domingo, 15 de fevereiro de 2015

Do Pequeno Príncipe à Matrix – Uma história da Infelicidade por Danny Marks



            Era uma vez um Pequeno Príncipe que morava em um planetóide junto com uma Rosa que morria de medo de lagartas e, portanto, vivia dentro de uma redoma cuidada de perto pelo zeloso garoto.
Claro que a história do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry é muito mais complexa, profunda, envolvente, sutil, do que o primeiro parágrafo pode dar a entender. Da mesma forma que a história da humanidade em sua busca pela felicidade.
Se formos analisar profundamente as motivações de todas as invenções e descobertas feitas desde os primórdios até a atualidade, chegaremos a um denominador comum arquetípico: a busca da felicidade eterna.
Religiões, governos, filosofias, sociedades, ciências, tudo já foi tentado para descobrir a Pedra Filosofal que transformaria todas as angústias em algo infinitamente melhor, maior e mais desejável. Porém, todas as tentativas ao longo dos milênios redundaram em fracassos colossais e em um conhecimento cada vez maior da sua antítese, a infelicidade.
O que fazer quando o antídoto pode se tornar o veneno e vice e versa? Como saber qual a dose certa para cada caso se não se sabe exatamente qual a doença a ser curada? E se não for uma doença, uma disfunção, mas o próprio motivo da existência?
Freud inventou a psicanálise para descobrir as causas da angústia; antes dele os filósofos gregos se debruçavam sobre o tema das mais diversas formas. Platão chegou a dizer que a causa estava na mentira em que o nosso mundo se baseava, mera sombra de um mundo perfeito que existia em algum lugar além.
O filme Matrix dos irmãos Wachowski levou para os cinemas o mito da Caverna, de Platão, acrescentando-lhe entre outras coisas a influência da ficção distópica do cyberpunk, presente em Neuromancer de William Gibson, criando um futuro onde o personagem Cypher prefere viver a mentira ardilosa e doce da Matrix (que esconde a máxima escravidão do nascimento à morte) do que ter que viver em um mundo onde seria impossível ser feliz.
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” reza o texto bíblico, mas qual o preço dessa liberdade? Seria possível vivermos mais felizes ou preservar a felicidade por mais tempo se brandíssemos a verdade como uma tocha que a tudo iluminasse? Até o mais profundo interior da caverna?
A moral e a ética condenam a mentira por um lado, mas a fantasia torna mais suportável a crueldade da vida. Sabemos que a pequena Rosa na verdade acorrentava com seus desejos e necessidades ao Pequeno Príncipe que, por sua vez, a mantinha enclausurada em uma redoma protetora, satisfazendo-lhe as necessidades.
De que liberdade estamos falando? Estaria a Rosa livre para viver a sua vida feliz, trancada em uma redoma protetora? Acorrentada pelos seus desejos sempre maiores e necessários? Acorrentando o servo em uma relação de dependência mútua de satisfação até o tédio? Quando o Príncipe decide romper esse relacionamento, a Rosa opta por encarar os seus medos, suprir as próprias necessidades; ou em uma análise mais psicológica, encarar a dificuldade da maturidade.
Estaria a Rosa finalmente liberta ao confrontar-se com a certeza de que nem todos seus desejos seriam satisfeitos? Poderia jamais voltar a ter satisfação dos desejos, ter que prover suas próprias necessidades no esforço de se manter viva, mas agarra-se a uma esperança de satisfação futura que talvez nunca alcançasse de fato, uma ilusão auto-imposta para continuar sobrevivendo.
Cypher foi liberto da sua redoma protetora que também era o seu claustro para uma verdade mais horrível do que o seu pior pesadelo, e para voltar a ter uma vida idílica de sonho que só então descobriu ser-lhe mais satisfatória, optou pela morte em vida nas mãos do seu algoz. Escravo voluntário e dócil da ilusão até o final de sua vida.
Não seria a escolha de Cypher a mesma dos que apostam na felicidade do “além vida” em uma barganha com o gerente de seus destinos? Ou talvez a dos que buscam nas drogas lícitas ou ilícitas uma saída fictícia, até que o sonho se torne irrevogável? Não lhe foi dada a liberdade de escolher o que lhe parecia melhor? 
Obviamente que somos induzidos a considerar o personagem Cypher como um covarde traidor da Verdade, que deveria ser condenado aos piores castigos, retirada a sua liberdade recém adquirida e condenado à morte. Mas espere, não foi exatamente isso que ele escolheu? Ser sugado até a morte enquanto vivenciava uma ilusão de prazer abrindo mão de ser livre e infeliz? Quantos na mesma situação fariam escolha diferente?
Há quem diga que a opção da Rosa em suportar as lagartas a devorar-lhe o corpo para poder ver as borboletas seria a mais correta, da mesma forma que os pais alimentam os seus filhos a custa de si mesmos, alegrando-se ao vê-los crescerem e voarem para se tornarem Rosas por sua vez enquanto buscam a felicidade.
O imperativo primário da sobrevivência nos impulsiona através das insatisfações e infelicidades da vida, nos dando o prazer do sexo para procriarmos, o prazer da fantasia para aliviarmos a dor, o prazer da fé para continuar acreditando apesar de todas as verdades dizerem que não seremos felizes por mais tempo que os minutos que durarem a nossa satisfação, até nos acostumarmos com o obtido e desejarmos mais, ou nos entediarmos por estarmos plenamente satisfeitos.
Na sua obra A Igreja do Diabo, Machado de Assis aponta a eterna contradição humana, a eterna insatisfação, principal causa da angustia existencial. Shakespeare nos alerta para a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma e no fundo sabemos que tanto a Rosa quanto Cypher jamais serão felizes para sempre, como nos diziam os contos de fadas.
Ainda assim continuaremos acreditando nessa ilusão de que em algum lugar, de algum modo, teremos toda a felicidade possível, porque a outra alternativa, de que a angustia é parte fundamental da vida, seria inimaginável e nos roubaria até mesmo os pequenos e verdadeiros momentos de alegria que podemos conquistar e que fazem com que viver ainda continue valendo a pena, apesar de tudo. 

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