quinta-feira, 23 de julho de 2009

O PRÍNCIPE - Danny Marks




O cadáver estava às margens do lago e, como determinara, não havia sido tocado até sua chegada. Os guardas se mantinham afastados por temor e respeito.
Desde que curara o rei e se tornara o médico da corte, havia conquistado, ano a ano, mais influência e poder. Fora encarregado de descobrir que tipo de criatura estava matando os aldeões, devorando partes de seus corpos. Os tempos estavam difíceis para um mago e a morte da amante do príncipe, encontrada boiando no lago com o pescoço cortado, não lhe facilitava a vida.
Com cuidado, o mago examinou o cadáver antes de ordenar que este
fosse levado a seu laboratório. Precisava cuidar do assunto com urgência.
(...)
Catherine ergueu a barra do longo vestido antes de entrar no barco. O príncipe estava radiante, como sempre. Adorava esses encontros furtivos, quando saíam para o meio do lago e se entregavam, um ao outro, sem que olhares indiscretos atrapalhassem. Tinham a mesma idade e se pareciam demais, como irmãos. Meio-irmãos, na verdade. Possuíam o mesmo pai apenas.
Catherine era filha bastarda do rei com uma das empregadas do castelo. Sorte ter nascido menina ou teria sido morta “acidentalmente”. A rainha não toleraria ameaças ao seu único filho, herdeiro do trono.
Uma menina recatada e tímida que ganhara a confiança da rainha e se tornara camareira até a morte dela. O príncipe apaixonou-se por Catherine.
Não tinham segredos desde a infância. O príncipe planejava o futuro deles, juntos, quando assumisse o trono. Futuro não tão distante, aparentemente, pois o velho rei já apresentava sinais de uma grave doença que só mesmo o mago conseguia ludibriar.
A lua refletida na água plácida do lago foi a única testemunha dos eventos que ocorreriam naquele barco.
(...)
O príncipe entrou no laboratório do mago com o andar altivo e firme que lhe cabia. O cadáver repousava sobre a mesa de pedra, coberto por um manto.
— Um predador mata por comida ou por segurança. Só um assassino mata por prazer, alteza.
As palavras eram frias como o aço de uma lâmina, entoadas com precisão. O mago sorriu discretamente com o sobressalto do outro. Gostava de estar em vantagem.
— Mais uma vítima do monstro?
— As vítimas do monstro são dilaceradas, alteza. Ele provavelmente as devora. Não é este o caso. Era para este cadáver ter permanecido no fundo do lago, mas as amarras que o prendiam ao barco estavam frouxas e ele acabou se soltando antes do tempo.
O mago parecia falar consigo mesmo, como a juntar as peças de um jogo.
— Então... Quem matou Catherine? — cobrou o outro.
A tensão do príncipe era visível, suas mãos apertadas até ficarem exangues.
— Diga-me você: como soube ser ela que havia morrido? Ordenei aos guardas que não comentassem o assunto. Aliás, diga-me... por que você matou o príncipe, Catherine? Os olhos de Catherine se fixaram nos olhos do mago. Era impressionante a semelhança com o meio-irmão. Não havia medo em seu olhar, apenas dúvidas.
— Esquece que acompanhei o seu nascimento? — prosseguiu o mago. — Não há muitos segredos para um médico da corte. E este cadáver tem na coxa a marca de nascença do príncipe. Além disso, eu sempre soube que você era um homem. Fui eu quem sugeriu à sua mãe que escondesse o fato para poupar sua vida.
— E por que faria isso?
Os olhares se enfrentavam, uma batalha de vontades e determinação, as peças tomando suas posições, cada adversário avaliando o outro e suas possibilidades.
— Para salvar meu filho. Qual pai não faria isso?
Catherine deu um passo para trás. Não, não podia ser...
— O rei nunca se curou da infertilidade, apesar de meus remédios.
No fim, ele só precisava de um herdeiro e eu, de um lugar onde pudesse descansar meus ossos com conforto. Algumas gotas de soporífero, acesso a todos os leitos onde o rei pudesse dormir e estava feito.
O mago respirou fundo. Finalmente a verdade fora dita. Catherine se aproximou do corpo sem vida do príncipe e tocou suavemente o manto que o cobria.
— Ele gostava de se vestir de mulher, se sentia mais livre. Por vezes, trocamos de lugar por brincadeira. Nos tornamos amantes... — murmurou. — Mesmo sendo irmãos...
— Nunca imaginei que você chegaria a ambicionar o lugar dele.
— No princípio, era brincadeira — continuou ela, ignorando-o. — Uma forma dele se libertar, de se vingar de todos que exigiam que fosse o que não queria ser. Eu comparecia às festas e ele me servia. Todas as regalias da corte, todo o luxo e poder que eu jamais teria. Desejava casar comigo, o tolo.
Quando percebeu que nunca poderia, quis abandonar tudo por mim, fugir.
Contar a todos se preciso fosse. Eu não podia permitir isso.
O mago tocou-lhe o ombro, confortador.
— Está no sangue sobreviver. Você não o mataria se não fosse preciso. Não se preocupe. Posso consertar as coisas e...
— Você sempre controlou tudo, não é? Sabia de tudo e nada fez... A verdade é que todos somos apenas peças de seu jogo sórdido. Maldito!
Com um grito histérico, Catherine sacou a adaga oculta sob sua túnica, a mesma arma que matara o meio-irmão, e golpeou várias vezes o mago. Este tentou usar as mãos para se proteger. Ao final, deslizou como uma sombra para o chão ensangüentado.
Percebendo que todas as provas de seus crimes estavam ali, Catherine agarrou uma das lamparinas e derramou seu óleo em cantos estratégicos do laboratório. Bastou somente uma vela acesa para incendiar o lugar.
Logo o rei morreria. E Catherine, no lugar do príncipe, estaria livre para assumir seu lugar de direito. Nada, nem ninguém, poderia se interpor entre ela e o trono.
De repente, os pêlos de seu pescoço se eriçaram. Um rosnado que parecia vindo do inferno surgiu entre as chamas
— Só um assassino mata por prazer...
O grito desesperado de Catherine não foi ouvido. Ela tentou fugir, mas alguma coisa havia trancado a porta.
(...)
O terceiro filho do velho rei, mais um bastardo gerado entre a criadagem e levado a um lugar distante para sua proteção, acompanhou da sacada do castelo o funeral de seu pai. Agora ele era o único herdeiro do trono. Seu irmão mais velho, o príncipe, havia morrido dias antes, preso em um incêndio acidental. Alguns boatos, porém, contavam que ele
enlouquecera ao perder a jovem Catherine. Ateara fogo ao cadáver, preferindo morrer junto à amada.
O jovem bastardo, reconhecido como novo herdeiro pelo pai em seu leito de morte, recebia um reino estável, controlado nos bastidores pelo mesmo homem que conseguira livrar o reino da besta assassina e cuidara do rei até seu último suspiro: o mago.
Ninguém ousaria se levantar contra a magia daquele homem que, com seu poder, espantara a fera e trouxera a paz no momento de tragédia.
Ainda mais alguém que havia declarado sua lealdade incondicional ao novo rei.
(...)
O mago viu o menino acenando para a multidão que o aplaudia, feliz. Sorriu nas sombras. Como havia sido fácil encontrar um órfão e apresentá-lo como o filho bastardo do rei! A multidão ansiava por ser governada, conduzida como ovelhas pelo pasto... Ele correra um grande risco drogando seu paciente para que este reconhecesse o suposto bastardo.
Fora o último ato de um rei outrora poderoso.
Os ferimentos do mago ainda doíam. Em breve, porém, estaria pronto para partir. Os reinos vizinhos já se movimentavam em suas fronteiras

Um comentário:

mentira disse...

minha vitória é régia. meus sapos que digam...

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