Ali,
naquela casa quase de esquina, onde antes havia um pé de manga e goiabeiras nos
fundos. Aquela casa que já foi amarela e branca. Ali morava um menino de traço
torto e olhos de nuvens.
Era
um menino simples, como todos os outros de sua época. De pé no chão de areia
batida, de joelho esfolado nas brincadeiras de rua, de fôlego enorme nas
corridas de pernas ao vento.
Também
era um menino de magias que tornavam latas velhas em carros potentes, pedaços
de madeira em cavalos alados e pneus velhos em maquinas poderosas de
velocidades além da luz, além do som.
Silêncio!
O
silêncio muitas vezes era o seu companheiro.
Um silêncio povoado de
vozes que contavam histórias de outros lugares.
Lugares
macabros com seus monstros que surgiam à noite para enfrentar heróis
destemidos, munidos apenas de sua inteligência contra as forças do além.
Além
das estrelas em mundos fantásticos ou na próxima quadra em tocas de mato e
tiros de estilingue nas garrafas.
Também
havia os silêncios da dor, das lágrimas surdas que confessavam ao ar suas
mágoas úmidas de amor, de vazios a serem preenchidos ou apenas respeitados em
seus sagrados e eternos receptáculos de segredos.
E
o menino conhecia segredos secretos, inconfessáveis, compartilhados apenas na
alma que viajava através de paredes e símbolos, invisível para os indivisíveis,
próxima dos distantes.
Ali,
naquela casa onde o menino dormira nos galhos ramificados em braços a embalar e
sonhara com outros tempos e outras vidas resgatando suas sabedorias ancestrais
em palavras rabiscadas nas folhas soltas que iam sem jamais voltar,
preciosidades a serem dadas e esquecidas ao segundo olhar.
Foi
lá que o menino conheceu a fonte das fontes e bebeu dela os seus sabores, e
respirou o ar fresco daquele lugar que o contaminou por toda a vida com um
sorriso triste e de traço torto.
O
menino acreditava e isso era todo o seu tesouro.
E
hoje quando eu passo por aquela casa, quase na esquina, e não vejo mais as
goiabeiras e o pé de manga. Hoje eu fico pensando, onde estará aquele menino de
pernas rápidas e alma ligeira?
Aquela
casa que não é mais amarela e nem mesmo branca, não há mais um menino com nuvens
nos olhos, mas ainda é uma casa. Envelhecida, desgastada e com rachaduras; reformada e reformulada, mas ainda é uma casa.
Talvez, em algum lugar, ainda haja um galho de esperança em que o menino possa
dormir os seus sonhos embalados ao vento. E pode ser que ele ainda recolha a sabedoria
simples desse lugar pouco visitado e traga com seu novo traço de máquina as coisas
mágicas que encontrar por lá.
É nisso que eu preciso acreditar.
4 comentários:
Danny , que bonito !
Penso que o menino sonhador é você .
Deixo uma citação de Lygia Fagundes Telles que vai de encontro com minha percepção do texto : " Na escrita , você tira sua máscara , mas nem toda ; é o leitor , no fim , quem te ajuda a puxá-la ."
Beijos e boa semana
PS : Obrigada pela visita e pelo doce recado que me deu de presente .
Marisa,
Eu ensino aos meus alunos que não há mais o autor dentro de um texto publicado, parte dele se amalgama com o Outro, representado pelo leitor, e cria o Eu Lirico que compartilha os sentimentos e os saberes dispostos no texto.
Estamos todos dentro de um texto ou em nenhum deles, depende da habilidade do autor de criar essa ponte e do leitor de querer trilha-la.
Fico feliz que tenha me visto neste texto, e que esse menino tenha andado ao lado da menina sonhadora e ambos tenham compartilhado alguns belos momentos.
Sempre bom ter a sua companhia, seja no Retratos ou no Eu, Marisa.
Beijos Mágicos e uma ótima semana para você.
Fantástico texto, pleno de beleza.
Obrigado, AnaMar,
Seja bem vinda aos nossos Retratos
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