Sabe da última polêmica? Não tem, pelo simples fato que jamais vai ser a última, apenas a mais recente que alguém inventou por algum propósito que poderá ou não ser atingido. Recentemente há uma tendência a revitalização dessa metodologia de provocar o outro através de atos ou palavras de duplo sentido e múltiplas interpretações. Digo recente porque não é algo novo, embora a forma como seja utilizada pode ser recente, incorporando novas tecnologias.
Quando falo em
tecnologias não digo apenas as novas formas de mídia, tecnologia vai além
disso, significa algum tipo de conhecimento que pode ser transmitido e
utilizado para algum fim, nesse sentido as técnicas de manipulação e
apresentação da informação são tecnologias também, não apenas os aparelhos ou
mídias em que aparecem.
Quem trabalha com textos escritos ou visuais aprende
bastante sobre os usos das tecnologias de informação para poder fazer melhor o
seu trabalho, mas para o público em geral muitas coisas passam despercebidas e
apenas os efeitos são sentidos. Há os que dizem que é possível através do
conhecimento das técnicas envolvidas ficar vacinado contra a manipulação, não
acredito nisso, embora concorde que é possível tornar mais difícil que os efeitos
sejam sentidos quando se conhece os mecanismos que os produzem, algo como
perder a encanto pela mágica quando se sabe como o mágico consegue ludibriar a
plateia, mesmo que não se perceba o truque durante a sua apresentação.
Esse também é um assunto polêmico, mas como todos do
gênero é interessante poder ser discutido, afinal o objetivo verdadeiro e
necessário da polêmica é justamente provocar um debate racional e saudável. Mas
quando a ferramenta é usada para outros fins que não os quais foi criada para
executar ocorre o que podemos chamar de deturpação de propósitos. E é o que
tenho observado muito em relação a ferramenta da polêmica.
Recentemente houve uma grande polêmica sobre a
Pós-Verdade, um neologismo criado para as situações em que se nega veementemente
uma verdade consensual com o uso de uma interpretação amplamente divulgada
apoiada em fatos selecionados especialmente para reforçar a interpretação dada,
recortes da verdade realinhados em uma sequência que parece ser verdadeira, mas
não é. Apesar de ainda amplamente usada, a pós-verdade tem sido ridicularizada
e denunciada de diversas formas, reduzindo o seu efeito danoso, mas não
eliminando-o. O problema é que todo vírus não tratado até o extermínio,
adapta-se ao remédio e fica mais forte. É o que aconteceu quando a pós-verdade
se fundiu com a polêmica.
Basta uma rápida olhada nas redes sociais e poderá ser
constatado que as postagens mais comentadas são aquelas que envolvem algum tipo
de polêmica, mobilizando exércitos de defensores e detratores com a mesma
paixão. Espere, paixão e polêmica não combinam por um pressuposto básico que
tudo que é feito emocionalmente exclui automaticamente um raciocínio lógico e
deforma a argumentação, certo? A menos que esse seja o efeito desejado,
utilizado com habilidade na construção da polêmica para alcançar o seu
objetivo.
E a polêmica apaixonada tem invadido as redes com todo
tipo de objetivo manipulatório, desde a venda de um livro porque supostamente
houve um engodo prévio, até a desautorização de instituições por conta de
situações polêmicas habilmente trabalhadas para confundir. Tenho visto desde
vídeos editados para apresentar uma posição que parece contrária a uma
determinada pessoa, até recortes de cenas apresentados para embasar teses
polêmicas em si mesmas. O que é direito? O que é arte? O que é ético? Tudo pode
virar polêmica e ser apresentado com o viés necessário através da junção da
pós-verdade com a paixão polêmica.
Ah, mas isso é bom, as pessoas estão falando mais sobre
as questões apresentadas. Estão falando mais de política, estabelecendo limites
éticos, questionando as instituições, etc. Será? A que preço isso vem sendo
feito e com qual objetivo?
Recentemente vi um vídeo claramente manipulado sobre um
possível candidato a presidência do Brasil que supostamente teria o efeito de
validar a sua inadequação e demonstrar a falta de caráter e qualificação para o
cargo. Mas será que é esse o objetivo? Ou será que a exibição obvia da
manipulação não deixa a dúvida sobre todos os outros fatos levantados? Aquilo
que poderia comprovar a inadequação pode ter o efeito inverso de criar uma
dúvida sobre um (já declarado anteriormente) ataque desleal contra alguém que,
até prova em contrário, é inocente e está sendo perseguido de forma abjeta,
desprezível, provocando a simpatia pelo ofendido e não a aversão.
A desconstrução de argumentações de algumas
instituições e suas resoluções apresentadas sem um cuidado (ou com um cuidado específico?)
pode desautorizar qualquer resolução justificada e enfraquecer todo um conjunto
a partir de uma falha ocasional. É como construir uma lógica tendenciosa a
partir de recortes que validem a teoria ou a condenem de vez. Alguém poderia
dizer que aviões não podem voar porque maças caem das arvores, por exemplo, ou
que não se deve dar tratamento humanitário para pessoas que matam e assassinos
deveriam ser mortos para evitar que matassem novamente, mas quem seria o
carrasco assassino final? Ou há justificativa para alguns assassinatos e outros
não?
A deturpação de argumentos contrapostos por recortes
polêmicos se tornou a maior e mais eficiente ferramenta da pós-verdade,
utilizando as paixões e os medos inconscientes de forma eficiente para criar um
efeito amplificador que corrompe efetivamente qualquer projeto racional de um
debate. Não dá para argumentar contra algo que, deslocado do contexto, é
apresentado como argumento, ainda mais se dentro do contexto original teria o
efeito oposto. Se alguém é a favor de algo em uma situação, fica
automaticamente proibida de ser contra outra situação similar, mas com
significantes diferentes, ou vice e versa.
Se digo que gosto de bananas, como ser contra bananada
ou a fruta junto com a comida, por exemplo? Não disse que gosta de bananas?
Então vai ter que gostar de banana em qualquer contexto ou está sendo
hipócrita. Fica automaticamente obrigado a gostar de banana com arroz e feijão,
ou com aveia, ou feita em doce, ou temperada com sal e pimenta, ou... Pois é,
dessa mesma forma que as polêmicas estão sendo tratadas, em uma cortina de
desinformação apaixonada de pós-verdades que tem por único objetivo possível a
manipulação subvertida de racionalidades e sentimentos para atingir um objetivo
particular inconfessável.
A diferença entre remédio e veneno é uma questão de
dose correta e intencionalidade. E parece que, cada dia mais, aqueles que tem o
conhecimento das ferramentas da informação as usam para seus fins particulares
das mais variadas formas, sem qualquer apego pela ética ou preocupação com o
coletivo. E se a informação pode ser manipulada dessa forma negativa, a única
solução possível para impedir ou minimizar seus efeitos danosos continua sendo
mais informação, mais transparência, mais criatividade na solução do problema
que afeta a todos nós, mesmo que estejamos cientes disso, pois não há vacina
possível para impedir a doença, mas há tratamento. E se não concorda com isso,
apresente-me seus argumentos sem paixão e estarei disposto a conversar sobre
isso porque adoro boas polêmicas, feitas da forma correta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário