O lugar onde morei por
quase toda a vida se parece com uma pequena cidade. Os vizinhos de anos de
convivência se tornam parte extensiva da família, como que expandida à força
das necessidades, das confissões, das esperanças e frustrações trocadas em
encontros de abelha indicando caminhos para o mel dos dias.
Quando se cresce em um ambiente assim, não há como o
caráter não adquirir a flexibilidade e o frescor dos ramos vigorosamente novos a
brotar por entre as brechas em busca de sol, desafiando os espaços. As casas empilhadas da modernidade roubaram
essa intimidade das casas enfileiradas em suas particularidades restringindo os
mundos às paredes e corredores e não mais às veias nevrálgicas a se estender
pelo tecido urbano.
Hoje seria impossível dizer-se que conhecia a menina
Dali, que importava o nome de alguém que ocasionalmente se via a correr por
todos os caminhos, a incomodar com perguntas que nem esperava respostas
inteiras, mas que as cobrava quando não ditas, em intensidades de vitalidade
infantil. Dali era mais um indicativo de origem que um nome, mas de apelido
virou identidade. Quem não conhecia a menina Dali? De onde vinha e para onde
voltava sempre que lhe parecia conveniente, ainda que interrompendo qualquer
coisa que fizesse com extrema importância.
Dali também vinham os ares de pobreza extrema, de
dificuldades nascidas das esperanças perdidas que vieram na bagagem de outros
lugares mas não encontraram solo fértil para prosperar. Como que brotando de
alguma névoa obscura e deprimente que os mais corajosos olhares se recusavam a
encarar, a menina Dali ganhava vida ao sol e corpo nas ruas que percorria
descalça, sempre a correr como se lhe faltasse tempo para viver tudo o que
ansiava, com suas roupas amarrotadas e gastas.
Se fosse boneca que tivesse engolido pílulas da fala
ganharia a notoriedade dos contos de fada, mas os cabelos emaranhados,
raramente lavados e penteados, não eram de lã e emolduravam com certa poesia os
olhos ávidos de devorar a vida e conhecer o que jamais lhe pertenceria de
destino.
Não me lembro da primeira vez que a vi, ou como se
deu tal encontro. Minha memória mais antiga ou, talvez, a mais marcante, foi do
dia em que me dedicava a construir um trator com paus, pregos, latas velhas e
restos de brinquedos encontrados nos terrenos vazios da vizinhança, os mesmos
de onde retirava ferro velho para vender e poder comprar o sorvete de espuma
que naquele momento degustava calmamente enquanto planejava mentalmente o
projeto do brinquedo.
A princípio achei que a menina, que por ter muito
menos idade que eu poderia chamar assim, já me sentindo adulto para olhá-la
como se fosse uma espécie diferente da minha, referia-se ao sorvete que
rapidamente derretia em minhas mãos. Mas logo a seguir, ignorando-o
completamente, ela passou a mexer com as peças do meu projeto, empilhadas,
examinando-as com uma curiosidade que fascinava.
— É pra brincar? Deque?
Sem cerimônia sentou-se de pernas abertas à minha
frente, o vestido velho maior que ela preso nos joelhos não lhe cobria as calcinhas
sujas, mas suas mãos e olhos não se moviam para apropriar-se dos objetos de
curiosidade, como a espera que ganhassem movimento e lhes revelassem segredos
que desconhecia.
Dei-lhe o meu sorvete e comecei a explicar-lhe como
se montava a máquina improvisada, montando-a com cuidado para que visse como se
fazia. Assumi automaticamente o ar de mestre que cuida de um discípulo muito
inferior, mas com grande potencial de aprendizado.
Tão logo a máquina ficou pronta e a menina alimentada
com meu sorvete, levantou-se e correu em outra busca qualquer, como se tivesse
desvendado o segredo que desejava e a brincadeira consistisse apenas em montar
o brinquedo e não fazê-lo cumprir alguma tarefa.
Estabelecida como seria a nossa relação, a partir
desse dia sempre a via por perto e a ensinava as mais secretas artes dos
meninos. Como subir nos galhos mais altos onde se escondiam as melhores frutas,
como jogar bafo de forma a ganhar a maior quantidade de figurinhas, os melhores
lugares para se esconder nas brincadeiras, como criar novos brinquedos das
coisas mais estranhas, de caixas de papelão ou de madeira que viraram naves
espaciais até pneus velhos que viraram carros de corrida.
Quando não estava comigo, Dali se empenhava em ganhar
novos mundos, e ninguém conseguia lhe resistir aos avanços conquistadores. Era
na vendinha do japonês que ganhava frutas e verduras para levar para casa, na
banca do “seu” Geraldo pegava as encomendas para levar para os clientes a troco
de algumas moedas que carregava gloriosamente em uma bolsinha que encontrara em
alguma das lixeiras e que virava e mexia carregava com ar majestoso de gente
grande andando aprumada como uma dama descalça.
Meus pais, e outros da vizinhança, davam-lhe roupas
de todos os tamanhos, para levar para os seus e doces que devia comer ali
mesmo. Eu lhe conseguia gibis e livros velhos que ensinara a ler com cuidado.
Por vezes desaparecia um tempo e voltava sem motivos
ou justificativas como se o seu mundo não interessasse aos outros.
Interessava-se pelo mundo alheio e nele mergulhava com a graça de um peixe a
percorrer os recifes em busca de aventuras.
Um dia todos os olhos se voltaram para o nebuloso
espaço de onde surgia a menina Dali, em meio à chuva torrencial subiam as
labaredas quentes que devoravam qual monstro mitológico os parcos pertences dos
que se abrigavam no sopé do morrinho.
Quando permitiram que pessoas como eu se aproximassem
do que sobrara, dias depois, levei cerimoniosamente um trator especialmente construído
para a menina. Tinha esperanças de encontrá-la em roupas ainda mais sujas a
recolher dos destroços objetos úteis como havia lhe ensinado a fazer, mas ante
a visão dantesca a vida me atingiu com sua realidade como jamais antes havia
feito e fiquei paralisado diante da imensa pedra que rolara do morro por sobre
os barracos incendiados em que alguém, piedosamente, havia colocado uma imagem
da Santa com o filho nos braços em uma capelinha feita de gesso. Flores e fotos
se acumulavam na base da pedra em uma prece permanente aos deuses que haviam
enviado a desgraça.
Depositei com cuidado o brinquedo feito com carinho e
voltei para remontar os pedaços do coração e da alma que teimava em me escorrer
pelos olhos de forma incompreensível. Lamentava a perda da minha inocência
tanto quanto a da inocência que se perdera naqueles dias de terror. A menina
Dali se fora para sempre.
O tempo cura as feridas, mas às vezes deixa
cicatrizes na alma que jamais se apagam. Quando tive oportunidade segui o meu
caminho e tornei-me visita na casa dos meus pais, até que estes também se foram
e tive que definir o que seria feito do legado que me deixavam, a casa onde
passara minha infância e que me trazia memórias que não conseguia deixar ir.
Casei, separei, envelheci, sobrevivi às dificuldades e
alegrias da vida até que, por fim retornei às origens que me serviam de ancora.
Não me tornara engenheiro como pretendia, nem mesmo famoso como imaginara ser,
mas as habilidades da infância se provaram úteis na condução do meu destino e o
reduto onde se desenvolveram me serviu de santuário naquele momento difícil de
reconstrução.
Muitas coisas haviam mudado no cenário de minha
infância, mas ainda podia reconhecer velhos rostos em meio à multidão, a pedra
santuário se tornara um local sagrado onde as pessoas iam depositar suas
esperanças e pagar pelas graças obtidas. Uma cerca de ferro fora construída a
volta e uma capelinha maior havia substituído a anterior para abrigar a imagem
da Santa que havia crescido junto com a fé dos que nada mais tinham.
Reformei o meu próprio santuário e me resignei a
tentar resgatar os fiapos do passado para reconstruir o meu futuro que me
parecia cada vez mais lúgubre.
Então, em um dia que os pássaros cantavam nas arvores
frutíferas do jardim, sem competição de meninos que lhes roubassem o alimento.
Bateu-me a porta uma moça que quase não reconheci em seus traços cansados e
rosto envelhecido.
Dali parecia ser mais velha que eu, com sofrimento
maior que o meu, mas seus olhos ainda conquistadores a cobrar do mundo uma
resposta que não podíamos dar.
Assim que abri o portão entrou um relâmpago em forma
de menina arrastando atrás de si o passado, e de pronto se pôs, como se já o
fizesse desde sempre, a subir nas arvores e a colher as frutas que arrumava no
vestido preso a cintura a guisa de bolsa.
Fiz com que Dali entrasse novamente na minha casa,
desta vez apenas minha, e ofereci-lhe café. Aceitou constrangida não pelo
oferecimento, mas pelo pedido que pretendia me fazer. Havia me reconhecido em
minha incursão ao santuário e precisava novamente do meu auxílio generoso. Eu
que a julgava morta há muito tempo não me sentia em condições de recusar nada
ao milagre de vê-la, minha curiosidade acerca do que lhe passara sufocada pela
necessidade mais urgente de atender aquela que tomara como minha protegida em
tenra idade.
Pediu-me que cuidasse da filha por alguns dias, tinha
que se ausentar da cidade para buscar auxílio de parentes, as coisas estavam
cada vez mais difíceis e como era mãe solteira se tornavam piores ainda. Não
podia levar a menina em viagem tão longa e não conhecia ninguém que fosse de
tão boa confiança quanto eu.
Ora, claro que podia deixar a criança, estava eu de
férias no momento e podia ficar alguns dias a olhar aquele rebento do passado
que, pela simples presença, já enchera a casa de vida como há muito não se
sentia por ali.
Agradecida deixou-me uma sacola de roupas e alguns
brinquedos que a menina gostava. À custo aceitou alguns trocados que tinha a
mão para lhe dar, para ajudar na viagem, e comeu de bom grado, junto com a
filha, o almoço que havia preparado para mim.
Feito o arranjo, foi-se embora entre aliviada e
triste, como se partisse para enfrentar um demônio maior que a vida, se tal
criatura pudesse existir, apressada a temer que mudasse de ideia, o que a bem
da verdade teria feito se não estivesse impactado pelas artimanhas do destino a
me retomar passado e presente de forma tão brusca e inusitada.
Os dias se passaram e as dificuldades de convivência
com a filha de Dali foram superadas facilmente pela vivacidade que suplantava a
minha casmurrice habitual. Peguei-me até mesmo a sorrir sem motivos, para logo
entristecer ao saber da breve partida daquela luz que me iluminava os dias com
suas perguntas incessantes e o seu jeito de necessidade constante.
Dei-lhe provisoriamente o meu antigo quarto, que nem
sabia por que, havia mantido arrumado e mobiliado, enquanto me mudara para o
lugar de direito dos donos da casa. Contava-lhe histórias para dormir e deixava
a luz do corredor acesa para se temendo o escuro me encontrasse facilmente no
quarto ao lado. Esperava ouvir o som do sono dela para me refugiar por minha
vez nos braços imaginários dos meus pais. Todos nós precisamos de algum colo de
vez em quando.
Somente no final da semana, ao arrumar as roupas
lavadas da menina é que notei no fundo da sacola um saco com papeis. Era a
certidão de nascimento da criança, suja e amarrotada, e só então me veio à
lembrança o ultimo olhar de Dali.
Amaldiçoando-me pela burrice, e a mãe da inocente
criatura pela irracionalidade, pus-me desesperadamente a pensar como proceder
se estivesse correto em minha conjetura.
Recorri a uma amiga advogada, que me recomendou um
detetive, que fez o possível para encontrar Dali, mas não havia condições de,
no curto prazo ao menos, encontrar o destino da mãe desaparecida. Aconselhado
fiz todos os procedimentos necessários para ficar com a guarda da criança
enquanto a mãe não fosse localizada, se algum dia fosse, e não receber nenhum
tipo de punição legal por ter sido idiota a ponto de julgar que a inocência
fosse eterna.
Os dias das minhas férias foram gastos tentando
resolver um problema que não precisava ter, ao mesmo tempo que tentava não
punir ainda mais a criança, que era mais uma vítima da irresponsabilidade dos adultos, mas
que parecia ser capaz de lidar com a situação com mais tranquilidade que eu
mesmo.
Nisso os anos se passaram, acabei adotando
oficialmente Samara, o nome que estava na certidão de nascimento, e passei a
cuidar dela como a filha que nunca tive. Até hoje não sei quem salvou quem
nesta história, meus dias se enchem de vida a cada vez que Samara vem correndo
e me pula no pescoço como a querer garantir que ainda estou ali.
Há noites, depois que lhe conto alguma história antes
de dormir, ela me pergunta pela mãe e eu sempre respondo que deve estar dando
um jeito de voltar para encontrar conosco de novo. Ela me olha bem no fundo dos
olhos e me diz.
— Se ela voltar vai ter espaço para nós duas aqui?
E rapidamente eu respondo que “Claro que sim, a casa
é bem grande, cabe todo mundo”; dou-lhe um beijo de boa noite a cubro, e saio
antes que as emoções me traiam ainda mais.
Nesses dias fico até de madrugada olhando o portão
esperando que, por algum milagre, apareça novamente a menina Dali e venha
resgatar a nossa inocência.
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