, raramente lavados e penteados, não eram de lã e emolduravam com certa poesia os olhos ávidos de devorar a vida e conhecer o que jamais lhe pertenceria de destino.
                Não me lembro da primeira vez que a vi, ou como se deu tal encontro. Minha memória mais antiga ou, talvez, a mais marcante, foi do dia em que me dedicava a construir um trator com paus, pregos, latas velhas e restos de brinquedos encontrados nos terrenos vazios da vizinhança, os mesmos de onde retirava ferro velho para vender e poder comprar o sorvete de espuma que naquele momento degustava calmamente enquanto planejava mentalmente o projeto do brinquedo.
                — Qué isso?
                A princípio achei que a menina, que por ter muito menos idade que eu poderia chamar assim, já me sentindo adulto para olhá-la como se fosse uma espécie diferente da minha, referia-se ao sorvete que rapidamente derretia em minhas mãos. Mas logo a seguir, ignorando-o completamente, ela passou a mexer com as peças do meu projeto, empilhadas, examinando-as com uma curiosidade que fascinava.
                — É pra brincar? Deque?
                Sem cerimônia sentou-se de pernas abertas à minha frente, o vestido velho maior que ela preso nos joelhos não lhe cobria as calcinhas sujas, mas suas mãos e olhos não se moviam para apropriar-se dos objetos de curiosidade, como a espera que ganhassem movimento e lhes revelassem segredos que desconhecia.
                Dei-lhe o meu sorvete e comecei a explicar-lhe como se montava a máquina improvisada, montando-a com cuidado para que visse como se fazia. Assumi automaticamente o ar de mestre que cuida de um discípulo muito inferior, mas com grande potencial de aprendizado.
                Tão logo a máquina ficou pronta e a menina alimentada com meu sorvete, levantou-se e correu em outra busca qualquer, como se tivesse desvendado o segredo que desejava e a brincadeira consistisse apenas em montar o brinquedo e não fazê-lo cumprir alguma tarefa.
                Estabelecida como seria a nossa relação, a partir desse dia sempre a via por perto e a ensinava as mais secretas artes dos meninos. Como subir nos galhos mais altos onde se escondiam as melhores frutas, como jogar bafo de forma a ganhar a maior quantidade de figurinhas, os melhores lugares para se esconder nas brincadeiras, como criar novos brinquedos das coisas mais estranhas, de caixas de papelão ou de madeira que viraram naves espaciais até pneus velhos que viraram carros de corrida.
                Quando não estava comigo, Dali se empenhava em ganhar novos mundos, e ninguém conseguia lhe resistir aos avanços conquistadores. Era na vendinha do japonês que ganhava frutas e verduras para levar para casa, na banca do “seu” Geraldo pegava as encomendas para levar para os clientes a troco de algumas moedas que carregava gloriosamente em uma bolsinha que encontrara em alguma das lixeiras e que virava e mexia carregava com ar majestoso de gente grande andando aprumada como uma dama descalça.
                Meus pais, e outros da vizinhança, davam-lhe roupas de todos os tamanhos, para levar para os seus e doces que devia comer ali mesmo. Eu lhe conseguia gibis e livros velhos que ensinara a ler com cuidado.
                Por vezes desaparecia um tempo e voltava sem motivos ou justificativas como se o seu mundo não interessasse aos outros. Interessava-se pelo mundo alheio e nele mergulhava com a graça de um peixe a percorrer os recifes em busca de aventuras.
                Um dia todos os olhos se voltaram para o nebuloso espaço de onde surgia a menina Dali, em meio à chuva torrencial subiam as labaredas quentes que devoravam qual monstro mitológico os parcos pertences dos que se abrigavam no sopé do morrinho.
                Quando permitiram que pessoas como eu se aproximassem do que sobrara, dias depois, levei cerimoniosamente um trator especialmente construído para a menina. Tinha esperanças de encontrá-la em roupas ainda mais sujas a recolher dos destroços objetos úteis como havia lhe ensinado a fazer, mas ante a visão dantesca a vida me atingiu com sua realidade como jamais antes havia feito e fiquei paralisado diante da imensa pedra que rolara do morro por sobre os barracos incendiados em que alguém, piedosamente, havia colocado uma imagem da Santa com o filho nos braços em uma capelinha feita de gesso. Flores e fotos se acumulavam na base da pedra em uma prece permanente aos deuses que haviam enviado a desgraça.
                Depositei com cuidado o brinquedo feito com carinho e voltei para remontar os pedaços do coração e da alma que teimava em me escorrer pelos olhos de forma incompreensível. Lamentava a perda da minha inocência tanto quanto a da inocência que se perdera naqueles dias de terror. A menina Dali se fora para sempre.
                O tempo cura as feridas, mas às vezes deixa cicatrizes na alma que jamais se apagam. Quando tive oportunidade segui o meu caminho e tornei-me visita na casa dos meus pais, até que estes também se foram e tive que definir o que seria feito do legado que me deixavam, a casa onde passara minha infância e que me trazia memórias que não conseguia deixar ir.
                Casei, separei, envelheci, sobrevivi às dificuldades e alegrias da vida até que, por fim retornei às origens que me serviam de ancora. Não me tornara engenheiro como pretendia, nem mesmo famoso como imaginara ser, mas as habilidades da infância se provaram úteis na condução do meu destino e o reduto onde se desenvolveram me serviu de santuário naquele momento difícil de reconstrução.
                Muitas coisas haviam mudado no cenário de minha infância, mas ainda podia reconhecer velhos rostos em meio à multidão, a pedra santuário se tornara um local sagrado onde as pessoas iam depositar suas esperanças e pagar pelas graças obtidas. Uma cerca de ferro fora construída a volta e uma capelinha maior havia substituído a anterior para abrigar a imagem da Santa que havia crescido junto com a fé dos que nada mais tinham.
                Reformei o meu próprio santuário e me resignei a tentar resgatar os fiapos do passado para reconstruir o meu futuro que me parecia cada vez mais lúgubre.
                Então, em um dia que os pássaros cantavam nas arvores frutíferas do jardim, sem competição de meninos que lhes roubassem o alimento. Bateu-me a porta uma moça que quase não reconheci em seus traços cansados e rosto envelhecido.
                Dali parecia ser mais velha que eu, com sofrimento maior que o meu, mas seus olhos ainda conquistadores a cobrar do mundo uma resposta que não podíamos dar.
                Assim que abri o portão entrou um relâmpago em forma de menina arrastando atrás de si o passado, e de pronto se pôs, como se já o fizesse desde sempre, a subir nas arvores e a colher as frutas que arrumava no vestido preso a cintura a guisa de bolsa.
                Fiz com que Dali entrasse novamente na minha casa, desta vez apenas minha, e ofereci-lhe café. Aceitou constrangida não pelo oferecimento, mas pelo pedido que pretendia me fazer. Havia me reconhecido em minha incursão ao santuário e precisava novamente do meu auxílio generoso. Eu que a julgava morta há muito tempo não me sentia em condições de recusar nada ao milagre de vê-la, minha curiosidade acerca do que lhe passara sufocada pela necessidade mais urgente de atender aquela que tomara como minha protegida em tenra idade.
                Pediu-me que cuidasse da filha por alguns dias, tinha que se ausentar da cidade para buscar auxílio de parentes, as coisas estavam cada vez mais difíceis e como era mãe solteira se tornavam piores ainda. Não podia levar a menina em viagem tão longa e não conhecia ninguém que fosse de tão boa confiança quanto eu.
                Ora, claro que podia deixar a criança, estava eu de férias no momento e podia ficar alguns dias a olhar aquele rebento do passado que, pela simples presença, já enchera a casa de vida como há muito não se sentia por ali.
                Agradecida deixou-me uma sacola de roupas e alguns brinquedos que a menina gostava. À custo aceitou alguns trocados que tinha a mão para lhe dar, para ajudar na viagem, e comeu de bom grado, junto com a filha, o almoço que havia preparado para mim.
                Feito o arranjo, foi-se embora entre aliviada e triste, como se partisse para enfrentar um demônio maior que a vida, se tal criatura pudesse existir, apressada a temer que mudasse de ideia, o que a bem da verdade teria feito se não estivesse impactado pelas artimanhas do destino a me retomar passado e presente de forma tão brusca e inusitada.
                Os dias se passaram e as dificuldades de convivência com a filha de Dali foram superadas facilmente pela vivacidade que suplantava a minha casmurrice habitual. Peguei-me até mesmo a sorrir sem motivos, para logo entristecer ao saber da breve partida daquela luz que me iluminava os dias com suas perguntas incessantes e o seu jeito de necessidade constante.
                Dei-lhe provisoriamente o meu antigo quarto, que nem sabia por que, havia mantido arrumado e mobiliado, enquanto me mudara para o lugar de direito dos donos da casa. Contava-lhe histórias para dormir e deixava a luz do corredor acesa para se temendo o escuro me encontrasse facilmente no quarto ao lado. Esperava ouvir o som do sono dela para me refugiar por minha vez nos braços imaginários dos meus pais. Todos nós precisamos de algum colo de vez em quando.
                Somente no final da semana, ao arrumar as roupas lavadas da menina é que notei no fundo da sacola um saco com papeis. Era a certidão de nascimento da criança, suja e amarrotada, e só então me veio à lembrança o ultimo olhar de Dali.
                Amaldiçoando-me pela burrice, e a mãe da inocente criatura pela irracionalidade, pus-me desesperadamente a pensar como proceder se estivesse correto em minha conjetura.
                Recorri a uma amiga advogada, que me recomendou um detetive, que fez o possível para encontrar Dali, mas não havia condições de, no curto prazo ao menos, encontrar o destino da mãe desaparecida. Aconselhado fiz todos os procedimentos necessários para ficar com a guarda da criança enquanto a mãe não fosse localizada, se algum dia fosse, e não receber nenhum tipo de punição legal por ter sido idiota a ponto de julgar que a inocência fosse eterna.
                Os dias das minhas férias foram gastos tentando resolver um problema que não precisava ter, ao mesmo tempo que tentava não punir ainda mais a criança, que era mais uma  vítima da irresponsabilidade dos adultos, mas que parecia ser capaz de lidar com a situação com mais tranquilidade que eu mesmo.
                Nisso os anos se passaram, acabei adotando oficialmente Samara, o nome que estava na certidão de nascimento, e passei a cuidar dela como a filha que nunca tive. Até hoje não sei quem salvou quem nesta história, meus dias se enchem de vida a cada vez que Samara vem correndo e me pula no pescoço como a querer garantir que ainda estou ali.
                Há noites, depois que lhe conto alguma história antes de dormir, ela me pergunta pela mãe e eu sempre respondo que deve estar dando um jeito de voltar para encontrar conosco de novo. Ela me olha bem no fundo dos olhos e me diz.
                — Se ela voltar vai ter espaço para nós duas aqui?
                E rapidamente eu respondo que “Claro que sim, a casa é bem grande, cabe todo mundo”; dou-lhe um beijo de boa noite a cubro, e saio antes que as emoções me traiam ainda mais.
                Nesses dias fico até de madrugada olhando o portão esperando que, por algum milagre, apareça novamente a menina Dali e venha resgatar a nossa inocência.

                
                

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