Agora falta pouco para este instante desaparecer, mas insisto em ficar aqui.
O sol ainda não conseguiu aquecer a brisa da maresia,
o suor frio do banco de concreto que varou a noite em solitária companhia.
Ainda não apareceram as hipnóticas ondas de vapor que brotam nos primeiros
instantes de forma quase sufocante, como um grito de alegria preso na garganta
do dia.
Os primeiros caminhantes, corredores, aparecem e se
assustam com a capa e o chapéu muito mais do que com o objeto em minhas mãos,
mas desviam, envergonhados ou assustados, os olhos dos olhos que fitam sem
pudor.
Eu poderia estender infinitamente esse instante,
congelado holograficamente como uma ínfima fatia de um rio. Mas isso seria redundância,
já foi feito antes por algo maior.
Observo os mundos globulares invadindo pouco a pouco
os caminhos transitáveis em trajetórias assimétricas pré-determinadas, sobre
duas, quatro, muitas rodas, solitários ou em grupos, alguns apenas sobre
calçados bípedes de formatos coloridos.
Novamente noto a falta que sinto da cor, da ordem
caórdica que permanece subjacente ao caos... Não posso pensar nisso agora, não
posso desperdiçar este momento novamente.
A moça se aproxima em arrojada iniciativa e senta ao
meu lado confiante na sua capacidade física e intelectual de sedução, e por um
breve instante gostaria de ser outro. E perco mais um instante precioso.
Ela fala algo que respondo com uma parcela de cognição,
um fio que posso deixar solto do complexo emaranhado dos meus pensamentos,
ancorando aquela possibilidade sanguínea das variáveis universais que continuam
seu trajeto, agora mais indiferentes.
Um par sempre causa menos estranheza ao conjunto que
um Imago, ainda que a junção dicotômica possa causar o estranhamento
rapidamente justificável pela sexualidade lasciva que é invocada do
inconsciente ou das memórias de curto prazo.
A Seminudez provocativa postural dela se digladia com
a minha indiferença hermética, mas a excitação está no ar. Observo seu efeito
nos músculos que se tencionam no macho alpha, esculpido em aparelhos anatômicos
rudimentares e em químicas perigosas, apertados ainda mais nas roupas
escolhidas para valorizar a forma física.
O olhar dele cruza com o meu em um desafio mudo que
se aproxima. Ressentimento e inveja resignificam o pisar que endurece como a
querer esmagar as pedras do calçamento. Mantenho fixo o foco visual, não é um
convite para uma contenda, mas uma análise profunda atitudinal. Prevejo em
frações de segundos as possibilidades de um ataque e as inúmeras formas de
neutraliza-lo eficientemente.
Só quando o medo invade aqueles olhos que se desviam
em curso e trajetória percebo o quanto fui influenciado por meus pares
indesejados. Tornei-me sem querer um eficiente predador que abate a sua vítima
antes mesmo de consumar a sua morte.
Percebo naquele discurso não verbal todas as
implicações obscuras que entrelaçam os discursos de sexualidade e política em
nuances agressivos/passivos e consigo ler toda a história antecedente com uma
resignificância inusitada que me surpreende e me faz sorrir como há muito não
ocorria.
A moça ao meu lado faz sua própria leitura,
conseguindo por sua vez a parcela de interpretação que julgava merecedora e
satisfeita de ter escolhido a abordagem correta se despede com expectativas
totalmente próprias, e incorretas, de um futuro próximo que já projeta em torno
de controles e amarras que possa manipular.
Eu a observo afastar-se, como o passado se distancia
do momento atual, deixando seu rastro perfumado, evanescente, a se esgarçar no
tecido do espaço/tempo que permanecerá fixo enquanto a minha mente se desloca
pelos quadros de possibilidades.
Em outra realidade eu a tomaria nos braços antes que
partisse. Em outra realidade eu abateria o predador antes que percebesse os
seus impulsos de se tornar vítima. Em outra realidade eu não estaria aqui. Em
outra realidade...
Aqueles que julgam me conhecer não conseguiriam
perceber a infinidade de mensagens que o silêncio encerra e, portanto, jamais
vão compreender a mim ou ao meu universo, e isso me torna ainda mais vazio de
possibilidades e pleno de outras tantas.
Em outra realidade este momento jamais seria
possível, ou seria conquistado de tantas outras maneiras e com tantas outras
correlações que infinitas linhas se desenrolariam criando inúmeros nos de um
futuro que talvez jamais se realize novamente.
Ajeito a capa e o chapéu, está na hora de voltar.
Desapareço diante do olhar indiferente dos que nunca
me viram e que, agora, jamais vão voltar a ver.
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