Poema do Menino Jesus Num meio-dia de fim de Primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe. Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No céu tudo era falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e pedras. No céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar outra vez homem E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos E os pés espetados por um prego com cabeça, E até com um trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações. Nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas - Um velho chamado José, que era carpinteiro, E que não era pai dele; E o outro pai era uma pomba estúpida, A única pomba feia do mundo Porque nem era do mundo nem era pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. Não era mulher: era uma mala Em que ele tinha vindo do céu. E queriam que ele, que só nascera da mãe, E que nunca tivera pai para amar com respeito, Pregasse a bondade e a justiça! Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu E serve de modelo às outras. Depois fugiu para o Sol E desceu no primeiro raio que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural. Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. E, porque sabe que elas não gostam E que toda a gente acha graça, Corre atrás das raparigas Que vão em ranchos pelas estradas Com as bilhas às cabeças E levanta-lhes as saias. A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas. Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele é um velho estúpido e doente, Sempre a escarrar para o chão E a dizer indecências. A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Espírito Santo coça-se com o bico E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas que criou - "Se é que ele as criou, do que duvido." - "Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória, Mas os seres não cantam nada. Se cantassem seriam cantores. Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres." E depois, cansado de dizer mal de Deus, O Menino Jesus adormece nos meus braços E eu levo-o ao colo para casa. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural. Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre. E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E outra a tudo que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, Graves como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo o universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão. Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens E ele sorri porque tudo é incrível. Ri dos reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comércios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos mares. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do Sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos dos muros caiados. Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de noite E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Põe uns em cima dos outros E bate palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Esta é a história do meu Menino Jesus. Por que razão que se perceba Não há-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam ? Alberto Caeiro
sábado, 24 de dezembro de 2011
Poema do Menino Jesus - Alberto Caeiro
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Palavras Presentes - Danny Marks
Mensagem de Boas Festas aos Amigos de Letras
Amor, paz, compreensão, são palavras muito usadas nesta época do ano.
Substituem outras mais comuns em outros momentos, como ódio, guerra,
preconceito. Talvez devesse usar outros tipos de palavras. Esperança, apoio,
sustentabilidade, educação, coragem.
Mas não importa quais palavras
que eu use, nada disso faz sentido ou muda alguma coisa se não estiver
acompanhada de algo complexo e difícil de ser definido, embora ocupe apenas
oito fonemas, alinhados em três sílabas: Respeito.
Sete
fonemas, alinhados em quatro sílabas.
Esta não é mais uma lição de fonética, de semântica, nem mesmo de
moral. Apenas uma constatação de que precisa tão pouco para se conseguir tantas
coisas que desejamos em tantas outras palavras neste período em que as pessoas
abrem os bolso, soltam o verbo, mas mantém o coração fechado, culpado,
ressentido de tantos golpes que deu e levou ao longo de todo um período, seja
do ano, seja da vida.
Gostaria de poder presentear a cada um que encontro apressado na rua,
com quem me comunico a distância; aqueles que de uma forma ou outra entram em
contato com as minha palavras, minhas atitudes, meus conceitos.
Gostaria de poder levar esperança; de oferecer renovação; de ajudar na
superação de todas as coisas boas ou ruins que possam ter acontecido, pois tudo
deve ser superado.
A felicidade é uma
construção diária, permanente, que se fragiliza com tanta facilidade que
necessitamos sempre do outro para nos auxiliar a ser feliz.
O mesmo outro que
podemos fazer feliz com um pequeno gesto, por alguns instantes que sejam. Um
abraço sincero, emocionado, por ver que estamos vivos apesar de tudo, e só isso
já basta para que possamos ter esperança de dias melhores.
Mas abraçar alguém é
difícil.
Como é difícil levar um
sorriso no rosto, apesar do cansaço na busca de presentes; das filas
intermináveis; dos donativos que não podemos dar, mas nos pedem suplicantes
como se fossemos responsáveis por todas as misérias do mundo, culpados de
termos conquistado algo que a outros foi negado.
É difícil perdoar o
outro quando não conseguimos nos perdoar pelo sucesso ou pelo fracasso; por
estarmos vivos quando outros não estão mais presentes.
Quando damos presentes
sem estarmos junto com eles, substitutos da nossa ausência, tentativas de
resgatar a paz que perdemos em meio a... o quê?
A luta pela
sobrevivência? A busca pelo algo mais que nos traga justamente a paz?
Este ano eu decidi que
não vou dar presentes, mas a minha presença, de alguma forma.
Seja em um sorriso
simpático para um estranho que, talvez, se contagie com a minha alegria.
Seja em um abraço
apertado de agradecimento pela presença em algum momento da minha história.
Seja pelas palavras que
distribuo recheadas de sentimentos na tentativa de abrir os corações por alguns
instantes que sejam.
Pois só um pequeno
momento já basta para que a esperança renasça, que o amor se instale, que a paz
seja alcançada.
Então receba a minha
presença e que ela lhe traga a certeza de que conquistará tudo aquilo que faz
por merecer, algum dia.
Um Feliz Natal e um Ano
Novo cheio de Paz, pois até da saúde podemos correr atrás e nos fazermos
merecedores de um amanhecer melhor, em cada dia que virá.
Do seu Amigo de Letras
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
A Difícil Arte de Namorar um Homem que Escreve – Danny Marks
Nenhum
relacionamento é fácil, ou não haveriam tantos tratados de paz e estudos de
psicologia ao longo da história da humanidade. Mas, alguns são fadados a serem
mais complicados que outros.

Namorar um cara assim é
querer uma aventura sem fim, um descobrir constante com certezas que mudam a
cada nova descoberta, mais profunda, que modifica todo o entendimento anterior.
É fazer do desconhecido algo fascinante que vicia com seu jeito cativante, mas
assusta com suas incertezas.
Cada dia um capítulo
novo, cada ano o término de uma temporada e a incerteza de qual o rumo que será
seguido na próxima. Se houver uma renovação do contrato com a produtora.

Namorar um homem que
escreve é ter que descobrir quando as lágrimas são de tristeza ou de alegria;
quando o brilho no olhar é de sorriso ou dor; quando os gestos teatrais são
para uma platéia ou apenas para pedir que o notem; quando os silêncios são de
expectativa ou apenas de reflexão.
É muito difícil manter
um relacionamento com um homem que
escreve porque ele é muitos em um só, e é sempre o mesmo por traz de todos que
aparenta ser.
Você pode conquistar um
homem que escreve, mas ele jamais será seu.
Ele morre se você o
prender, e vive mais intensamente se o deixar livre para escolher ficar. E
nunca se sabe qual será a escolha que ele fará.
Ele é um universo
inteiro, na fragilidade de uma pessoa. Sempre terá uma ideia nova, uma grande
sacada, mas nem sempre elas vão chegar no momento que espera, da forma que
gostaria.
Namorar um homem que
escreve é tão complicado quanto olhar-se no espelho e ver a sua alma refletida
e ter que aceitar o que se vê sem julgar, da mesma forma que ele o fará.
Um homem que escreve
jamais pedirá a você algo a mais do que ele mesmo possa lhe oferecer ou
conquistar por si, mas receberá cada presente da sua alma como se fosse o que
ele mais necessitava para se manter vivo, ainda que materialmente não se importe com valores.
Ele sempre será fiel às
suas ideias, e a mais nada além disso, ainda que elas mudem com o tempo. Nada
mais o fará respeitar a tudo o que encontrar com a mesma imparcialidade, com o
mesmo empenho, que uma ideia que o convença, o conquiste.

Um homem que escreve é
o melhor amigo que se pode ter por perto, e o pior adversário que se pode
desejar, pois com a mesma facilidade que constroi histórias de amor, produz tragédias.
Mas, se ainda assim
quiser namorar um homem que escreve, então perceberá que a coisa mais
importante para ele é que você seja feliz e que a única dúvida constante na
cabeça dele, é se escolheu o homem certo para namorar.
E isso, só quando a obra
estiver completa, ele saberá.
Namore um cara que lê – Macy
baseado no "Namore uma garota que lê", texto escrito pela Rosemary
Urquico e
traduzido e adaptado para o português pela Gabriela Ventura
Namore um cara que se orgulha da biblioteca que tem, ao invés do carro, das roupas ou do penteado. Ele também tem essas coisas, mas sabe que não é isso que vai torná-lo interessante aos seus olhos.
Namore um cara que tenha uma pilha de três ou quatro livros na cabeceira e que lembre do nome da professora que o ensinou as primeiras letras.
Encontre um cara que lê. Não é difícil descobrir: ele é aquele que tem a fala mansa e os olhos inquietos. Ele é aquele que pede, toda vez que vocês saem para passear, para entrar rapidinho na livraria, só para olhar um pouco. Sabe aquele que às vezes fica calado porque sabe que as palavras são importantes demais para serem desperdiçadas? Esse é o que lê.
traduzido e adaptado para o português pela Gabriela Ventura
Namore um cara que se orgulha da biblioteca que tem, ao invés do carro, das roupas ou do penteado. Ele também tem essas coisas, mas sabe que não é isso que vai torná-lo interessante aos seus olhos.

Namore um cara que tenha uma pilha de três ou quatro livros na cabeceira e que lembre do nome da professora que o ensinou as primeiras letras.
Encontre um cara que lê. Não é difícil descobrir: ele é aquele que tem a fala mansa e os olhos inquietos. Ele é aquele que pede, toda vez que vocês saem para passear, para entrar rapidinho na livraria, só para olhar um pouco. Sabe aquele que às vezes fica calado porque sabe que as palavras são importantes demais para serem desperdiçadas? Esse é o que lê.

Diga algo sobre o Nobel do Vargas Llosa. Fale sobre sobre as novas traduções que andam saindo por aí. Cuidado: certos best-sellers são assunto proibido. Peça uma dica. Pergunte o que ele está lendo –e tenha paciência para escutar, a resposta nunca é assim tão fácil.
Namore um cara que lê, ele vai entender um pouco melhor seu universo, porque já leu Simone, Clarice e –talvez não admita– sabe de memória uns trechos de Jane Austen. Seja você mesma, você mesmíssima, porque ele sabe que são as complicações, os poréns que fazem uma grande heroína. Um cara que lê enxerga em você todas as personagens de todos os romances.

Um namorado que lê gosta de muita coisa, mas, na dúvida, é fácil presenteá-lo: livro no aniversário, livro no Natal, livro na Páscoa. E livro no Dia das Crianças, por que não? Um cara que lê nunca abandonará uma pontinha de vontade de ser Mogli, o menino lobo.

Entenda que ele precisa de um tempo sozinho, mas não é porque quer fugir de você. Invariavelmente, ele vai voltar –com o coração aquecido– para o seu lado.
Demonstre seu amor em palavras, palavras escritas, falas pausadas, discursos inflamados. Ou em silêncios cheios de significados; nem todo silêncio é vazio.

Namore um cara que lê porque você merece. Merece um cara que coloque na sua vida aquela beleza singela dos grandes poemas. Se quiser uma companhia superficial, uma coisinha só para quebrar o galho por enquanto, então talvez ele não seja o melhor. Mas se quiser aquela parte do "e eles viveram felizes para sempre", namore um cara que lê.
Ou, melhor ainda, namore um cara que escreve.
Homenagem de Macy aos queridos escritores da comunidade orkutiana “É Proibido Proibir” ( http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=21140341 )
DEZEMBRO DÓI - Lariel Frota
Dezembro dói,ai como dezembro dói:
Dói na saudade da infância,
Na certeza de que o tempo não volta.
Na agonia da esperança,
Na silenciosa revolta!

Na criança de rua faminta,
No velho mijado na cama,
Na mão estendida ao relento,
Que por um pouco de amor clama!

Nas sobras de comida jogadas
Numa caçamba fedida,
Nos pacotes repletos de nadas,
Na incoerência de vida.
Dói nos falsos risos trocados,
Nos abraços traiçoeiros,
Nas enxurradas de fel carregando
Vidas dentro dos bueiros!
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Sob a pele que eu habito - Danny Marks

Quando percebi meus
duzentos e quarenta e três anos habitavam um corpo de doze anos, mas, por um
longo tempo, apenas eu estava ciente disso.
Fiquei olhando as
coisas por trás daqueles olhos, tentando entender os mecanismos que agiam sobre
mim, sobre aquele corpo. Eu não tinha pressa.
O que poderia acontecer de pior que já não houvesse acontecido?

Então ele morreu pela
primeira vez e nos deparamos. Eu poderia
ter feito tantas coisas naquele momento, ter resolvido o problema de uma vez,
ou então simplesmente ficado quieto e deixado o destino seguir seu curso. Se eu
soubesse qual seria o destino...

A princípio foi como um
passatempo, algo para ocupar os vazios deste lugar, inserindo pouco a pouco
coisas que precisava; que estariam disponíveis para mim quando eu tivesse que
fazer o que era preciso.
Fiquei tão ocupado com
o meu novo propósito que não notei a repercussão disso, até que vi refletidas
em palavras coisas que eu havia construído aqui. Ele envelhecia rapidamente a
cada novo acréscimo que eu implementava, mas o seu corpo continuava frágil para
nós dois.

Como eu poderia
imaginar que isso o tornaria diferente? Não dava para voltar atrás. Precisava continuar
e fazer o trabalho completo até o momento que eu esperava ansiosamente.

E quando o momento
chegou, percebi que havia cometido um erro.
Ele estava mais forte
que eu jamais haveria de imaginar. Estava ciente do que eu era e disposto a acabar
comigo. Não com a ira que eu teria no lugar dele, mas com uma convicção absurda
de que era o melhor a ser feito, ainda que isso acabasse com nós dois.
Lutamos
desesperadamente.
A vida é algo precioso
para alguém que sabe o quanto de possibilidades existe nela, o quanto se pode
perder em alguns segundos.

Eu contava que ele
queria sobreviver, como eu. Todos querem viver, não importa como, não importa o
que seja preciso fazer para continuar seguindo. A culpa pode ser mitigada com
os atos futuros, esquecida em algum canto da memória. Esse foi o meu erro.
Ele me via como o
monstro que habitava os recantos sombrios da sua alma. O Mr Hide mefistofélico
que impregnava os seus atos com a sombra das chamas infernais.
A sua calma plácida me
enfurecia para além da razão e me lancei sobre ele com toda a fome devoradora
que apenas alguém que havia vivido tanto quanto eu poderia possuir.

Deixei que ele drenasse
as minhas forças, que criasse asas e pudesse voar. Deixei-o livre para viver
enquanto eu mergulhava cada vez mais fundo, inerte.
Ele voltou vitorioso
para seu mundinho estranho. Mas não era mais ele.
O amalgama de nós dois
sobrevivera a ambos, crescia de forma estranha, enquanto eu jazia esquecido nas
sombras.
É preciso luz projetada
sobre alguma coisa para que haja sombras. Quanto maior a fonte de luz, maior a
sombra projetada. E eu pude crescer de novo, nas sombras que se avolumavam e me
mantinham vivo.

Mas ele não percebe que
estou aqui, e que ainda vamos nos ver novamente e desta vez eu vencerei, pois
eu sou o demônio que habita sob a sua pele.
Eu
sou a sua Sombra.
LIXO NO NATAL - Lariel Frota
-Não tenho espaço pra guardar tudo separado.
- Vejam só, meu meninão defendendo o meio ambiente. De onde vem a conscientização?
-Da escola, e está me deixando louca.
-Calma, temos um futuro cidadão do bem.
-É pai, sabia que o plástico leva muito tempo para se desfazer? Na
escola ensinaram a fazer um montão de enfeite de natal com material reciclado.
Quer ver minha redação sobre o lixo?
-Viu? É essa falação a semana
toda.
-Mãe, não é falação. Ou a gente joga certo o lixo, ou o lixo...

(...)
-Vamos filha, tem muito trabalho, chegou plástico na reciclagem.
-Ai mãe, dá um nojo separar lixo. Um dia saio dessa pobreza toda da
favela, credo.
-É, o trabalho não é agradável,
mas reforça o orçamento, e não fica
um monte de lixo jogado por
aí.Você viu quanta enfeite de natal feito com material reciclado,comprei um
bonito para colocar na porta, foi bem baratinho.

-Eta menina boba, por acaso no
asfalto não tem lixo?
-Tem, mas é levado pra longe. Você já viu monte de lixo no Leblon ou
Capacabana?
-Claro que não, o lixo deles vem pra cá.
-Por isso quero ficar rica,
prá não
separar lixo de ninguém.
( ...)
-Gostei, as rodas ficaram da
hora. Pai, não joga o palito de sorvete na rua. Você não tem lixinho aqui no carro novo?
-Luiz Alberto sua mãe tem
razão: um palito de sorvete no meio
dessa imundície, não faz diferença.
-Mas pai, o professor explicou que existem centenas de carros, e ...
-Que saco garoto. Chega! Ao invés de aproveitar o passeio no carro
novo, o sorvete de chocolate, fica
tentando salvar o planeta. Mude a conversa, não quero ouvir mais um pio sobre isso.
(...)
-Olha Beto, melhor mudar o trajeto, a água
está acumulando na praça.
-Os bueiros estão entupidos.
Pior, esta água imunda vai sujar o carro novo.
-Pai, posso ler minha redação agora?
-Seu pai já não avisou pra parar
com essa ladainha? Deixe esse assunto
chato pra aula.
A televisão mostra, a montanha de entulho sendo remexida pelos bombeiros a
procura de corpos trazidos pela avalanche. Pessoas sujas, olhos perdidos,
renascidos da lama, perambulam como personagens de um pesadelo.

(...)
-Coisa pavorosa, o carro foi praticamente cortado ao meio pela
pedra. Parece que os pais escaparam,mas a pobre criança no banco de
traz.....
-Ele tem um pedaço de papel na mão.Parece que segurou com força antes de morrer, uma frase sem sentido, alguma brincadeira de
criança: -“A gente é que joga o lixo, ou
é o lixo que vai jogar a gente”?
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
A Máquina dos Sonhos - Danny Marks
Até hoje eu não sei
bem o que aconteceu. Tenho pensado nisso todos os dias da minha vida, desde
então. Todas as noites em que acordo suando, temendo ainda me ver naquela cama,
sentindo o odor nauseabundo dos medicamentos.

A
única certeza que eu tenho é que as coisas poderiam ter sido diferentes, em
qualquer ponto, de alguma forma.
Se
o meu avô não tivesse deixado os Estados Unidos, depois de uma aposentadoria
compulsória em situação estranha, e se mudado para o Brasil onde a minha mãe e o
meu pai moravam desde que se casaram, talvez para fugir do clima frio.
Eu
quase não conheci o meu avô. Ninguém em casa falava dele, só alguns boatos que
eu escutava aqui e ali, que era um espião aposentado.
Morava
em Campos do Jordão, acho que pelo clima frio, em uma casinha afastada, mal
cuidada, que lembrava as da sua terra natal.
Raramente
íamos visitá-lo. Nunca ele vinha até a minha casa. Enclausurado na dele, com
seus projetos eletrônicos, suas manias...

Não
é fácil você descobrir que o resto da sua vida não vai ultrapassar muito os
quinze anos que se passaram correndo, sem nenhum sintoma anormal, até que...
Um
médico amigo da família disse que havia uma clínica especializada em Campos,
faziam pesquisas e tratamentos caros, poderia ser uma chance de prolongar os
dias. Meus pais enfrentaram o frio e nos mudamos para a casa vazia do meu avô.
A poltrona onde havia sido encontrado morto com o seu livro de cabeceira no
colo, ainda estava lá. Mas havia muito mais.
Fiquei
no quarto mais alto, o que tinha uma vista melhor. A cama colocada próximo a
janela para poder olhar os pinheiros e a neve quando caísse. O quarto do meu
avô.
Não
havia muito ânimo para mudar as coisas, estávamos ali por pouco tempo. Eu menos
que os outros, com certeza. Entre um tratamento e outro, paliativos que
massacravam o meu corpo e me deixavam debilitado por dias. Quase não saia do
quarto e isso me permitiu estudar cada pequeno milímetro dentro daquelas
paredes.

Não
sei por que nunca contei essa descoberta para os meus pais, para mais ninguém.
Só agora eu me atrevo a falar a respeito...
De
alguma forma eu consegui ligar aquele equipamento. O rádio parecia quebrado,
não emitia nada embora a sua estranha antena estivesse instalada. Descobri um
cabo ligado ao computador, logo acima das letras escritas em vermelho: S.o.B.
Entrei
na internet para ver o que poderia significar aquelas letras e em uma
infinidade de resultados dois me chamaram a atenção: “Secret Official Bureau” e
“Son of Bitch”.
Meus
pais nunca me deixavam sozinho em casa, mas eu passava muitas horas dormindo de
dia e tinha a noite para explorar tudo o que quisesse, ainda que, normalmente,
eu ficasse apenas com a tv ligada para fazer barulho.
Mas
aquela coisa no sótão me intrigava, e quando me senti melhor fui vasculhar os
livros velhos do meu avô em busca do seu significado.

Era
estranho, a princípio. Quando eu conseguia dormir era como se estivesse em
outro lugar, em outro momento, vendo coisas que não poderia ver. Pelos olhos de
outra pessoa que não era eu. A única coisa que sempre percebia, não no início,
mas depois, quando passei a prestar atenção a todos os detalhes, era o zumbido
da máquina que continuava ligada no sótão. Nem eu mesmo sabia por quê. Nunca
pensei em desligá-la.
O
zumbido era onipresente em todos os sonhos, ainda que ao acordar eu não ouvisse
nada. Mas isso era só o começo.
Comecei
a identificar as pessoas dos sonhos como sendo pessoas que eu via no hospital,
na rua, em algum lugar. Eu sabia o que estava acontecendo com elas. De alguma
forma eu entrava na vida delas e vivia com elas por alguns anos. Como se fosse
uma delas. As esperanças e realizações, coisas que ainda iriam acontecer eram
passadas para mim através do tempo infinito e estranho dos sonhos.

Então
percebi que os sonhos não eram apenas sonhos, eram projeções, partiam do
presente das pessoas e se lançavam em longas divagações. Vidas inteiras vividas
em algumas horas, pelos olhos de outros, dentro de seus corpos e suas mentes,
suas emoções.
Eu
tive a minha primeira experiência sexual através de um sonho. E depois eu fui
mulher e homem. Estava simplesmente viciado em tudo aquilo, não conseguia mais
viver sem esse estado onírico para além do que era eu.
Eu
tento não me culpar pela invasão de privacidade, quem poderia resistir a algo
assim? Eu nem sabia o que estava fazendo. Podia entender cada uma das pessoas
que conhecia, que me chamavam a atenção, que povoavam os meus sonhos com seus
sonhos, seus sentimentos.
Então
eu decidi que devia olhar para o que eu era, ou seria. De alguma forma eu tinha
que saber o que eu poderia ser se conseguisse sobreviver. Mesmo sabendo que não
havia essa possibilidade.
Um
imenso e negro nada que absorvia tudo. Um infinito nada. Vazio de todas as
coisas. Vazio de mim.
Acordei
suando, com o cheiro nauseabundo de remédio no ar. Subi ao sótão e fiz o que
qualquer garoto na minha idade faria com algo assim. Fui gritar com a máquina
que não me satisfazia o único desejo que era totalmente meu. Eu queria o meu
sonho.
E
a máquina apenas zumbia indiferente.
Xinguei,
gritei, implorei, chorei. Filha da puta. Desgraçada. Por que eu?
Comecei
a passar mal. Me arrastei para a cama e só tive tempo de fechar o alçapão antes
de vomitar até o que não havia no meu estômago antes de desmaiar.
Acordei
dois meses depois, em um quarto de hospital. Meus pais choravam muito, mas eu
já estava acostumado. Eu devia ter piorado para além das expectativas e provavelmente
tinha apenas alguns últimos momentos.

De
alguma forma inacreditável eu estava curado. O tumor havia sumido completamente,
nem sinal de que um dia havia estado lá.
Recebi
alta dois dias depois, com uma infinidade de exames que não explicavam o que
havia acontecido. Só um milagre. Eu havia desmaiado e quando acordara novamente
estava curado. Só um milagre. Mas eu sabia que não era isso. Algo dentro de mim
sabia.
Voltamos
para a casa do meu avô, mas a máquina não funcionava mais. Nunca mais funcionou
se algum dia realmente o fez. Talvez, de alguma forma, o tumor tenha criado a
ilusão de tudo o que eu me lembrava. Um ano depois nos mudamos de novo.

Não
sonho mais, nunca mais. Mas as vezes eu ainda sinto que o vazio completo está
lá dentro em algum lugar e escuto apenas o zumbido, sempre presente...
Assinar:
Postagens (Atom)