quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Nó de Gravata – Danny Marks


                Ficou olhando aquele pano pendurado no pescoço como se fosse um novo membro que houvesse nascido ali. Há vinte e cinco anos, com uma regularidade quase psicótica, arrumava a tira colorida com voltas, em um nó perfeito. Mas não hoje.
                Agora era uma excrescência, aquele pano-membro depositado sobre o seu pescoço. Não lembrava o que fazer e o susto, da mulher batendo na porta, não colaborou em nada para melhorar o seu humor.
                Abriu um sorriso desconfortável, uma suplica murmurada.
                Poderia me ajudar com isto?
                Não conseguia nem mesmo enunciar o seu problema, como se fosse tão ridículo alguém da sua idade ter um problema. Algo tão simples que nem merecia resposta. E assim ficou.
                Ali atrás da mulher que arrumava o batom e o delineador com perícia como a debochar dele, e magicamente o nó se fez, apertado sobre o pescoço. Limpo, ascético, como de costume.
                Saiu para trabalhar ainda pensando no ocorrido. Qual o problema de esquecer como dar um nó? De qualquer forma conseguira, sem pensar, não é? Quantos milhares de pessoas no mundo todo deveriam ter enfrentado algo assim ao longo do ano?
Não é algo tão grave como esquecer a chave no carro quando se sai do estacionamento, ou o andar em que se trabalha.
Apertou a chave no bolso para ter certeza que a levava consigo, enquanto apertava um número no elevador. Até conseguiu sorrir diante da perspectiva de contar para o sócio a coisa ridícula que acontecera de manhã.
                Mas ao abrir da porta o pânico invadiu o pequeno cubículo de aço polido, fracamente iluminado. Aquelas portas enfileiradas como soldados de um pelotão de fuzilamento. Uma bala aguardando para lhe trazer o fim, mas de que lado?
                Andou lentamente tentando decidir. Estava no andar certo? Qual era o número mesmo? Pensou no nó da gravata. Instinto é algo maravilhoso, mecânico. Com recursos de memória que ultrapassavam a vontade. Fechou os olhos, direita ou esquerda?
                O suor frio já lhe molhava o colarinho impecável. Uma luz no fim do túnel e ele como uma mariposa se sentiu atraído para o ultimo portal. Seu nome lavrado no vidro, claro.
                Sentiu-se reconfortado no ambiente familiar. Tudo arrumado e limpo, um cheiro de lavanda que combinava com o creme de barbear.
                Passou a mão no rosto dando-se conta que pelos haviam crescido. Não lembrava quando havia sido a ultima vez que se barbeara. A lâmina correndo áspera na pele. Sabia exatamente a sensação, o som da torneira ligeiramente aberta, o reflexo no espelho.
Que dia esse?
                Poderia perguntar para o homem gordo que ficava na outra sala, ao lado da sua. Aquela com carpete macio, recém-colocado. A foto da família sobre a mesa ao lado das pilhas de papeis. Parou com a mão na maçaneta. Não podia simplesmente entrar e dar de cara com uma pessoa que não sabia mais o nome. Dar de cara com um estranho.
                Recuou rapidamente e se trancou na sua sala.
Fez uma busca agitada na internet para tentar descobrir o que estava acontecendo com ele. Um lapso de memória ocasional, talvez. Um AVC a caminho? Câncer no cérebro? A garganta seca, apertada em um nó. Que estava procurando?
                Ficou com medo de tirar a gravata, sentir-se mais confortável. E se não conseguisse lembrar mais como coloca-la?
                Faça uma lista das coisas importantes, verifique se no dia seguinte consegue lembrar todos os itens e se acrescentou mais alguns, cantava a tela à sua frente.
                Trêmulo pegou a folha de papel e começou a colocar tudo o que se lembrava daquela manhã.
                Acordara ao lado da, como era mesmo o nome da esposa? A filha, Daiane, lhe pedira dinheiro novamente, como se ele já não lhe houvesse dado na... sexta feira? Para quê mesmo? Sim, para comprar um... uma coisa para ela.
                Isso não estava funcionando. As coisas iam se apagando da sua mente mais rápido que conseguia resgata-las. Melhor ligar para o seu médico, ele deveria saber o que fazer. Assim que encontrasse o número de telefone na agenda que estava sobre a mesa. Não ali, na sua casa. Ele a havia deixado ao lado do celular.
                Ficou tão feliz por ter lembrado disso que até sentiu-se melhor. Stress era apenas isso. Depois de um fim de semana difícil com a família que morava na sua casa.
                Quando fora a ultima vez que tivera um fim de semana bom? Sem ter que se lembrar das contas a pagar; sem ter que concordar com a mulher contra a filha, ou vice e versa?
                Quando fora que sua filha crescera a ponto de não lhe dar mais importância?
                Quando perdera a sua mulher para o salão de beleza? Para as amigas?
                Ficou olhando para o papel que começara a escrever, praticamente vazio, como a sua memória, como se as letras tivessem escorregado para o carpete, perdidas.
                Levantou-se e dirigiu-se para o elevador que descia para o fundo do poço, cumprimentando o Jorge, seu sócio. Nem reparou no computador que ficou ligado, na porta que deixou aberta, o paletó sobre o encosto da cadeira.
                Quando chegou à rua afrouxou o nó da gravata e atirou-a em uma lata de lixo, próxima, sem recordar a cor do nó que lhe apertava a garganta.
                Saiu caminhando feliz como se fosse a primeira vez que andava por aquele calçadão, rumo a um lugar que não sabia qual. Feliz como não se lembrava de estar ha muito tempo.
                Esquecera-se de quem era.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Amor,

Quandos as vestimentas mergulham o SER no esquecimento, tornam-se prisão e podem levar a loucura ou a re-descoberta de quem somos.

Belo texto e temática!

Beijos meus,
Anna Amorim

Unknown disse...

Amor,

Vale reler e reler. Voltei aqui e o capturei para meu blog.

Beijos meus,

Anna Amorim

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