Houve um
tempo em que reunia todo poder de vida e mistérios de morte. De si brotava toda
sabedoria, estratégias de destino, sentidos, ilusões e sentimentos.
Era a Deusa Virginal, a Consorte
Celestial, Mãe de toda humanidade e de todas as artes, motivo e consequência de
todos os atos concebíveis, com os cabelos irradiando estrelas e os pés enraizados
na terra.
Sob o seu
manto a vida simples e natural, ao seu olhar os caminhos eram de busca pela
beleza em todas as coisas.
Mas os
filhos crescem, em tamanho e numero e espalhados pelos ventos, habitam em
outros lares. Ela fragmentou-se para acompanha-los.
Foi
virginal para alguns, mãe acolhedora para outros, sábia idosa em santos lugares
e, sacerdotisa de si mesma, era rainha de todos.
Na
quantidade de papeis necessários distribuiu-se em força e fragilizou-se. Tomou então
o complementar como seu protetor.
Mas
esqueceu de ensinar sobre o todo aos seus filhos e filhas, e com o tempo o peso
dos múltiplos papeis recaiu sobre seus ombros e ela, na servidão.
De inspiração para a beleza
maior, tornou-se necessidade de ideal menor.
Tornou-se
motivo para conquistas, para acúmulos, para excessos. De provedora de paz,
tornou-se sombria dama de guerra conclamando seus soldados para a batalha em
troca de prazeres e luxúria. E, com o tempo, de prêmio passou a espólio.
Sua força
acorrentada na servidão, sua multiplicidade condicionada a necessidades dos
dominadores, sua sabedoria desfeita em pedaços impossíveis, em luta contra o si
mesmo, descartada da unicidade.
Quebrado o
vinculo com o supremo, tornou-se terrena. Um corpo a seduzir e a servir, um
espírito a doar a luz e a penar na escuridão.
E de
fragmento em fragmento, de pedaços que se partiam, foi perdendo o entendimento
de si e buscando-o cada vez mais no que lhe faltava.
O guerreiro
que lhe daria a sua vida, tornou-se o poeta que cantava a saudade e a perda. Do
consorte se tornou amante, às vezes dona, às vezes objeto.
E tornou-se mulher, sacerdotisa,
prostituta, mãe, filha, estranha, corpo cristalino em frágil beleza, molde,
motivo, horror, amor, desejo, dor, esteio, corrente, sangue e suor.
Enclausurada,
exposta, armazenada e servida na necessidade, na ansiedade de alcançar glórias
do passado, através da reconquista de si através do outro, perdeu-se novamente.
E de inspiração para o sublime
tornou-se reprodutora do poder estabelecido.
Revoltou-se contra a natureza de
si projetada no mundo e em virulenta corrupção de seu ideal, voltou-se contra
suas partes lançando-se em embates que valorizavam o que possuía e desmereciam
o que poderia se tornar.
Destituída
do que lhe parecia virginal, em sua essência de amante, deixou de ser mulher,
não por abrir mão de vaidades ou compartilhar o pouco que possuísse com seu
consorte, mas por deixar de acolher em si o amor que elegesse na busca pelo
possuir que pudesse alcançar através do que lhe pertencia na troca que se
fizesse.
Valorizou a
sedução e o sexo como fonte de conquista e caiu na armadilha de ensinar aos que
deveria resgatar, para ser resgatada, a vilania da posse, a corrupção do todo
na busca da satisfação imediata pela parte.
Cada vez
mais separou-se de si mesma, adotando por vezes a parte que lhe era menor como
estandarte de luzes, e lançou-se a luta com as mesmas armas que a subjugavam e
a partiam em pedaços.
E mesmo o
corpo deixou de ser inteiro e passou a ser rosto, cabelos, seios, bundas,
pernas e pele. Deixou de ser natural e estendeu-se na confecção cosmética da
suposta perfeição, vencida no discurso das vencedoras fabricadas.
Despiu-se
da inteligência para se refugiar em fragilidades, despiu-se de valores para se
tornar desejável, despiu-se da sensualidade para se tornar objeto, despiu-se
para encontrar-se.
E por não conseguir,
incorporou a busca pela igualdade ilusória que lhe roubaria definitivamente a
pluralidade de ser múltipla.
Violentada
por si mesma, voltou-se contra si em fúria cada vez mais injusta, reduzindo-se
ao extremo.
E o poeta que tanto tempo levou para
entendê-la, chorou os pedaços que restaram e na montagem imaginária, tenta
restabelecer a dignidade que, decadente, ameaça desaparecer para sempre.
Nesse
suspiro é que resiste a inspiração da humanidade e a esperança de que a Musa, ao
ouvi-lo, retorne a Ser.
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