— Não tem asas!
Duas gotas grossas caíram sobre
as finas cicatrizes brancas dos pulsos. Deixei por alguns segundos que
extravasasse, tinha que ficar atento, nesses momentos ela sempre resvalava para
algum canto inatingível. Precisava manter o contato, criar uma ponte...
— Por que acha que ele disse
isso?
— Mikel? Por que não diria? Ele
sabe dessas coisas, tem que saber, afinal...
— Não, digo, o que o motivou a
falar isso para você?
Ela me olhou profundamente, como se
quisesse pesar a minha alma em uma balança de ouro. Por certo eu seria
condenado; se ela fosse realmente capaz. Levantou-se, abriu a blusa descobrindo
os seios e as costas, virou-se mostrando a imensa tatuagem que lhe cobria o
dorso. Asas. Asas negras como a melancolia, escorrendo pelas suas costas em
lava derretida, manchadas de entardecer. Nunca havia visto algo tão belo e
deprimente.
Ela cobriu as asas como se puxa o
lençol sobre um cadáver. Voltou-se ainda com os seios semidesnudos, tremia ao
abotoar a blusa. A cabeça era de rendição, havia me revelado, em um impulso,
muito mais do que pretendia e agora estava com medo de me olhar.
Mantive um silêncio respeitoso,
mais pelo êxtase que aquela visão me provocara do que gostaria de admitir...
Quem poderia ter feito algo tão belo e terrível? Deus...
— Você mostrou para ele? Por isso
que Mikel foi tão duro com você?
— Mikel que fez! Depois que
fizemos amor...ele sabia, e ainda assim...
Finalmente ela me encarou com
desafio. A lembrança do seu suposto encontro com Mikel a tornava poderosa; lhe
emprestava uma fúria desafiadora. Por um instante tive a impressão de que sua
figura se agigantava à minha frente, absurdo.
Sustentei o olhar mantendo o
distanciamento, uma pergunta pairando como uma espada pronta para desferir o
golpe fatal.
— Sim, Anjos podem fazer amor com
humanos. Por que não poderiam? Foram feitos a nossa semelhança.
— Interessante, suponho que Mikel
lhe tenha dito isso também. Mas não vieram antes de nós? Não seria o contrário?
Talvez a afirmação de Mikel não seja tão correta...
— Claro que não? Ele nos criou à
sua imagem e semelhança, depois fez os Anjos, mais perfeitos que nós, somos o
protótipo. Então os enviou ao princípio para que criassem a Sua Obra. Você não
entende que para Ele o tempo não é igual como para nós? É... apenas uma coisa
que... tipo assim... se dobra, está lá o tempo todo e é você que avança em um
sentido ou outro e...
Ela estava ficando agitada, fiz
que compreendia para que se acalmasse. Havia tantas implicações no que ela
dizia que precisaria revisar todas as minhas notas, talvez falar com...
— Estou grávida. Ele nunca vai
voltar.
— Como assim? Está grávida de
Mikel? Por que ele não voltaria? Ainda mais sabendo que está esperando um
filho dele. Ou ele não sabe?
— Quando se vai para o início não
há mais volta... Só um Anjo poderia me levar lá.
— O seu psiquiatra já sabe que
está grávida? Conversou com ele a respeito?
— Crianças são... como anjos sem
asas, Mikel me disse. Esta...pode me levar...
Ela saiu correndo da sala, tentei
impedi-la, mas já estava longe demais. Peguei o telefone, precisava avisar da
situação. A coisa se complicara muito mais do que imaginara a princípio.
Comuniquei o ocorrido, alguém tomaria providências. Talvez até conseguissem impedi-la
a tempo.
Mas isso não importava mais.
Minha mente se voltava para aquelas asas, aquela imagem perfeita de algo que
não existia mais. Mikel era apenas uma criação dela. Então quem teria feito
aquilo? Por quê? Para nos insultar? Anjos não tem asas, não mais.