Muitas
vezes me perguntam por que escrevo. E a resposta que acabo dando é longa e
imprecisa. Mas descobri que escrevo porque tenho algo para dizer, mesmo que
ninguém queira ouvir. Não me importa que tenham dito isso antes, provavelmente
disseram, mas não altera o fato. Foi o Eusébio que me provou de forma
incontestável.
O
Eusébio é uma dessas pessoas que nenhum escritor poderia descrever decentemente
como personagem. Os cabelos brancos ralos escondidos em um chapéu de feltro
surrado, nas mãos um tablet, que seria comum entre dedos mais jovens.
Sentei-me
ao lado dele enquanto acompanhava o arrastar silencioso dos números no placar
eletrônico que substituía o ultrapassado grito de “próximo”.
Os
dedos enrugados deslizavam pela tela manipulando as cartas do jogo.
—
Viu só? É uma roubalheira isso.
—
Desculpe, estava distraído, o senhor disse...?
—
Já jogou copas? Nem se dê ao trabalho. Não importa o que faça, não vai passar
dos 40% de acerto. Se joga mal o sistema dá um jeito para que ganhe sempre, se
joga bem, rouba para que perca. Programado para enganar, é isso que é.
Eu
ri, não costumo jogar nada, às vezes gasto algum tempo com Mahjong, mas só para
gastar tempo mesmo. Mas chamou a minha atenção o fato de um senhor daquela
idade se interessar por equipamentos modernos. Quando olhei para a tela, estava
no facebook digitando furiosamente. O que diria Charles Chaplin desses tempos
modernos?
—
Isso é uma palhaçada, não vai dar em nada, mas todos vão pensar que ganharam
alguma
coisa. O sistema é mais esperto que todos juntos, será que não veem isso?
O
meu numero estava longe de ser chamado então, tendo visto o que ele digitava,
respondi.
—
O senhor é contra as manifestações que estão acontecendo?
—
Claro que não. A juventude precisa ter alguma causa para se revoltar contra a
vida, mas sei que isso não vai mudar nada. Trocam-se os panos, mas bundas são as
mesmas.
Não
havia animosidade ou crítica no tom de voz dele, apenas falava como se
descrevesse a receita de um bolo que já comera muitas vezes e continuava
indigesto.
—
Pelo que soube, conseguiram mobilizar o congresso, teve repercussão
internacional inclusive, e até já conseguiram baixar o preço das passagens.
—
O senhor é jornalista, ainda que mal lhe pergunte?
—
Não, atualmente sou professor, escritor nas horas vagas.
—
Já fui jornalista, agora sou fardo do sistema. Isso que o senhor está vendo, já
vi de dentro, de fora e dos lados. Sabe cobertor curto? — cantou uma modinha
dos seus tempos de juventude, provavelmente — é a mesma coisa. Descobrem um
santo para cobrir outro e fingem que fizeram alguma coisa, mas o santo sempre
fica com algum lugar ao frio. Não vão dar aumento nas passagens, mas vão tirar de
onde o subsídio? Quem vai pagar da mesma forma, mas com outro nome? O
contribuinte.
—
Talvez, mas ainda acho válido que os jovens estejam reivindicando melhorias, se
manifestando de alguma forma.
—
Já estava na hora, antes que essa juventude estivesse completamente alienada da
vida. Só não acredite que isso é coisa da cabeça deles, tudo manipulado pelo
sistema.
—
Então o senhor acha que tem alguém por trás disso? Dessas manifestações.
—
Não entendi. Então o senhor acha que não há um grupo por trás dessas
manifestações, e tudo não passa do resultado natural de uma configuração social
específica?
—
Claro, não percebe? O sistema sempre se reinventa, mas sempre fica do mesmo
jeito, só que com uma máscara diferente. Como aquele jogo, se o povo se
acomoda, o sistema faz com que se movimentem; se tentam mudar muita coisa, são
freados. Quem manda é o jogo que foi programado para obter sempre a mesma
margem.
Já
havia ouvido todo tipo de teoria conspiratória, mas essa era a primeira vez que
me falavam de um sistema com uma espécie de mentalidade própria, e diabólica
ainda por cima.
—
Sei que existe um sistema, ou vários, mas ele é criado e mantido de certa forma
pelas pessoas que o compõem. O senhor está falando como se houvesse uma
mentalidade maior por trás disso, além da soma das partes. Uma evolução da
sociedade em um modelo Darwinista? — Eu já entrara no esquema de falar
absurdos, afinal que tipo de coisa que se conversa em uma fila de espera?
Discutir ideologias? Mudar mentalidades?
—
Não sou teórico, sou o Fardo do Sistema, mas por isso mesmo ele não me engana
mais. Já acreditei nessas bobagens, e para falar a verdade, tomara que essa
molecada continue acreditando. Melhor se engajarem em alguma coisa que pareça útil
do que se perderem em drogas ou coisa pior. Mas acredite em mim, vai mudar tudo
e vai permanecer igual.
—
Por que o senhor diz que é o fardo do sistema?
—
Aposentado há mais de dez anos. Pense bem, para o sistema faria um favor se
tivesse morrido ha pelo menos cinco anos. Estão tentando até hoje, mas me
diverte engana-los. O senhor é escritor,
deveria escrever sobre isso.
—
Talvez eu escreva para o meu blog. Posso colocar o seu nome?
—
Claro. Todo mundo me chama de Eusébio. Qual o endereço do seu blog?
Eu
lhe dei o meu cartão e logo depois ele foi chamado. Fiquei pensando sobre
aquele homem que se recusava a ser um lugar comum, a ser um estereótipo da
sociedade. Fiquei pensando em como havia me tornado preconceituoso sem saber, e
como as verdades que acreditamos podem ser simplesmente falsas ideologias que
incorporamos como nossas.
Cheguei
em casa e fiz o teste. Consegui passar dos 40%
no jogo de copas, mas só por pouco tempo, logo o computador começou a
fazer absurdos para que perdesse, por melhor que jogasse. Mas não perdi mais do
que os 38%, por pior que jogasse.
Quando
constatei definitivamente essa verdade, resolvi escrever para o blog. Espero que
o seu Eusébio esteja lendo e veja que cumpri com a minha palavra, talvez isso
lhe dê forças para continuar sendo um fardo do sistema por muitos anos, e quem
sabe algum dia ele possa (e eu também) ver o Gigante Acordar de verdade. Apesar
do jogo de cartas marcadas.
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