Era uma vez um Pequeno Príncipe que
morava em um planetóide junto com uma Rosa que morria de medo de lagartas e,
portanto, vivia dentro de uma redoma cuidada de perto pelo zeloso garoto.
Claro
que a história do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry é muito mais
complexa, profunda, envolvente, sutil, do que o primeiro parágrafo pode dar a
entender. Da mesma forma que a história da humanidade em sua busca pela
felicidade.
Se
formos analisar profundamente as motivações de todas as invenções e descobertas
feitas desde os primórdios até a atualidade, chegaremos a um denominador comum
arquetípico: a busca da felicidade eterna.
Religiões,
governos, filosofias, sociedades, ciências, tudo já foi tentado para descobrir
a Pedra Filosofal que transformaria todas as angústias em algo infinitamente
melhor, maior e mais desejável. Porém, todas as tentativas ao longo dos
milênios redundaram em fracassos colossais e em um conhecimento cada vez maior da
sua antítese, a infelicidade.
O
que fazer quando o antídoto pode se tornar o veneno e vice e versa? Como saber
qual a dose certa para cada caso se não se sabe exatamente qual a doença a ser
curada? E se não for uma doença, uma disfunção, mas o próprio motivo da
existência?
Freud
inventou a psicanálise para descobrir as causas da angústia; antes dele os
filósofos gregos se debruçavam sobre o tema das mais diversas formas. Platão
chegou a dizer que a causa estava na mentira em que o nosso mundo se baseava,
mera sombra de um mundo perfeito que existia em algum lugar além.
O
filme Matrix dos irmãos Wachowski levou para os cinemas o mito da Caverna, de Platão, acrescentando-lhe entre outras coisas a influência da ficção distópica do cyberpunk, presente em Neuromancer de William Gibson, criando um futuro onde o personagem
Cypher prefere viver a mentira ardilosa e doce da Matrix (que esconde a máxima
escravidão do nascimento à morte) do que ter que viver em um mundo onde seria
impossível ser feliz.
“E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” reza o texto bíblico, mas
qual o preço dessa liberdade? Seria possível vivermos mais felizes ou preservar
a felicidade por mais tempo se brandíssemos a verdade como uma tocha que a tudo
iluminasse? Até o mais profundo interior da caverna?
A
moral e a ética condenam a mentira por um lado, mas a fantasia torna mais
suportável a crueldade da vida. Sabemos que a pequena Rosa na verdade
acorrentava com seus desejos e necessidades ao Pequeno Príncipe que, por sua vez, a mantinha
enclausurada em uma redoma protetora, satisfazendo-lhe as necessidades.
De
que liberdade estamos falando? Estaria a Rosa livre para viver a sua vida
feliz, trancada em uma redoma protetora? Acorrentada pelos seus desejos sempre
maiores e necessários? Acorrentando o servo em uma relação de dependência mútua
de satisfação até o tédio? Quando o Príncipe decide romper esse relacionamento, a Rosa opta por
encarar os seus medos, suprir as próprias necessidades; ou em uma análise mais
psicológica, encarar a dificuldade da maturidade.
Estaria
a Rosa finalmente liberta ao confrontar-se com a certeza de que nem todos seus
desejos seriam satisfeitos? Poderia jamais voltar a ter satisfação dos desejos, ter que prover suas próprias necessidades no esforço
de se manter viva, mas agarra-se a uma esperança de satisfação futura que
talvez nunca alcançasse de fato, uma ilusão auto-imposta para continuar sobrevivendo.
Cypher foi liberto da sua redoma protetora que também era o seu claustro para
uma verdade mais horrível do que o seu pior pesadelo, e para voltar a ter uma
vida idílica de sonho que só então descobriu ser-lhe mais satisfatória, optou
pela morte em vida nas mãos do seu algoz. Escravo voluntário e dócil da ilusão até o final de sua vida.
Não
seria a escolha de Cypher a mesma dos que apostam na felicidade do “além vida” em uma barganha com o gerente de seus destinos? Ou talvez a dos que buscam nas
drogas lícitas ou ilícitas uma saída fictícia, até que o sonho se torne irrevogável? Não lhe foi
dada a liberdade de escolher o que lhe parecia melhor?
Obviamente
que somos induzidos a considerar o personagem Cypher como um covarde traidor da Verdade, que deveria ser condenado aos piores castigos, retirada a sua
liberdade recém adquirida e condenado à morte. Mas espere, não foi exatamente isso que ele escolheu?
Ser sugado até a morte enquanto vivenciava uma ilusão de prazer abrindo mão de
ser livre e infeliz? Quantos na mesma situação fariam escolha diferente?
Há
quem diga que a opção da Rosa em suportar as lagartas a devorar-lhe o corpo para
poder ver as borboletas seria a mais correta, da mesma forma que os pais alimentam
os seus filhos a custa de si mesmos, alegrando-se ao vê-los crescerem e voarem
para se tornarem Rosas por sua vez enquanto buscam a felicidade.
O
imperativo primário da sobrevivência nos impulsiona através das insatisfações e
infelicidades da vida, nos dando o prazer do sexo para procriarmos, o prazer da
fantasia para aliviarmos a dor, o prazer da fé para continuar acreditando
apesar de todas as verdades dizerem que não seremos felizes por mais tempo que os
minutos que durarem a nossa satisfação, até nos acostumarmos com o obtido e
desejarmos mais, ou nos entediarmos por estarmos plenamente satisfeitos.
Na
sua obra A Igreja do Diabo, Machado de Assis aponta a eterna contradição
humana, a eterna insatisfação, principal causa da angustia existencial.
Shakespeare nos alerta para a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma
alma e no fundo sabemos que tanto a Rosa quanto Cypher jamais serão felizes
para sempre, como nos diziam os contos de fadas.
Ainda
assim continuaremos acreditando nessa ilusão de que em algum lugar, de algum
modo, teremos toda a felicidade possível, porque a outra alternativa, de que a angustia é parte fundamental da vida, seria
inimaginável e nos roubaria até mesmo os pequenos e verdadeiros momentos de
alegria que podemos conquistar e que fazem com que viver ainda continue
valendo a pena, apesar de tudo.
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